sábado, setembro 01, 2012

A "zona cinza" do conservadorismo

Em debate na Faculdade de Ciências Sociais da USP sobre “A Ascensão Conservadora em São Paulo”, a filósofa Marilena Chauí sugeriu em sua fala uma interessante conexão entre os “aparatos neoliberais” oferecidos à classe média, o encolhimento da esfera pública e a expansão da privada e o conservadorismo político. Talvez tenhamos aqui uma novidade: a percepção de uma zona cinza ou desconhecida ainda não plenamente explorada nem pela psicologia ou pelas ciências sociais: seriam possíveis os aspectos sensoriais e cognitivos envolvidos nas diferentes "acoplagens" das pessoas com esses “aparatos” (automóvel, computador, celulares, TV etc.) moldarem visões de mundo e ideologias?

Na história da ciência a psicologia social surgiu como uma tentativa de criar uma ponte entre as ciências sociais (sociologia, antropologia e ciência política) e a psicologia. Na verdade, procurava dar conta de uma urgência muito mais dramática: compreender os movimentos ideológicos de massa do século XX (em particular o nazi-fascismo) baseados no linchamento, racismo, homofobia e fanatismo coletivos. Entender o porquê do surgimento de uma psicologia de massas que, muitas vezes, era diametralmente oposta à individual: indivíduos aparentemente civilizados de repente podem tornar-se violentos e regressivos em ambientes públicos e de interação interpessoal.  

Esforços como os estudos sobre a formação da personalidade autoritária liderados por Theodor Adorno na década de 1950 e a criação da chamada “Escala F” (a aplicação de um questionário para detectar traços protofascistas na personalidade) tentavam compreender a dinâmica desse “encaixe” entre o individual e o coletivo.

A fala da filósofa Marilena Chauí em um debate sobre “A Ascensão Conservadora em São Paulo” na Faculdade de Ciências Sociais da USP no dia 28 (veja vídeo   abaixo) sugeriu um novo enfoque nessa discussão: a conexão entre os “aparatos neoliberais”, encolhimento da esfera pública e o conservadorismo da classe média paulistana.

Chauí parte do fenômeno clássico objeto da psicologia social: “a classe média paulistana é um mistério. Convidam você para ir a casa deles, é bem recebido, fazem uma comida especial para você, te levam até a porta, oferecem carona etc. Mas basta dirigir um carro, entrar numa fila ou num espaço que deve ser compartilhado para se transformarem em bestas selvagens”.

É possível os gadgets tecnológicos moldarem
visões de mundos e ideologias?
Em seguida, a filósofa discorreu sobre o autoritarismo da sociedade brasileira que não se resume ao aparelho do Estado (a ditadura, por exemplo): está cristalizado em relações hierárquicas, verticais e oligárquicas onde as desigualdades são “naturalizadas”. A violência seria deslocada para o campo da criminalidade e delinquência. Mas em São Paulo teria ocorrido algo “sinistro”: ao receber o impulso neoliberal isso teria funcionado para a sociedade paulistana como “a mão e a luva, como a sopa no mel” porque “a característica mais impressionante do neoliberalismo é o encolhimento da esfera pública e o alargamento da privada”.

Para ela, os exemplos estariam por toda parte: a mídia que procura muito mais focar o sentimento do que a compreensão racional das pessoas sobre os acontecimentos; e a Ética (o exercício da consciência da Liberdade e Responsabilidade) reduzida a um conjunto de regulamentos, normas e preceitos de controle cotidiano de todos os comportamentos semelhante a “ética nas empresas” que se espalharia pela cidade inteira.

De passagem Chauí fala sobre os “aparatos que o neoliberalismo trouxe para a classe média paulistana”. Talvez aqui tenhamos uma novidade, a percepção de uma zona cinza ou desconhecida ainda não plenamente explorada nem pela psicologia ou pelas ciências sociais: seria possível os aspectos sensoriais e cognitivos envolvidos nas diferentes acoplagens das pessoas com esses “aparatos” (automóvel, computador, celulares etc.) moldarem visões de mundo e ideologias?

Em termos mais práticos: entender como esses “aparatos” acabam produzindo o alargamento da esfera privada em detrimento do enfraquecimento da consciência pública, tal qual apontado por Marilena Chauí. E o resultado, uma forma de conceber a vida pública por um duro e cruel ponto de vista privado reforçado pelos “aparatos” tanto de transporte como de comunicações da modernidade que assim fazem perceber a vida – como olhar em trevelling e a janela do carro ou do trem como fossem telas de cinema, TV ou computador.

O assunto é muito amplo, mas vamos nos concentrar em um desses “aparatos neoliberais” que fizeram a cabeça da classe média paulistana: o automóvel.

Uma “ecologia cinza”


Certamente o estado de São Paulo é onde mais esteve presente o fenômeno de desindustrialização e a expansão dos setores financeiros e de serviços (ainda mais acelerado pelos recentes processos de concessões e privatizações), produzindo uma classe média que, como apontado por Chauí, não detém os meios de produção e vive o terror de se proletarizar. Nesse contexto o automóvel tornou-se o símbolo máximo e ilusório de ascensão social. Além do símbolo de status, o automóvel molda uma percepção já presente nas mídias: ver o mundo a partir do ponto de vista privado, a janela como tela e o mundo visto em travelling, sem envolvimento ou participação.

