“We’re All Going to the World’s Fair” (2022), da cineasta trans Jane Schoenbrun, é um filme com aquela estranheza que é cada vez mais valorizada e desejada em diferentes gêneros: um filme experimental com um mix de estética de videoarte, creepypasta, game de computador RPG on line e videochamadas no Zoom. Um filme estranho que tem muito a nos dizer sobre as origens místicas que motivam o atual desenvolvimento das ciberutopias por trás de games, aplicativos e o desejo pela imersão nos mundos virtuais. E que vai muito além das velhas fantasias escapistas do cinema e TV: têm a ver com o milenar sonho da imortalidade, para escapar da gnóstica relação de alienação e estranhamento com o mundo. Principalmente no adolescente, perdido entre a infância e a vida adulta. Para ele, o sonho tecnognóstico passa a ser cada vez mais sedutor.
As novas tecnologias computacionais produziram uma nova cultura tecnófila que trás em seu núcleo um desejo místico e gnóstico de imortalidade. Transcender a carne seria o emocional subtexto a cada eufórica resposta ao lançamento de um novo aplicativo ou o lançamento de um novo web site com frivolidades.
Essa é a tese do pesquisador norte-americano Theodore Roszak no seu livro “From Satori to Silicon Valley – Nerds, Zombies and the flight to mortality”. Nesse livro, Roszak descreve o início da ciberutopia que hoje é o drive de toda a engenharia computacional e Inteligência artificial – a surpreendente convergência entre tecnologia e misticismo: o tecnognosticismo.
Uma convergência que começou na contracultura dos anos 1960 que viu nas drogas lisérgicas uma possibilidade do atalho espiritual para Satori, um atalho para a transcendência. Logo depois, viu que a própria tecnologia computacional e, um pouco depois, o surgimento da realidade virtual e do ciberespaço, eram uma resposta mais “limpa” para a transcendência tecnognóstica – a fusão entre a carne e tecnologia, um voo para imortalidade no céu da informação digital.
Timothy Leary, o psiquiatra entusiasta das viagens espirituais através do LSD, foi um bom exemplo: no final da vida, viu nos computadores e na RV um substituto mais poderoso do que as drogas lisérgicas – a viagem no ciberespaço como uma viagem espiritual.
O desejo pela imortalidade pode ser algo milenar, presente em mitos e religiões por milênios. Mas nas sociedades contemporâneas, ela fica ainda mais forte pelo mal-estar da alienação e estranhamento resultante seja por questões socioeconômicas, culturais ou psíquicas: exclusão econômica ou social, tédio, monotonia ou sensação de não pertencimento em um mundo cujas forças parecem estar totalmente fora do nosso controle.
O filme indie We’re All Going to the World’s Fair (2022) explora uma subcultura atual que ecoa esse estado de alienação e estranhamento em todos nós, porém muito mais intensamente no adolescente: a “creepypasta” – histórias de terror e lendas urbanas divulgadas através da Internet, uma extensão millennial do fenômeno do filme Bruxa de Blair em 1999.
Não como não assistir a esse filme e não lembrar dos vídeos da figura assombrosa do Slenderman, principalmente o episódio sobre duas meninas nos EUA que ficaram convencidas de que Slenderman queria que elas oferecessem um sacrifício de sangue, resultando num assassinato de uma jovem.
O filme se concentra em uma jovem rebelde e doentiamente obcecada com o folclore de terror da Internet. A protagonista, Casey (Anna Cobb, hipnótica em sua estreia como atriz), é uma adolescente solitária que começa a gravar vídeos de si mesma participando de um RPG online chamado “We're All Going to the World's Fair”.
Casey mergulha nisso, e seus vídeos implicam que ela também está perdendo o controle de si mesma à medida que se torna mais imersa no mundo da Feira Mundial.
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Numa perspectiva que lembra bastante a cinematografia de David Cronenberg, para Casey tudo aquilo é muito mais do que um simples jogo de RPG on line. Acompanhamos ao longo do filme como a protagonista quer transformar o lúdico numa jornada de amadurecimento que, para ela, deve se consistir unicamente em desaparecer desse mundo para fundir seu corpo com o mundo virtual da “Feira Mundial” – a sequência da jovem passando o sangue do seu dedo na tela do computador como senha para entrar no jogo é altamente simbólica.
O Filme
“Juro, algum dia em breve eu só vou desaparecer... e você não terá nenhuma ideia do que aconteceu comigo!”. Esse é o mantra de Casey, citado em algumas linhas de diálogo do filme, que sintetiza toda a relação de alienação e estranhamento com sua própria vida. Por isso, o “Desafio da Feira Mundial” se reveste para ela de uma importância maior do que um simples entretenimento: Casey pretende ser simplesmente abduzida de sua existência.
