A música popular de
sucesso esconde um drama subliminar: a tensão entre o beat, ritmo, melodia e
harmonia. E essa tensão é resolvida pelas seguintes maneiras: imposição de uma
estrutura circular, o tempo padrão, a linguagem tatibitate e dependência oral e
a auto-referência. Se Freud estiver correto ao afirmar que toda produção
simbólica humana como a arte, religião e mitologia partilham do mesmo processo
primário da elaboração neurótica do inconsciente como o devaneio, o sonho e o
pensamento infantil, essa tensão presente na música seria aquela existente
entre inconsciente e sociedade. A diferença, é que no hit popular essa tensão é
mais ampla: a luta entre as necessidades mercadológicas da indústria do
entretenimento e a liberdade.
“Ai Se Eu Te Pego” de Michel Teló, “Vem Dançar com Tudo” de
Robson Moura e Lino Krizz (tema da novela "Avenida Brasil" da TV Globo) e “Eu
Quero Tchu Eu Quero Tcha” de João Lucas e Marcelo. Por mais que torçamos o
nariz para esses hits efêmeros, temos que admitir que esses produtos midiáticos
expõem de forma explícita os mecanismos de criação da indústria do
entretenimento. São exemplos didáticos pelo seu esquematismo, repetição e
clichê.
Ouvir essas músicas não é apenas um tipo de entretenimento,
mas em termos de conteúdo significa viver. Numa análise estrutural da harmonia
das canções populares percebe-se uma estrutura básica periódica ou cíclica
refrões e riffs que se repetem criando uma tensão que aprisiona a melodia. A
música termina sempre exatamente onde começou, o que explica, em geral, o final
da canção terminar lentamente em BG: nenhum processo é concluído porque nada
aconteceu.
Para pesquisadores alemães sobre a canção de massas como S. Schädler (“Das Zyklische und das Repetitive: Zur Struktur populärer Musik” In: Prokop,
Dieter: Medienforschung, 2011) e Carmen Lakaschus (“Die Kommunikationswirkung des
Werbefernsehens”, Bauer, 1973) , o tempo cíclico das canções corresponde à própria
natureza cíclica dos eventos da vida cotidiana: amor, objetos, sexualidade,
natureza etc.
Ao analisar o fenômeno da música de massas esses pesquisadores aproximam-se
bastante das ideias sobre emoção estética em Freud como descarga (neurótica) de
intensidades afetivas por meio de condensações e deslocamentos (em termos
linguísticos por metáforas e metonímias). Schadler faz uma interessante análise
estrutural da canção popular ao descrever uma espécie de “drama subliminar” que
ocorreria no interior de cada sucesso: afetos, emoções, aspirações e desejos em
tensão com a ordem social do tempo cíclico e repetitivo das normas e demandas sociais,
representados na música na tensão entre ritmo, riffs e refrões cíclicos que
confinam da melodia.
Os momentos progressivos da estrutura musical erudita em Charles Mingus: o desenvolvimento do tema |
Estrutura musical erudita X estrutura cíclica
Na estrutura erudita (o que não significa somente a música
clássica) o tempo na música possui um caráter transformador: o tema (a melodia
inicial) é anunciado para ser desenvolvido em fugas (como na música clássica)
ou nos solos instrumentais do jazz. Um motivo é usado repetidamente criando uma
tensão com o tema que se desenvolve até retornar à melodia inicial,
encerrando-se a música. O tempo cíclico da vida cotidiana é dessa maneira
simbolizado em uma “condensação”. Pegue o exemplo de “Orange Was the Color of
Her Dress” de Charles Mingus (veja vídeo abaixo) onde o tema lânguido inicial é desenvolvido
passando por diversos solos que dialogam com um motivo que se repete fazendo a
transição das diferentes “fugas”. Dessa maneira revivemos simbolicamente o
drama do dia-a-dia (catarse).
Na estrutura erudita a melodia é igualmente prisioneira do
tempo cíclico, porém o tempo é transformador: o tema é desenvolvido em todas as
variações e possibilidades podendo criar momentos “progressivos” para o
psiquismo do ouvinte – transcendência ou até epifania, embora, ao final,
retornarmos à repetição do cotidiano.
Ao contrário, Schadler argumenta que na música de massas
esse tempo cíclico da própria vida é “purificado”, superficializado e
quantificado: a melodia é ordenada em trechos repetitivos, sem conexão interna
e sem alterações.
Por exemplo, em “Ai Se Eu Te Pego” a melodia, cantada por
Teló pelo riff repetitivo da sanfona fazendo a harmonia, vai num crescendo até
ser cortada pelo refrão “ai se eu te pego”. O tema não é desenvolvido, sugere
uma fuga com o crescimento da melodia, mas é imediatamente contida pelo refrão.
A crítica feita aos hits de que são meramente repetitivos e
clichês esconde a dramaticidade, tensão e dinamismo presentes no arranjo da
música popular que reflete a derrota dos ouvintes diante do princípio de
realidade.
