sexta-feira, agosto 17, 2012

O drama subliminar da música de sucesso

A música popular de sucesso esconde um drama subliminar: a tensão entre o beat, ritmo, melodia e harmonia. E essa tensão é resolvida pelas seguintes maneiras: imposição de uma estrutura circular, o tempo padrão, a linguagem tatibitate e dependência oral e a auto-referência. Se Freud estiver correto ao afirmar que toda produção simbólica humana como a arte, religião e mitologia partilham do mesmo processo primário da elaboração neurótica do inconsciente como o devaneio, o sonho e o pensamento infantil, essa tensão presente na música seria aquela existente entre inconsciente e sociedade. A diferença, é que no hit popular essa tensão é mais ampla: a luta entre as necessidades mercadológicas da indústria do entretenimento e a liberdade.

“Ai Se Eu Te Pego” de Michel Teló, “Vem Dançar com Tudo” de Robson Moura e Lino Krizz (tema da novela "Avenida Brasil" da TV Globo) e “Eu Quero Tchu Eu Quero Tcha” de João Lucas e Marcelo. Por mais que torçamos o nariz para esses hits efêmeros, temos que admitir que esses produtos midiáticos expõem de forma explícita os mecanismos de criação da indústria do entretenimento. São exemplos didáticos pelo seu esquematismo, repetição e clichê.

Ouvir essas músicas não é apenas um tipo de entretenimento, mas em termos de conteúdo significa viver. Numa análise estrutural da harmonia das canções populares percebe-se uma estrutura básica periódica ou cíclica refrões e riffs que se repetem criando uma tensão que aprisiona a melodia. A música termina sempre exatamente onde começou, o que explica, em geral, o final da canção terminar lentamente em BG: nenhum processo é concluído porque nada aconteceu.

Para pesquisadores alemães sobre a canção de massas como S. Schädler (“Das Zyklische und das Repetitive: Zur Struktur populärer Musik” In: Prokop, Dieter: Medienforschung, 2011) e Carmen  Lakaschus (“Die Kommunikationswirkung des Werbefernsehens”, Bauer, 1973) , o tempo cíclico das canções corresponde à própria natureza cíclica dos eventos da vida cotidiana: amor, objetos, sexualidade, natureza etc.


Ao analisar o fenômeno da música de massas esses pesquisadores aproximam-se bastante das ideias sobre emoção estética em Freud como descarga (neurótica) de intensidades afetivas por meio de condensações e deslocamentos (em termos linguísticos por metáforas e metonímias). Schadler faz uma interessante análise estrutural da canção popular ao descrever uma espécie de “drama subliminar” que ocorreria no interior de cada sucesso: afetos, emoções, aspirações e desejos em tensão com a ordem social do tempo cíclico e repetitivo das normas e demandas sociais, representados na música na tensão entre ritmo, riffs e refrões cíclicos que confinam da melodia.


Os momentos progressivos da
estrutura musical erudita
em Charles Mingus: o
desenvolvimento do tema

Estrutura musical erudita X estrutura cíclica


Na estrutura erudita (o que não significa somente a música clássica) o tempo na música possui um caráter transformador: o tema (a melodia inicial) é anunciado para ser desenvolvido em fugas (como na música clássica) ou nos solos instrumentais do jazz. Um motivo é usado repetidamente criando uma tensão com o tema que se desenvolve até retornar à melodia inicial, encerrando-se a música. O tempo cíclico da vida cotidiana é dessa maneira simbolizado em uma “condensação”. Pegue o exemplo de “Orange Was the Color of Her Dress” de Charles Mingus (veja vídeo abaixo) onde o tema lânguido inicial é desenvolvido passando por diversos solos que dialogam com um motivo que se repete fazendo a transição das diferentes “fugas”. Dessa maneira revivemos simbolicamente o drama do dia-a-dia (catarse).

Na estrutura erudita a melodia é igualmente prisioneira do tempo cíclico, porém o tempo é transformador: o tema é desenvolvido em todas as variações e possibilidades podendo criar momentos “progressivos” para o psiquismo do ouvinte – transcendência ou até epifania, embora, ao final, retornarmos à repetição do cotidiano.

Ao contrário, Schadler argumenta que na música de massas esse tempo cíclico da própria vida é “purificado”, superficializado e quantificado: a melodia é ordenada em trechos repetitivos, sem conexão interna e sem alterações.
Por exemplo, em “Ai Se Eu Te Pego” a melodia, cantada por Teló pelo riff repetitivo da sanfona fazendo a harmonia, vai num crescendo até ser cortada pelo refrão “ai se eu te pego”. O tema não é desenvolvido, sugere uma fuga com o crescimento da melodia, mas é imediatamente contida pelo refrão.

