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O terror dos tempos do chamado “neo-liberalismo progressista” onde nunca se viu corporações e mídia tão preocupadas com palavras como “empatia”, “vulnerabilidade” e “capacitismo” dentro de regras e comportamentos. Até que os irmãos cineastas australianos Danny e Michael Philippou transformaram esses temas em inspiração para o subgênero de terror “body insertion” com o filme "Faça Ela de Volta" (Bring Her Back, 2025): explora com maestria nossos instintos protetores em relação aos vulneráveis, nosso medo da própria vulnerabilidade, a vergonha e a culpa do abuso e o miserável senso de lealdade dos sobreviventes para com seus agressores. Numa casa isolada um casal de irmãos adotados descobre que estão prisioneiros de um ritual aterrorizante que lida com o luto e a morte de uma forma bem peculiar.
O capitalismo em sua versão neoliberal-progressista do século XXI
vivencia um espírito do tempo paradoxal. De um lado temos o predatismo da
meritocracia e do todos-contra-todos do darwinismo social. O que alimenta uma
cultura ao mesmo tempo niilista e hedonista, isto é, focada numa espécie de
eterno presente, sem um investimento simbólico no futuro, apenas pensando na
recompensa do curtíssimo prazo.
E do outro, a agenda politicamente correta da empatia, tolerância
e a crítica ao capacitismo e todo sistema de criação de desigualdades a partir
da crença de que os deficientes seriam menos capazes.
Ao mesmo tempo, é uma sociedade supostamente progressista em
termos de normas e comportamentos, mas comandada por uma elite tecnológica que dá
continuidade à mitologia mais segregacionista e supremacista, de origem
milenar: a busca da imortalidade, para a elite terrena viver eternamente ao
lado dos deuses.
Dos segredos da busca da imortalidade na mumificação dos faraós
nas pirâmides do Antigo Egito à utopia tecnognóstica do Vale do Silício atual
(a digitalização da consciência e o upload final para um servidor), a mitologia
de uma elite imortal permanece.
O cinema e o audiovisual, do sci-fi ao terror, já vem nos últimos
anos narrando essa utopia tecnognóstica em produções como, por exemplo, Transcendence
(2014), série Altered Carbon (2018), Paraíso (2023) e Mountainhead
(2025).
É marcante a recorrência de produções sobre personagens cujo corpo
e mente foi possuído tecnologicamente – possuído outras pessoas cuja mente foi
digitalizada ou transferida, em busca de novos corpos para habitar. A garantia
da imortalidade com o auxílio de uma tecnologia computacional sinistra que
transforma os corpos e mentes alheias em meros espaços vazios à espera de uma
mente invasora.
É o subgênero “body insertion”: a habilidade tecnológica de
inserir a mente de alguém no corpo do outro. Uma combinação de possessão com
troca de mentes.
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Mas o filme Faça Ela de Voltar (Bring Her Back , 2025), dos irmãos cineastas australianos Danny e Michael Philippou (Talk to Me) vai para além das representações fílmicas tecnognósticas, expandindo o conceito: a imortalidade é aqui também buscada. Mas dessa vez não mais por sofisticados softwares que fazem rastreios neurais para digitalizar a consciência. Mas dessa vez por uma tecnologia, por assim dizer, milenar, oculta, analógica e esotérica.
Definitivamente, Faça Ela de Voltar é o terror desse espírito
do tempo de uma sociedade que supostamente empodera a empatia e o anti-capacitismo:
transforma em conto de terror e a
vulnerabilidade o instrumento ideal para a busca da imortalidade por uma elite.
Mas, dessa vez, uma elite detentora de conhecimentos iniciáticos de natureza
esotérica.
Por isso é um terror incômodo, provocativo, bravatas macabras e
horror e desespero abjetos.
Após uma sequência de abertura no estilo found footage,
retratando um ritual oculto perturbador, Faça Ela de Voltar nos
apresenta os meio-irmãos Piper (Sora Wong) e Andy (Billy Barratt), ambos muito
unidos. Logo descobrimos que Andy, de 17 anos, se sente responsável por
proteger a irmã mais nova, que é praticamente cega. Então, depois de
encontrarem o pai ensanguentado, respingado de vômito e morto no chuveiro, faz
sentido que Andy — que está a três meses de completar 18 anos e poder se tornar
o tutor legal de Piper — lute para ficar ao lado dela enquanto são entregues
aos serviços de proteção à criança.
Que história apavorante de terror, inclusive físico, poderia
emergir de uma situação tão pungente de vulnerabilidade, de um irmão que luta
contra os preconceitos capacitistas na escola contra sua irmã mais nova e de
uma assistente social procurando o melhor lar para irmãos que não querem se
separar?
Mas encontraram pela frente uma dupla de cineastas que evoluíram
dos esquetes de terror do YouTube para longas-metragens com o bem-sucedido Talk
to Me (2022), no qual a comunicação com os mortos se torna uma febre nas
redes sociais, mas traz um caso grave de possessão demoníaca para um lar
australiano.
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Assim como aquele filme, Faça Ela de Voltar aborda
relacionamentos entre irmãos, possessão (de certa forma) e o heroísmo pouco
reconhecido de adolescentes que são facilmente tachados de crianças
problemáticas. Novamente, o motor da trama é a necessidade de um irmão mais
velho de salvar o mais novo de um destino terrível. No entanto, Bring Her
Back adiciona um adulto que adotará os irmãos, uma idosa já veterana em
serviços sociais de atendimento, guarda e adoção de menores em situação de
vulnerabilidade.
