sexta-feira, dezembro 29, 2023

Robô "ataca" engenheiro na Tesla: a retórica do capitalismo high tech distópico de Elon Musk


“Revolução das máquinas!”. “Homens X Máquinas!”. “Robô ataca engenheiro!”. Foi com essas manchetes sensacionalistas que a mídia noticiou um acidente ("ataque" para a mídia) ocorrido na fábrica da Tesla em Austin, EUA, envolvendo um robô da linha de montagem. Matérias híbridas de jornalismo e marketing, que se alinham a uma paradoxal retórica de Elon Musk que poderíamos chamar de “capitalismo high tech distópico”. O bilionário já falou que estamos presos na Matrix e devemos fugir. Depois falou da necessidade da colonização de Marte para escaparmos da guerra nuclear. E agora alerta que a inteligência artificial ameaça extinguir a humanidade. A Mídia adora essa retórica de Musk: é sensacionalista e garante click baits. Mas também possui uma mais valia ideológica: por trás desse fetichismo distópico de máquinas que supostamente poderiam se tornar sencientes, ocultar o velho capitalismo tão bem apresentado por “Tempos Modernos” de Chaplin – das linhas de montagem aos algoritmos, a inovação tecnocientífica nada mais é do que a codificação das intenções, opiniões e predisposições econômicas e ideológicas codificadas pelos seus criadores: a elite tecnológica à serviço da burguesia. 

Qualquer um que conheça minimamente a história do cinema, deve lembrar das célebres sequências da máquina de comer que serve enlouquecidamente comida para o operário Charlie Chaplin e depois quando ele cai na linha de montagem e é engolido pela máquina entrando nas suas engrenagens no filme Tempos Modernos (1936).

Não há ambiguidade nas cenas e o significado é inequívoco: as máquinas, comandadas pelo capitalista, controlam os movimentos e o tempo dos trabalhadores – até na hora de almoçar não se deve parar para não atrasar a produção. Até no banheiro o pobre operário era vigiado.

O filme tornou-se um clássico, uma crítica humanística ao capitalismo da era do fordismo, das linhas de montagem, da padronização e alienação. Ou, para além da crítica política, a insalubridade e a loucura do trabalho como doença psíquica ocupacional.

A máquina não atacou Chaplin. Ela tornou-se disfuncional devida a urgência do capitalista em aumentar a produtividade e o lucro o mais rápido possível. A máquina não atacou. Ela se tornou disfuncionalmente perversa.

Eram épocas em que a exploração e a figura do capitalista eram mais visíveis, explícitas, apenas racionalizado pela ética protestante do trabalho, agora aplicada ao proletário: seja operoso, pois o trabalho dignifica o homem.


Ao contrário de hoje em que a figura do capitalista não só se pulveriza nas figuras jurídicas das S/A e a divisão do capital em sociedades de acionistas, como também as novas ferramentas ideológicas, como o hibridismo entre jornalismo e marketing, criam a aparência de um novo capitalismo high tech: paradoxalmente, um capitalismo sem capitalistas, apenas com robôs, inteligência artificial e algoritmos.

Se não, o que dizer sobre a cobertura que a grande mídia fez do suposto “ataque” de um robô a um engenheiro na linha de montagem automatizada da fábrica da Tesla, nos EUA?

O “ataque”

Vamos primeiro à notícia.

O caso aconteceu em 2021, mas só veio à tona no final de 2023 através de um relatório da Tesla enviado às autoridades reguladoras americana. Um robô teria “atacado” (essa é a palavra usada recorrentemente pela mídia, sugerindo uma possível “intencionalidade” da máquina) um engenheiro que trabalha na fábrica da Tesla próxima à cidade de Austin, no Texas (Estados Unidos), deixando o funcionário ferido, conforme relatório vazado recentemente pelo site The Information

De acordo com o documento, o robô envolvido no incidente era um dos três responsáveis por cortar peças a partir de placas de alumínio recém-fundidas. Dois deles haviam sido desligados para manutenção, mas este continuou a funcionar sem que ninguém notasse. Prendeu o engenheiro contra uma superfície, ferindo-o com suas garras metálicas nas costas e no braço, deixando-o gravemente ferido. Depois que outro trabalhador apertou um botão de parada de emergência, o engenheiro escapou do alcance do robô, caindo em uma rampa projetada para coletar sucata de alumínio. 