“Uma dramaticidade muito especial realiza-se diante dos nossos ouvidos (...) o drama da depreciação do hot [a melodia] pelo padrão, a dramaticidade da negação daquilo que é livre, que já reside no interior do hot, a dramaticidade do estabelecimento do preciso, do calculável, seu triunfo sobre o desviante, a eliminação do tempo qualitativo pelo quantitativo. Contra a primeira suposição de ter encontrado na área da música popular uma fuga do cíclico, encontramos a interferência, o estabelecimento do repetitivo no cíclico. Esse é o segredo da música popular”. (Schädler, S. “Das Zyklische und das Repetitive: Zur Struktur populärer Musik e Lakaschus” In: Prokop, Dieter: Medienforschung, 2011, p.56).
Por isso a música popular é curta, em torno de 2 minutos e 3
minutos e 45 segundos: qualquer prolongamento além desse decurso crítico
poderia expor, de forma explosiva, a insustentabilidade dessa estrutura de
coexistência dessas duas formas de tempo – a melodia contra as formas cíclicas
dos riffs e refrão.
Linguagem tatibitate
Musica de massas e dependência oral: infatilização dos ouvintes |
“Ai – ai - ai”; “oi – oi - oi”; tchu- tcha – tchu – tchá”. A
primeira coisa que chama a atenção nesses hits são os refrões repletos de
vogais. Segundo os estudos de fonologistas, uma características marcante da
língua portuguesa brasileira é a perceptível pronúncia das vogais, sejam
tônicas ou átonas, ao contrário de Portugal onde se prenuncia melhor as
tônicas. Parece que os hits aproveitam essas características fonológica
brasileira e exploram as vogais, porém de forma regressiva através da infantilização
do “tatibitate”.
A expressão “tatibitate” refere-se um distúrbio onde se
conserva voluntariamente a linguagem infantil (por exemplo, “qué aca” como
quero água.). Theodor Adorno em seu texto “Sobre a Música Popular” de 1941 já
detectava a “fala de criança” na linguagem musical para sugerir dependência
(Veja ADORNO, Theodor. “Sobre a Música Popular”, In: COHN, Gabriel (org.) Theodor W. Adorno, coleção grandes
cientistas sociais 54, São Paulo: Ática).
Assim como adultos reforçam na criança esse tipo de fala ao
achar “fofinho” quando ela diz “nenê qué bincá”, da mesma forma a indústria do
entretenimento incentiva através dos refrões a dependência infantil pelas
vogais repetidas com repetição e ritmo.
“Poerááá, levantou poerááá...” A tensão psíquica entre
melodia, harmonia e refrões é aliviada pelas bocas abertas pronunciando as
vogais, assim como o bebê abre a boca pronto para receber o alimento. Essa é a
chamada “dependência oral”, tão estudada nos estudos sobre consumismo,
viciosidade e compulsividade. O drama subliminar da música de sucesso aliviado
pelo prazer regressivo à memória atávica da experiência de maior prazer nas
nossas vidas: a dependência oral. Isso talvez explique o porquê do adulto
regredir a essa forma de prazer a cada momento de perda ou de ansiedade diante
de um objeto de desejo ou amor: cigarro, chiclete, devorar uma caixa de
bom-bons, “encher a cara”. Talvez essa seja a origem psíquica da expressão que se
refere ao sujeito embriagado: “ele está mamado!”.
Auto-referência
"Eu quero tchu eu quero tcha": a música auto-referencial |
O hit “Eu Quero Tchu Eu Quero Tchá” é curioso por ser uma
música auto-referencial (os teóricos diriam indicial ou fática): a letra
descreve como o ritmo surgiu em Goiânia e se espalhou pelo Brasil. A música
fala do porquê estamos com os ouvidos colados nela – se a estamos ouvindo, é
porque é um sucesso. Essa circularidade de sentido (a letra fala não só dela
mesma, mas sobre a sua própria transmissão) reforça a própria circularidade
estrutural que descrevemos acima.
Esse deslocamento metonímico da tensão psíquica para a linguagem
infantilizada da dependência oral e para a auto-referência fática talvez seja o
segredo da música para massas. Se Freud falava dos processos primários básicos
de elaboração do inconsciente (por condensação e deslocamento), a indústria do
entretenimento privilegia o segundo onde, por meio de metonímias, cria formas
substitutivas de prazer que evitam que o tema melódico se estenda e seja
desenvolvido.
Se Adorno dizia que toda ideologia tem um momento de verdade,
a música de massas tem o seu. Ela não é mera repetição de clichês, mas dentro
acontece uma luta dramática entre forma e conteúdo, melodia e harmonia. Talvez seja o reflexo de um conflito bem
concreto entre o músico compositor e o produtor musical no interior da indústria
fonográfica.
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