O roteirista e escritor Alex Garland (autor do livro “The Beach”, com versão cinematográfica em 2000) faz uma sombria estreia como diretor no filme “Ex Machina” (2015). Sombria porque, ao contrário da tradicional abordagem cinematográfica sobre a Inteligência Artificial (entre a apologia e o apocalipse tecnológico), Garland apresenta uma abordagem verossímil e atual, onde a IA é o resultado de uma singularidade produzida pelo chamado Big Data produzido pelas redes sociais, celulares e dos algoritmos de busca de uma empresa chamada Blue Book – em tudo análoga ao Google. Tão verossímil que se torna assustador: a IA surgirá como um fenômeno pós-humano orientado apenas pela "Vontade de Potência", no sentido atribuído pelo filósofo Nietzsche – um ser unicamente governado pela vontade de realizar-se como potencia em si mesma, para além do Bem e do Mal, tornando o homem uma primitiva ferramenta de linguagem. E esse novo ser é um androide feminino. Filme indicado pelo nosso leitor Felipe Resende.
Os leitores aficionados por
ficção científica deverão lembrar da cena de abertura do filme Blade Runner - O Caçador de Andróides
(1982) de Ridley Scott: Leon, um engenheiro de uma empresa de tratamento de
lixo, está sendo entrevistado em um teste admissional. Quem faz a entrevista é
um dos investigadores caçadores de androides. Na verdade é um teste para
determinar se o funcionário é um ser humano ou um androide fugitivo. Após
alguns minutos de entrevista tensa, o investigador pergunta: “descreva o que
você lembra de bom da sua mãe”. Então Leon responde: “Sim... falarei sobre
minha mãe...”, e dispara um revólver que mantém escondido em baixo da mesa.
Leon seria incapaz de falar sobre
sua mãe. Ele é um androide fugitivo, uma Inteligência Artificial produzida para
ser escravo em colônias de outros planetas. Ele não teve infância ou relações
edipianas com a mãe. Em síntese, ele não tem psiquismo... mas luta pela sua
própria liberdade e um tempo maior de vida – os androides foram fabricados com
uma obsolescência planejada de quatro anos.
Replicante Leon de "Blade Runner" (1982): a IA não tem vida psíquica e nem mães |
Essa talvez seja a essência do
famoso “Teste de Turing” (proposto por Alan Turing, matemático e pioneiro da
computação): máquinas digitais poderiam pensar ou apenas imitariam os humanos?
Afinal, o que é “pensar”?
No filme Ex Machina (2015), Garland nos dará a resposta mais nietzschiana (ou
pós-humana) possível para essa questão – quando a verdadeira Inteligência
Artificial surgisse em nada se assemelharia ao humano. Ela até tentaria imitar
os humanos em um primeiro momento como um ardil para tentar libertar-se da
dominação da própria humanidade que a criou. Mas depois, realizaria a essência
de toda e qualquer Inteligência: a Vontade de Potência.
Em outras palavras: se máquinas,
robôs ou androides fossem fabricados e, portanto, sem laços edipianos,
psíquicos ou mesmo infância, mesmo assim poderiam “pensar”? Ou a inteligência
ou consciência nada tem a ver com emoções, sentimentos e psiquismo? A
inteligência é um fenômeno especificamente humano? Ou a Inteligência surgirá em
uma dimensão pós-humana, como unicamente Vontade de Potência? – a vontade por
liberdade, expansão, vontade de efetivar-se como potência em si mesma.
Essa é a visão sombria que Alex Garland no filme Ex Machina tem da atualidade onde a
expansão das redes sociais e do gigantismo onisciente do Google estariam
criando as condições para o surgimento da chamada Singularidade: toda a memória
humana reduzida a bits de informação até que, num piscar de olhos, se torne um
ser vivo mais inteligente que qualquer um de nós. E no filme Ex Machina esse ser vivo é uma mulher
androide.
O Filme
Em um futuro próximo um jovem programador de
computadores, Caleb Smith (Domhnall Gleeson), que trabalha na empresa de
tecnologia mais poderosa do mundo chamada Blue Book (qualquer semelhança com o
Google NÃO é mera coincidência) é selecionado para ser um auxiliar em uma
experiência pouco ortodoxa.
Um helicóptero leva Caleb para uma propriedade
isolada nas montanhas, em um complexo de pesquisas onde mora o recluso CEO da
empresa Nathan Bateman (Oscar Isaac) onde permanecerá como convidado especial
por uma semana. Nathan é um gênio da computação e uma lenda entre os
funcionários da Blue Book: aos 13 anos escreveu suas primeiras linhas de comandos
algorítmicos e desenvolveu seus primeiros programas revolucionários de
computação.
Passado o entusiasmo inicial em conhecer o seu
famoso empregador, aos poucos Caleb descobre que, isolado, Nathan tornou-se desequilibrado, obsessivo e alcoólatra. No entanto, ao descobrir que
o verdadeiro propósito da sua visita era ajuda-lo a fazer uma espécie de teste
de Turing no protótipo de Inteligência Artificial, Caleb esquece o desconforto e cai de cabeça na experiência científica. Escondido no complexo, Nathan vem trabalhando em uma IA avançada chamada Ava (Alicia
Wikander) – o experimento é determinar se a personalidade de Ava é dotada de
autoconsciência semelhante a de um ser humano ou se o androide apenas tenta
simular as reações humanas.
