sábado, setembro 06, 2025

'Faça Ela Voltar': quando a empatia aos vulneráveis inspira um conto de terror



O terror dos tempos do chamado “neo-liberalismo progressista” onde nunca se viu corporações e mídia tão preocupadas com palavras como “empatia”, “vulnerabilidade” e “capacitismo” dentro de regras e comportamentos. Até que os irmãos cineastas australianos Danny e Michael Philippou transformaram esses temas em inspiração para o subgênero de terror “body insertion” com o filme "Faça Ela de Volta" (Bring Her Back, 2025): explora com maestria nossos instintos protetores em relação aos vulneráveis, nosso medo da própria vulnerabilidade, a vergonha e a culpa do abuso e o miserável senso de lealdade dos sobreviventes para com seus agressores. Numa casa isolada um casal de irmãos adotados descobre que estão prisioneiros de um ritual aterrorizante que lida com o luto e a morte de uma forma bem peculiar.

O capitalismo em sua versão neoliberal-progressista do século XXI vivencia um espírito do tempo paradoxal. De um lado temos o predatismo da meritocracia e do todos-contra-todos do darwinismo social. O que alimenta uma cultura ao mesmo tempo niilista e hedonista, isto é, focada numa espécie de eterno presente, sem um investimento simbólico no futuro, apenas pensando na recompensa do curtíssimo prazo.

E do outro, a agenda politicamente correta da empatia, tolerância e a crítica ao capacitismo e todo sistema de criação de desigualdades a partir da crença de que os deficientes seriam menos capazes.

Ao mesmo tempo, é uma sociedade supostamente progressista em termos de normas e comportamentos, mas comandada por uma elite tecnológica que dá continuidade à mitologia mais segregacionista e supremacista, de origem milenar: a busca da imortalidade, para a elite terrena viver eternamente ao lado dos deuses.

Dos segredos da busca da imortalidade na mumificação dos faraós nas pirâmides do Antigo Egito à utopia tecnognóstica do Vale do Silício atual (a digitalização da consciência e o upload final para um servidor), a mitologia de uma elite imortal permanece.

O cinema e o audiovisual, do sci-fi ao terror, já vem nos últimos anos narrando essa utopia tecnognóstica em produções como, por exemplo, Transcendence (2014), série Altered Carbon (2018), Paraíso (2023) e Mountainhead (2025).

É marcante a recorrência de produções sobre personagens cujo corpo e mente foi possuído tecnologicamente – possuído outras pessoas cuja mente foi digitalizada ou transferida, em busca de novos corpos para habitar. A garantia da imortalidade com o auxílio de uma tecnologia computacional sinistra que transforma os corpos e mentes alheias em meros espaços vazios à espera de uma mente invasora.

É o subgênero “body insertion”: a habilidade tecnológica de inserir a mente de alguém no corpo do outro. Uma combinação de possessão com troca de mentes.



Mas o filme Faça Ela de Voltar (Bring Her Back , 2025), dos irmãos cineastas australianos Danny e Michael Philippou (Talk to Me) vai para além das representações fílmicas tecnognósticas, expandindo o conceito: a imortalidade é aqui também buscada. Mas dessa vez não mais por sofisticados softwares que fazem rastreios neurais para digitalizar a consciência. Mas dessa vez por uma tecnologia, por assim dizer, milenar, oculta, analógica e esotérica.

Definitivamente, Faça Ela de Voltar é o terror desse espírito do tempo de uma sociedade que supostamente empodera a empatia e o anti-capacitismo:  transforma em conto de terror e a vulnerabilidade o instrumento ideal para a busca da imortalidade por uma elite. Mas, dessa vez, uma elite detentora de conhecimentos iniciáticos de natureza esotérica.

Por isso é um terror incômodo, provocativo, bravatas macabras e horror e desespero abjetos.

Após uma sequência de abertura no estilo found footage, retratando um ritual oculto perturbador, Faça Ela de Voltar nos apresenta os meio-irmãos Piper (Sora Wong) e Andy (Billy Barratt), ambos muito unidos. Logo descobrimos que Andy, de 17 anos, se sente responsável por proteger a irmã mais nova, que é praticamente cega. Então, depois de encontrarem o pai ensanguentado, respingado de vômito e morto no chuveiro, faz sentido que Andy — que está a três meses de completar 18 anos e poder se tornar o tutor legal de Piper — lute para ficar ao lado dela enquanto são entregues aos serviços de proteção à criança.

Que história apavorante de terror, inclusive físico, poderia emergir de uma situação tão pungente de vulnerabilidade, de um irmão que luta contra os preconceitos capacitistas na escola contra sua irmã mais nova e de uma assistente social procurando o melhor lar para irmãos que não querem se separar?

Mas encontraram pela frente uma dupla de cineastas que evoluíram dos esquetes de terror do YouTube para longas-metragens com o bem-sucedido Talk to Me (2022), no qual a comunicação com os mortos se torna uma febre nas redes sociais, mas traz um caso grave de possessão demoníaca para um lar australiano.