A legislação exige que fábricas com alto índice de automação como a Tesla reporte imediatamente às autoridades incidentes envolvendo funcionários. Ao que parece, a fábrica do bilionário Elon Musk não vem fazendo isso. Principalmente sabendo-se que a fábrica tem sido alvo de críticas em relação à segurança no trabalho por apresentar taxas elevadas de lesões na comparação com as médias da indústria nos EUA.


Funcionários atuais e antigos apontam que a política da administração é poupar custos em medidas de segurança e construção, bem como pressão por produção rápida. Resultando em fatores contribuintes para os riscos de acidentes e lesões constantes dos funcionários. Além da exposição a substâncias tóxicas, acidentes com equipamentos pesados e explosões causadas pela água entrando em contato com alumínio fundido.

Nada de novo em relação àquilo que Chaplin retratou em Tempos Modernos: controle do tempo e do próprio corpo dos trabalhadores para maximização da produtividade e lucro.

Capitalismo high tech distópico

A novidade é a máquina midiática híbrida de marketing e jornalismo que transformou esse incidente em outra coisa: uma contribuição para narrativa que Elon Musk vem martelando ao longo dos anos. E que podemos chamá-la de capitalismo high tech distópico – ironicamente, se no passado a distopia era um recurso sci-fi para denunciar as mazelas do capitalismo, hoje virou numa estratégia indireta de marketing.

Musk sempre andou na tênue fronteira entre as finanças e a mídia, desde os tempos dos cenários especulativo das empresas “ponto com” na virada do século, para depois partir como automóveis (Tesla Motors), energia solar (SolarCity), espaço (SpaceX) e transporte público (Hyperloop).

Com charme para convencer investidores e receber gigantescas infusões de dinheiro público, o discurso de Musk sempre foi emergencial, apocalíptico: primeiro, começou a participar de eventos ao lado de personalidades como, por exemplo, o astrofísico Neil deGrasse, nos quais alertava de que somos prisioneiros na Matrix e que cientistas estão movendo esforços para escaparmos dela.

Depois, a necessidade de colonizar Marte através dos foguetes da SpaceX para fugirmos da guerra nuclear e da catástrofe ambiental.

Agora, recentemente Musk alertou que a IA “é um risco para a existência da nossa civilização... até as pessoas não vejam robôs matando gente na rua não se entenderão os perigos da inteligência artificial”. E finalizou prevendo que “dentro de 20 anos, não é que não haverá pessoas ao volante. É que simplesmente não haverá volante”.

O jornalismo corporativo simplesmente adora essa retórica muskiana, sedenta por sensacionalismo, click baitse engajamento. Mas há também uma mais-valia ideológica nessa retórica distópica sedutora: sob essa espécie de fetichismo da tecnologia, ocultar um fato tão velho como o próprio capitalismo – o desenvolvimento tecnológico sempre esteve a serviço de uma necessidade existencial do capital: a transformação do trabalho complexo em trabalho simples, para submetê-lo à lógica da produtividade, eficácia e desempenho.



Interlúdio: máquina X trabalhador

Um pequeno interlúdio sobre essa lógica primária do capital: o capitalista deve se livrar do trabalho direto, complexo

Um trabalhador qualificado sempre representou um entrave à velocidade ideal da produção e à disciplina do trabalho. Primeiro, pelo fato do trabalhador ser dono do seu ofício implica num trabalho mais demorado e habilidoso; segundo, porque o trabalho no processo de produção deve ser homogêneo, simples, fragmentado, para que haja um livre fluxo; e terceiro, porque um trabalhador dono do seu ofício não se sujeita tão facilmente às decisões de gestão e empresariais.

Desde o fim do artesanato com as manufaturas da Revolução Industrial, passando para o fordismo, o início da automação com as máquinas de controle numérico, chegando à robótica, o princípio do avanço tecnológico no Capitalismo sempre foi esse: quantificar e simplificar aquilo que é complexo, até chegarmos a atual precarização do trabalho. Roubar do trabalhador o seu ofício para torná-lo simples, quantificado e rotinizado através de instruções codificadas, softwares, algoritmos e inteligência artificial.