Muitos historiadores dos meios de comunicação apontam o sincronismo entre a expansão do trem, das malhas viárias e o crescimento da rádio e teledifusão dentro da Modernidade. O resultado foi a aceleração do cotidiano e a percepção que o domínio do tempo é forma de poder (“tempo é dinheiro” – a “cronopolítica”).

Ecologia cinza: a submissão à cronopolítica torna
o dia-a-dia agressivo e violento
Um desses pesquisadores é o urbanista francês Paul Virilio. Para ele a velocidade se torna um novo imperativo cultural, disciplina, forma de dependência e submissão. Virilio também vê a velocidade como uma força psicológica e social ou uma pressão que altera a visão de mundo, desorienta-nos, deixa-nos num estado de concussão mental e promove uma profunda crise que afeta nossas relações com o mundo, sociedade e democracia. A natureza não seria apenas destruída por uma poluição química ou térmica, mas também por uma poluição dromosférica – uma invisível poluição através da velocidade. Por isso Virilio clama pela urgência da criação de uma “ecologia cinza” (veja VIRILIO, Paul. Velocidade e Política, São Paulo: Estação Liberdade).

Por trás dessa “ecologia cinza” está o princípio de que o cotidiano foi invadido pelo “estado de choque” decorrente pela aceleração dos corpos e dos sentidos, tal qual descrito por Walter Benjamin. A dependência pelas tecnologias de aceleração (comunicações e transportes) e a submissão à cronopolítica tornam o dia-a-dia agressivo e violento pela necessidade dos sentidos darem uma resposta sempre rápida como uma questão de sobrevivência.

Automóvel e personalidade autoritária


Se a conclusão final de Adorno a respeito da origem da personalidade autoritária está na constatação de que “quem é duro consigo mesmo também é com os demais”, torna-se urgente compreendermos esta conexão entre o estado de choque do cotidiano com o endurecimento do indivíduo consigo mesmo e a vingança dessa dureza contra os outros.

É sincrônico na Alemanha o entusiasmo de Hitler pela construção das “autobahns” (as primeiras auto-estradas) durante o regime nazista, a aceleração da indústria automobilística, o crescimento da indústria cinematográfica como veículo de propaganda e a explosão Segunda Guerra Mundial precedido pelo ódio, intolerância e racismo.

O sincronismo entre o regime nazista e o
projeto das autobahns: automóvel e autoritarismo
Da mesma forma o urbanismo do prefeito Prestes Maia (nas gestões 1938-1945 e 1961-1965) baseado no automóvel (São Paulo planejada em torno de marginais – a retificação do rio Tietê – radiais e perimetrais), o crescimento da indústria automobilística na vizinha região do ABC e o protofascismo das classes médias que veem no automóvel uma célula de sobrevivência a partir da qual enxergam a esfera pública são fenômenos sincrônicos.

No automóvel a janela assume o papel de tela e o painel um sistema de ilusório controle (nos digitais a ilusão de poder torna-se ainda maior) onde o motorista sente-se investido de aparente poder e domínio, assim como achamos que o elevador fechou a porta porque apertamos um botão embutido em um painel sob nossa vontade.

E isso não é meramente um fenômeno psicológico, mas estrutura a própria organização do trabalho e a produção da riqueza econômica.

Por exemplo, com a crise das formas estabilizadas das relações de trabalho (principalmente nos setores de serviços e financeiros) regidas por direitos trabalhistas passa a tomar lugar as modalidades flexíveis de trabalho desregulamentadas: atividades comissionadas, remunerações por resultados por projetos de curto prazo, ganhos por produtividade etc. O trabalho não é mais remunerado pela qualidade do produto, mas agora determinado pelo tempo do alcance de resultados por períodos curtos de tempo. Da remuneração do motoqueiro pela maior quantidade de entregas no menor tempo ao corretor de títulos e ações cuja diferença de segundos numa decisão pode ser a diferença entre a lucratividade e o prejuízo, a velocidade é o fator de sobrevivência.

Seu salário não é baixo. A questão é de tempo: você leva 30 dias para receber aquele valor. Por isso a sobrevivência depende do domínio da velocidade. Dinheiro não é valor nominal, é um valor probabilístico dado pela circulação veloz. A logística da velocidade é o verdadeiro poder nas sociedades dromológicas em que vivemos. Quanto mais lentos somos (em transporte e economicamente) menos poderosos na hierarquia.

Ironia


Essa forma de acoplamento imaginário dos indivíduos com as tecnologias seria o objeto dessa “ecologia cinza” ou essa nova zona entre a psicologia individual e social: uma região criada pelo encolhimento do público e a expansão da esfera privada a partir dos “aparatos neoliberais” ou gadgets tecnológicos que criam um complexo estético-tecnológico-político.

O mais irônico nessa história é que o chamado “novo sindicalismo”, surgido pelas greves dos metalúrgicos lideradas por Lula nos final dos anos 1970 em plena ditadura militar, surgiu no meio da expansão da indústria automobilística na região do ABC, na época considerada vanguarda política. 

Acabaram chocando o “ovo da serpente”: o crescimento da cultura do automóvel, privatização da esfera pública e cristalização do conservadorismo através da dureza de um cotidiano que cria o fenômeno da personalidade autoritária. 




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