A crítica feita aos hits de que são meramente repetitivos e clichês esconde a dramaticidade, tensão e dinamismo presentes no arranjo da música popular que reflete a derrota dos ouvintes diante do princípio de realidade.
“Uma dramaticidade muito especial realiza-se diante dos nossos ouvidos (...) o drama da depreciação do hot [a melodia] pelo padrão, a dramaticidade da negação daquilo que é livre, que já reside no interior do hot, a dramaticidade do estabelecimento do preciso, do calculável, seu triunfo sobre o desviante, a eliminação do tempo qualitativo pelo quantitativo. Contra a primeira suposição de ter encontrado na área da música popular uma fuga do cíclico, encontramos a interferência, o estabelecimento do repetitivo no cíclico. Esse é o segredo da música popular”. (Schädler, S. “Das Zyklische und das Repetitive: Zur Struktur populärer Musik e Lakaschus” In: Prokop, Dieter: Medienforschung, 2011, p.56).
Por isso a música popular é curta, em torno de 2 minutos e 3 minutos e 45 segundos: qualquer prolongamento além desse decurso crítico poderia expor, de forma explosiva, a insustentabilidade dessa estrutura de coexistência dessas duas formas de tempo – a melodia contra as formas cíclicas dos riffs e refrão.

Linguagem tatibitate


Musica de massas e dependência oral:
infatilização dos ouvintes
“Ai – ai - ai”; “oi – oi - oi”; tchu- tcha – tchu – tchá”. A primeira coisa que chama a atenção nesses hits são os refrões repletos de vogais. Segundo os estudos de fonologistas, uma características marcante da língua portuguesa brasileira é a perceptível pronúncia das vogais, sejam tônicas ou átonas, ao contrário de Portugal onde se prenuncia melhor as tônicas. Parece que os hits aproveitam essas características fonológica brasileira e exploram as vogais, porém de forma regressiva através da infantilização do “tatibitate”.

A expressão “tatibitate” refere-se um distúrbio onde se conserva voluntariamente a linguagem infantil (por exemplo, “qué aca” como quero água.). Theodor Adorno em seu texto “Sobre a Música Popular” de 1941 já detectava a “fala de criança” na linguagem musical para sugerir dependência (Veja ADORNO, Theodor. “Sobre a Música Popular”, In: COHN, Gabriel (org.) Theodor W. Adorno, coleção grandes cientistas sociais 54, São Paulo: Ática).

Assim como adultos reforçam na criança esse tipo de fala ao achar “fofinho” quando ela diz “nenê qué bincá”, da mesma forma a indústria do entretenimento incentiva através dos refrões a dependência infantil pelas vogais repetidas com repetição e ritmo.

“Poerááá, levantou poerááá...” A tensão psíquica entre melodia, harmonia e refrões é aliviada pelas bocas abertas pronunciando as vogais, assim como o bebê abre a boca pronto para receber o alimento. Essa é a chamada “dependência oral”, tão estudada nos estudos sobre consumismo, viciosidade e compulsividade. O drama subliminar da música de sucesso aliviado pelo prazer regressivo à memória atávica da experiência de maior prazer nas nossas vidas: a dependência oral. Isso talvez explique o porquê do adulto regredir a essa forma de prazer a cada momento de perda ou de ansiedade diante de um objeto de desejo ou amor: cigarro, chiclete, devorar uma caixa de bom-bons, “encher a cara”. Talvez essa seja a origem psíquica da expressão que se refere ao sujeito embriagado: “ele está mamado!”.


Auto-referência


"Eu quero tchu eu quero tcha": a
música auto-referencial
O hit “Eu Quero Tchu Eu Quero Tchá” é curioso por ser uma música auto-referencial (os teóricos diriam indicial ou fática): a letra descreve como o ritmo surgiu em Goiânia e se espalhou pelo Brasil. A música fala do porquê estamos com os ouvidos colados nela – se a estamos ouvindo, é porque é um sucesso. Essa circularidade de sentido (a letra fala não só dela mesma, mas sobre a sua própria transmissão) reforça a própria circularidade estrutural que descrevemos acima.

Esse deslocamento metonímico da tensão psíquica para a linguagem infantilizada da dependência oral e para a auto-referência fática talvez seja o segredo da música para massas. Se Freud falava dos processos primários básicos de elaboração do inconsciente (por condensação e deslocamento), a indústria do entretenimento privilegia o segundo onde, por meio de metonímias, cria formas substitutivas de prazer que evitam que o tema melódico se estenda e seja desenvolvido.

Se Adorno dizia que toda ideologia tem um momento de verdade, a música de massas tem o seu. Ela não é mera repetição de clichês, mas dentro acontece uma luta dramática entre forma e conteúdo, melodia e harmonia.  Talvez seja o reflexo de um conflito bem concreto entre o músico compositor e o produtor musical no interior da indústria fonográfica.




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