Assim como aquele filme, Faça Ela de Voltar aborda relacionamentos entre irmãos, possessão (de certa forma) e o heroísmo pouco reconhecido de adolescentes que são facilmente tachados de crianças problemáticas. Novamente, o motor da trama é a necessidade de um irmão mais velho de salvar o mais novo de um destino terrível. No entanto, Bring Her Back adiciona um adulto que adotará os irmãos, uma idosa já veterana em serviços sociais de atendimento, guarda e adoção de menores em situação de vulnerabilidade.

Mas dessa vez, com aquele casal de irmãos, a agenda será muito mais sinistra. E tentará se aproveitar da respeitabilidade que uma servidora social goza na sociedade.

O Filme

O Serviço Social acaba entregando Piper e Andy para Laura (Sally Hawkins) que está de luto pela perda recente da própria filha (cega) e já cuida de um garoto aparentemente mudo chamado Oliver (Jonah Wren Phillips).

Ela é assustadoramente amigável, falante, com risadas forçadas e piadas equivocadas. E uma máscara de mãe que cai quando Andy revela que, em seu aniversário de 18 anos, pretende pedir a guarda parental de Piper e que eles se mudarão daquela estranha casa, com uma piscina triangular vazia destinada a ser preenchida com água da chuva.

Laura, está realmente interessada apenas em Piper, já que ela tem algumas semelhanças impressionantes com a falecida filha de Laura, Cathy (Mischa Heywood), que se afogou na piscina deles. Na verdade, é óbvio que Laura preferiria que Andy nem estivesse lá.

Andy se torna um empecilho para alguma agenda secreta que Laura tem em mente. Por isso, coloca em ação um plano para tornar Andy um irmão instável e pouco confiável para aterrorizar Piper sutilmente. E preferir ficar com ela, mandando Andy embora.

Aos poucos, Piper e Andy vão descobrindo mais sobre o garoto mudo e aparentemente perturbado chamado Oliver, que ela apresenta como seu sobrinho e frequentemente mantém trancado em seu quarto. Mas, à medida que o comportamento de Oliver se torna cada vez mais violento e as tentativas de Laura de criar uma divisão entre Piper e Andy se tornam cada vez mais flagrantes, fica claro que o que Laura realmente pretende é muito mais sombrio e nefasto do que simplesmente não querer o adolescente problemático Andy se torne tutor de Piper.



Aos poucos vamos reunindo informações e suspeitas aqui e ali sobre as intenções nada empáticas de Laura com os irmãos Piper e Andy. Em particular, Laura gosta de assistir a uma certa fita de vídeo VHS – uma relíquia cuja singularidade antiga é dotada de algo sobrenatural – que ela talvez tenha comprado na dark web; uma fita mostrando um grupo de iniciados russos em rituais ocultistas aterrorizantes com ideias incomuns sobre como lidar com o luto e a perda... ideias que Laura quer colocar em prática.

O irmão protetor Andy chega à assustadora conclusão que Piper corre de alguma maneira risco ao descobrir que o suposto sobrinho mudo Oliver é na verdade um menino local desaparecido. Desesperadamente tenta alertar os responsáveis do Serviço Social. Uma missão cada vez mais difícil, já que o plano de Laura está dando certo: Andy cada vez mais fica com uma imagem de violento e instável.

“Body Insertion” – Alerta de Spoilers à frente

Faça Ela de Voltar é um filme difícil que nunca oferece ao espectador qualquer alívio real enquanto se encaminha para uma conclusão cruel e sombria. Mas para os fãs de terror que buscam quase 100 minutos de terror implacável, este filme provavelmente cumpre o que promete.



Laura, levada a uma angústia avassaladora pela morte da filha, está tentando usar o mesmo ritual que vislumbramos nos minutos iniciais do filme para tentar ressuscitar Cathy, cujo cadáver congelado ela mantém escondido em um galpão trancado. O rito envolve a transferência do espírito do morto para o corpo de outra pessoa por meio de um hospedeiro possuído. Mais especificamente, o hospedeiro possuído precisa consumir o morto antes de purgar seus restos mortais na boca de uma pessoa que é sacrificada da mesma maneira que o falecido morreu originalmente. Ainda mais especificamente, um Oliver possuído — que na verdade não é sobrinho de Laura, mas sim um garoto que ela sequestrou, chamado Connor — terá que comer o corpo de Cathy e depois vomitá-la na boca de Piper depois que Laura terminar de afogá-la na piscina, completando assim a transferência de alma.

Faça Ela de Voltar é um terror que explora com maestria nossos instintos protetores em relação aos vulneráveis, nosso medo da própria vulnerabilidade, a vergonha e a culpa do abuso e o miserável senso de lealdade dos sobreviventes para com seus agressores. 

Conhecimentos arcanos e iniciáticos. É isso que Laura procura naquela fita VHS. Certamente motivada pela culpa (sua filha cega morreu afogada na piscina) tenta trazê-la de volta. O sonho tecnognóstico. Só que dessa vez sem alta tecnologia computacional. Mas contando com o velho conhecimento ocultista, horrivelmente analógico.


 

 

Ficha Técnica

 

Título:  Bring Her Back

Diretor: Danny e Michael Philippou

Roteiro: Danny Philippou e Bill Hizman

Elenco: Billy Barratt, Sally Hawkins, Mischa Heywood, Jonah Wren Phillips

Produção: Causeway Films, The South Australian Film Corporation

Distribuição: Sony Pictures Releasing

Ano: 2025

País: Austrália

 

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