Até o momento em que se torne obsoleto e, portanto, excluído: nem para ser explorado servirá mais.

A retórica do capitalismo high tech distópico procura borrar essa lógica histórica do capital sob essa imagem de uma modernidade tão radical que a própria burguesia (ou a sua elite tecnológica) supostamente estariam perdendo o controle da sua criatura maquínica.

Marketing e jornalismo

Se não, veja, caro leitor, a retórica das matérias jornalística sobre o incidente na fábrica da Tesla. 

(a) “Revolução das máquinas? Robô da Tesla, de Musk, sai do controle e ataca funcionário” (MoneyTimes);

(b) “Robô ataca engenheiro em fábrica da Tesla nos Estados Unidos” (Tecmundo);

(c) “Homem X máquinas: Robô da Tesla sai do controle e ataca engenheiro que tentava reprogramá-lo” (Bit Notícias);

(d) “Robô ataca engenheiro da Tesla: perigo real?” (Portal O Correio).



Duas coisas chamam a atenção nessa retórica midiática. Primeiro, a expressão “robô ataca”, sugerindo muito mais do que uma disfunção, falha ou erro na configuração robótica – haveria uma intencionalidade ou propósito recôndito nas máquinas. Reforçado pela sensacionalista pergunta “Revolução das máquinas?” ou “Homem X máquina”. Uma alusão ao imaginário cinematográfico desde HAL 9000 de 2001.

Segundo, as fotos que ilustram a maioria das reportagens mostram robôs humanoides, reforçando a alusão fílmica. Poucas matérias são ilustradas pelos robôs reais de uma linha de montagem automotiva: punhos, garras e ferramentas de grandes braços mecânicos – nada antropomórfico como os replicantes ou autômatos do cinema.

Os robôs humanoides que ilustram a maioria das matérias induzem o leitor a imergir nesse imaginário distópico da “revolução das máquinas”.

Quando uma máquina adquiriria a intencionalidade de “atacar” um ser humano? Quando ela chegasse a um salto que os engenheiros computacionais distópicos chamam de “singularidade”. Um futuro no qual a humanidade viverá um salto qualitativo tecnológico em um curtíssimo espaço de tempo, quando a inteligência artificial terá superado a inteligência humana, alterando radicalmente a civilização e o próprio conceito de natureza humana.

Cientistas como Vernor Vinge (criador do conceito) e Raymond Kurzweil defendem que a singularidade será um evento semelhante ao surgimento da inteligência humana na Terra.  Acreditam que o surgimento iminente de supercomputadores dotados de inteligência seriam a base de tais avanços – somente uma inteligência superior à humana poderia fazer avanços científicos e tecnológicos tão rápidos.



Toda essa retórica em torno da singularidade possui duas funções ideológicas: uma como motivação mística para a elite tecnológica; e outra, como consumo ideológico para as massas: o marketing que quer nos fazer acreditar que a IA é realmente “inteligente”.

Como motivação mística, é a filosofia do pós-humanismo que impregna a elite tecnológica do Vale do Silício. O sonho tecnognóstico de imortalidade de engenheiros e cientista neuro cognitivos: a criação de uma inteligência superior em nuvem para o qual migraríamos nossas consciências digitalizadas em um upload final.

Porém, o mais importante é fazer as massas acreditarem que as máquinas são, de fato, inteligentes. A retórica de Musk (reforçada por essa abordagem sensacionalista midiática) faz parte desse esforço em tirar da burguesia qualquer responsabilidade sobre algoritmos e a automação. Seria como se, a qualquer momento, pudessem se transformar em entidades paradoxalmente ex-machina,

Ora, desde as indústrias de tecelagem da Revolução Industrial, as máquinas são planejadas, construídas e postas em funcionamento para submeter o trabalhador ao ritmo e lucratividade do capital. E com os algoritmos não é diferente. Algoritmo nada mais é do que opinião, intencionalidade e predisposição humana codificada – a própria luta de classes codificada.

A novidade é esse marketing generalizado. E Elon Musk é a principal estrela, com o seu tom distópico celebrado pela grande mídia. A celebração de um novo capitalismo sem capitalistas.


 

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