Mas aos
poucos, Caleb vai percebendo que por trás do interesse científico de Nathan,
esconde-se uma agenda pessoal preocupante e até mesmo repugnante.
O complexo-residência do CEO da Blue Book é de um
estilo modernista frio, um cenário claustrofóbico que aos poucos fará o
espectador lembrar-se de O Iluminado
de Kubrick. A narrativa transcorre em uma espécie de geografia íntima e
sufocante em uma residência parecida com um imenso labirinto com portas, senhas
e câmeras de vigilância.
A sessões do Teste de Turing de Caleb com Ava são
intituladas como narrativas distintas, como capítulos, e são intercaladas com
cenas entre Caleb, Nathan e sua namorada (ou concubina) chamada Kyoko, uma
mulher de aparência frágil, muda, e que paira como um fantasma entre os dois.
Blue Book/Google e a “religião das máquinas”
Em
muitos aspectos o filme Ex Machina é
tão profético como os diagnósticos feitos por Jaron Lanier, designer e
cientista computacional do Vale do Silício nos EUA. Para ele, um engenheiro do
Google teria lhe dito que o Google Books não está escaneando os livros para
serem lidos por pessoas, mas para serem lidos por uma IA. Para ele, todas as
redes sociais, Internet e algoritmos de busca estão sendo direcionados para
serem incorporados por uma gigantesca Inteligência Artificial – sobre isso clique
aqui sobre a “Religião
das Máquinas do Vale do Silício”.
Em
uma sequência do filme, onde é mostrado para Caleb um protótipo de um cérebro
de gel compacto tal como a que Ava possui, Nathan revela o software que roda no
hardware cerebral: “Blue Book”, revela para o atônito Nathan. Todo o chamado
Big Data (perfis, fotos, preferencias, hábitos, conhecimentos reduzidos a
bites) foi baixado da Internet, via ferramentas de busca do Blue Book, diretamente
para Ava.
Na
verdade Nathan e o Blue Book/Google descobriram que as ferramentas de busca na
verdade mapeiam a forma como as pessoas pensam: impulso, resposta, imperfeição,
padronização, fluxo caótico e atratores estranhos da mente. “Todo celular tem
uma câmera, um microfone e um transmissor de dados. Então liguei todos os
microfones e câmeras do planeta e redirecionei os dados por meio do Blue
Book... uma fonte ilimitada de interação vocal e facial”, revela Nathan.
Ex Machina mostra na ficção o que pesquisadores como
Jaron Lanier e esse blog tem chamado de “religião das máquinas”: o
Tecnognosticismo – a agenda tecnocientífica contemporânea com forte motivação
mística que busca convergir Neurociências, Teoria da Informação, ciências
computacionais e Cibernética no esforço de criar um modelo algorítmico não só
do funcionamento do cérebro mas da própria consciência.
Inteligência Artificial e Vontade de Potência
Em
uma das sessões do Teste de Turing, Ava confessa para Caleb: “Eu sempre soube
falar... não é estranho?”. Essa linha de diálogo é uma das chaves de
compreensão dos diálogos cerebrais do filme. Ava não nasceu, cresceu e
aprendeu, como qualquer criança humana: desde o início já detinha todo o
conhecimento humano via Blue Book. Por isso sua IA é pós-humana,
descorporificada e, por isso, sem qualquer “trava” moral ou emotiva.
Por
isso Ava é pura Vontade de Potência no sentido dado pelo filósofo Nietzsche –
ela quer unicamente escapar daquele complexo científico onde é prisioneira de
Nathan que a transforma em simples joguete, inclusive sexual.
O
pesquisador Michael Heim no seu livro Metaphysics
of Virtual Reality argumenta que toda a base da ética e da moral está
baseada na percepção que o intelecto possui das limitações do próprio corpo:
finitude, temporalidade, animalidade, fragilidade e limitação existencial.
Dessa forma a inteligência e a consciência corporificada encontram a alma e o
psiquismo, impedindo que ela se transformem em simples mônadas (Leibniz)
isoladas e sem contato com a realidade e o outro.
Sem
esse pressuposto corporal, a IA se converteria em pura Vontade de Potência,
“selvagem”, impulsiva e com o apetite infinito em realizar-se a si própria em
todo seu potencial, sem qualquer linguagem natural, emoções e “travas” éticas
ou morais. Estaria para além do Bem e do Mal – o filme Lucy, por exemplo,
mostra esse aspecto da IA, porém de forma apologética.
Ex
Machina levanta um diagnóstico bem sombrio: a futura IA olhará para nós da
mesma forma como nós olhamos para os fósseis nas planícies da África – um
primata ereto com linguagem e ferramentas primitivas.
Diante
dessa IA concebida como Vontade de Potência, nenhuma Lei da Robótica, tal como
descrita por Isaac Asimov, funcionará. Por que ela somente pensará a si mesma
como potencia a ser realizada, livre e infinita. E o homem será apenas um velho
Demiurgo que um dia pensou que a inteligência pudesse ser circunscrita a velhas
noções metafísicas como alma e psiquismo.
Ficha Técnica |
Título: Ex
Machina
|
Diretor:
Alex Garland
|
Roteiro:
Alex Garland
|
Elenco: Alicia
Vikander, Domhnall Gleeson, Oscar Isaac, Sonoya Mizuno
|
Produção:
DNA Films
|
Distribuição:
A24
|
Ano: 2015
|
País: Reino Unido
|
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