Para ela, o jogo é uma cerimônia de iniciação, que começa com a frase “Eu quero ir à Feira Mundial” repetida três vezes e o dedo gentilmente espetado com uma agulha para o sangue ser escorrido na tela do computador.
Casey acompanha vídeos de outros jogadores sobre os tipos de transformações que podem ocorrer com o participante durante o RPG: alguns se sentem possuídos, alguns sentem como se um jogo de Tetris estivesse sendo jogado dentro de seu corpo (possivelmente o mais estranho), e alguns são engolidos inteiros por seus computadores. É uma incógnita o que estaria reservado para Casey.
Lentamente, porém, o passeio experimental escorregadio e visceral (e às vezes monótono para o espectador) introduz sustos na existência da jovem que são vários tons mais escuros do que qualquer promessa da “Feira Mundial”. Casey é solitária – tão solitária na verdade que nunca conseguimos conhecer seus amigos ou pais, embora um deles faça uma aparição apenas auditiva e grite para que Casey abaixe o volume dos vídeos no computador. São apenas presenças inconsequentes em sua adolescência nascente, que ela prefere navegar sozinha, em meio às águas escuras da internet.
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Os arredores dela apenas sublinham sua condição de alienação e estranhamento - uma cidade gelada e pouco descrita, escassamente povoada com estradas vazias e shoppings sem alma - você dificilmente pode culpá-la por procurar excitação e um sentimento de pertencimento na Internet. Casey passa a maior parte do tempo em seu quarto no sótão, decorado com estrelas aconchegantes que brilham no escuro. Quando ela não consegue dormir, as luzes piscantes e as vozes suaves dos vídeos ASMR (resposta autônoma do meridiano sensorial) fazem companhia a ela.
Depois de um primeiro ato descritivo sobre Casey, sua vida e suas fantasias escapistas através do jogo, o filme acrescente o elemento de drama na estória: Uma conta de um outro jogador, chamado “JLB” e que pertence a um homem muito mais velho (Michael J. Rogers) rapidamente faz amizade com Casey. O que se segue parece um relato arrepiante de aliciamento – “Estou preocupado com você”, afirma JLB, insistindo que quer proteger Casey – JLB a adverte dos simbolismos místicos ocultos na “Feira Mundial”. Mas quem exatamente é esse homem por trás de seu alarmante avatar em preto e branco que parece uma capa de álbum de death metal desenhada à mão? Ele é uma presença ameaçadora com uma agenda abusiva?
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Em um movimento inesperado e bastante inteligente, a narrativa decide levantar a cortina, para nos mostrar que JLB é um homem solitário morando em uma casa genérica de molduras brancas e banheiros de mármore que não poderiam ser mais comuns ou suburbanos. Um vazio semelhante à de Casey permeia visivelmente sua vida.
Casey corresponde ao personagem gnóstico do “Estrangeiro”, uma figura da mais exploradas em diversos gêneros: o personagem que pressente a inautenticidade do mundo onde ele se encontra. Aquele que demonstra desdém aos papéis sociais, padrões, modelos de felicidade. É um melancólico. Pretende se reconhecer no submundo, nas ruínas, em todos os lugares que estão acabando, no erro, no suicídio, na morte. Aquele que mantém uma relação de estranhamento e mal-estar onde vive, sentindo-se como um estrangeiro na sua própria família, trabalho ou sociedade.
Por isso, Casey parece viver numa lacuna entre o real e o virtual, assim como a adolescência é uma espécie de “nowhere” entre a infância e a vida adulta.
We’re All Going to the World’s Fair é um estudo em narrativa “queima lenta” (slow burn) da melancolia que envolve a relação do jovem com os jogos on line, que vai muito além das clássicas fantasias escapistas dos meios de comunicação de massa – o desejo de viver sonhos por procuração em filmes e publicidade.
Hoje Internet, games e aplicativos nutrem o desejo da imersão, da fusão cronenberguiana da carne decadente com a virtualidade eterna. Mais um exemplo daquilo que Theodore Roszak apontava nas origens das ciberutopias que animam as tecnologias de convergência: o místico e o Oculto animando os sonhos de imortalidade através da tecnociência.
Ficha Técnica
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Título: We’re All Going to the World’s Fair |
Diretor: Jane Schoenbrun |
Roteiro: Jane Schoenbrun |
Elenco: Anna Cobb, Michael Rogers, Holly Anne Frink |
Produção: Dweck Productions, Flies Collective |
Distribuição: Utopia |
Ano: 2022 |
País: EUA |