Mas dessa vez, com aquele casal de irmãos, a agenda será muito
mais sinistra. E tentará se aproveitar da respeitabilidade que uma servidora
social goza na sociedade.
O Filme
O Serviço Social acaba entregando Piper e Andy para Laura (Sally
Hawkins) que está de luto pela perda recente da própria filha (cega) e já cuida
de um garoto aparentemente mudo chamado Oliver (Jonah Wren Phillips).
Ela é assustadoramente amigável, falante, com risadas forçadas e
piadas equivocadas. E uma máscara de mãe que cai quando Andy revela que, em seu
aniversário de 18 anos, pretende pedir a guarda parental de Piper e que eles se
mudarão daquela estranha casa, com uma piscina triangular vazia destinada a ser
preenchida com água da chuva.
Laura, está realmente interessada apenas em Piper, já que ela tem
algumas semelhanças impressionantes com a falecida filha de Laura, Cathy
(Mischa Heywood), que se afogou na piscina deles. Na verdade, é óbvio que Laura
preferiria que Andy nem estivesse lá.
Andy se torna um empecilho para alguma agenda secreta que Laura
tem em mente. Por isso, coloca em ação um plano para tornar Andy um irmão
instável e pouco confiável para aterrorizar Piper sutilmente. E preferir ficar
com ela, mandando Andy embora.
Aos poucos, Piper e Andy vão descobrindo mais sobre o garoto mudo
e aparentemente perturbado chamado Oliver, que ela apresenta como seu sobrinho
e frequentemente mantém trancado em seu quarto. Mas, à medida que o
comportamento de Oliver se torna cada vez mais violento e as tentativas de
Laura de criar uma divisão entre Piper e Andy se tornam cada vez mais
flagrantes, fica claro que o que Laura realmente pretende é muito mais sombrio
e nefasto do que simplesmente não querer o adolescente problemático Andy se torne
tutor de Piper.
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Aos poucos vamos reunindo informações e suspeitas aqui e ali sobre
as intenções nada empáticas de Laura com os irmãos Piper e Andy. Em particular,
Laura gosta de assistir a uma certa fita de vídeo VHS – uma relíquia cuja
singularidade antiga é dotada de algo sobrenatural – que ela talvez tenha
comprado na dark web; uma fita mostrando um grupo de iniciados russos em
rituais ocultistas aterrorizantes com ideias incomuns sobre como lidar com o
luto e a perda... ideias que Laura quer colocar em prática.
O irmão protetor Andy chega à assustadora conclusão que Piper
corre de alguma maneira risco ao descobrir que o suposto sobrinho mudo Oliver é
na verdade um menino local desaparecido. Desesperadamente tenta alertar os
responsáveis do Serviço Social. Uma missão cada vez mais difícil, já que o
plano de Laura está dando certo: Andy cada vez mais fica com uma imagem de
violento e instável.
“Body Insertion” – Alerta de Spoilers à frente
Faça Ela de Voltar é um
filme difícil que nunca oferece ao espectador qualquer alívio real enquanto se
encaminha para uma conclusão cruel e sombria. Mas para os fãs de terror que
buscam quase 100 minutos de terror implacável, este filme provavelmente cumpre
o que promete.
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Laura, levada a uma angústia avassaladora pela morte da filha,
está tentando usar o mesmo ritual que vislumbramos nos minutos iniciais do
filme para tentar ressuscitar Cathy, cujo cadáver congelado ela mantém
escondido em um galpão trancado. O rito envolve a transferência do espírito do
morto para o corpo de outra pessoa por meio de um hospedeiro possuído. Mais
especificamente, o hospedeiro possuído precisa consumir o morto antes de purgar
seus restos mortais na boca de uma pessoa que é sacrificada da mesma maneira
que o falecido morreu originalmente. Ainda mais especificamente, um Oliver
possuído — que na verdade não é sobrinho de Laura, mas sim um garoto que ela
sequestrou, chamado Connor — terá que comer o corpo de Cathy e depois vomitá-la
na boca de Piper depois que Laura terminar de afogá-la na piscina, completando
assim a transferência de alma.
Faça Ela de Voltar é um terror
que explora com maestria nossos instintos protetores em relação aos
vulneráveis, nosso medo da própria vulnerabilidade, a vergonha e a culpa do
abuso e o miserável senso de lealdade dos sobreviventes para com seus
agressores.
Conhecimentos arcanos e iniciáticos. É isso que Laura procura
naquela fita VHS. Certamente motivada pela culpa (sua filha cega morreu afogada
na piscina) tenta trazê-la de volta. O sonho tecnognóstico. Só que dessa vez sem
alta tecnologia computacional. Mas contando com o velho conhecimento ocultista,
horrivelmente analógico.
Ficha Técnica |
Título: Bring
Her Back |
Diretor: Danny
e Michael Philippou |
Roteiro: Danny Philippou e
Bill Hizman |
Elenco: Billy Barratt, Sally
Hawkins, Mischa Heywood, Jonah Wren Phillips |
Produção: Causeway Films, The
South Australian Film Corporation |
Distribuição: Sony Pictures
Releasing |
Ano: 2025 |
País: Austrália |