quinta-feira, janeiro 04, 2024

Filme 'Saltburn' e a "rich exploitation' de uma aristocracia que perdeu seus predadores naturais


A produção original Amazon “Saltburn”, de Emerald Fennell (“Bela Vingança”) é uma combinação explosiva de sexo com luta de classes. Mais uma produção de uma tendência dos últimos anos que poderíamos definir como subgênero “rich exploitation”: obscenamente ricos que se autodestroem. Mas “Saltburn” explora uma faceta do topo da pirâmide social: os aristocratas, aqueles que apenas herdam a riqueza com um senso quase ingênuo de nobreza – sem predadores naturais, basta apenas um pequeno empurrão para que tudo desabe. Um jovem proveniente da classe trabalhadora chega à exclusiva universidade de Oxford para conviver com jovens herdeiros que não têm a menor necessidade de estarem ali. A não ser justificar para a sociedade a sua absurda riqueza. “Saltburn” é uma espécie de remix de “O Talentoso Ripley”, porém transitando entre o thriller sexual e o humor sombrio.

Próximo ao final do ano o banco suíço UBS divulgou um estudo de que em 2023 o número de bilionários que ganharam mais com heranças do que com investimentos cresceu. E segundo essa mesma pesquisa, para 60% dos bilionários entrevistados (um universo de 70 clientes bilionários do banco) a preparação dos herdeiros é “um dos maiores desafios”. Ou seja, para um número crescente de bilionários (aqueles 1% que detém a riqueza do planeta), a preocupação maior não é investir (gerar crescimento, empregos etc.), mas apenas reproduzir a linha de transmissão da riqueza – clique aqui.

Não é por menos que nos últimos anos acompanhamos a tendência no cinema e audiovisual em colocar os obscenamente ricos em momentos muito difíceis – poderíamos falar de um subgênero “rich exploitation”? A lista é longa: Parasita, Triangle of Sadness, Glass Onion: A Kinives Mistery, O Menu, A Queda da Casa de Usher, Sucessionetc.

Saltburn (2023), de Emerald Fennell (Bela Vingança), é mais uma produção que se soma a essa lista. Um thriller sexual aristo-gótico sobre obsessão, ressentimento e vingança de classe, ambientado nos lugares mais elegantes da Inglaterra – do campus da universidade de Oxford a uma aristocrática propriedade que dá o título ao filme.

A crítica especializada vem definindo o filme como uma espécie de remix de O Talentoso Ripley (1999). Mas Emerald Fennell parece expandir e explicitar o argumento latente no filme clássico, tornando Saltburn um diferencial dentro dessa tendência “rich exploitation”.

Isso fica evidente numa linha de diálogo que é a chave de compreensão do filme – a certa altura, o protagonista diz: “vocês tornaram isso tão fácil... cachorros mimados dormindo de barriga para cima, sem predadores naturais...”. 



Isso quer dizer que Saltburn tematiza um tipo bem especial de obscenamente ricos e, no caso da aristocracia, anacrônico: aqueles que não moveram um dedo para ter o que têm – obscenamente ricos apenas pela herança. A ironia que o filme explora é que esse tipo de riqueza tornaria essa classe sem predadores naturais – ela não competiu, roubou ou violentou para arrancar a riqueza da desigualdade social. Alguém já fez isso por eles. E seus descendentes apenas se refastelam no status, prestígio e distinção. Sem “predadores naturais” tornam-se presas fáceis do ressentimento e vingança, seja de Ripley (Matt Damon), seja de Oliver (Barry Keoghan).

Como no filme anterior Bela Vingança (Promising Young Woman, 2020), Saltburn é também sobre vingança. Lá, Emerald fez uma comédia sombria sobre estupro e vingança. Em Saltburn, é acrescentado ao ressentimento, a obsessão perversamente malvada de desejo e sedução – o desejo ambíguo de não só cobiçar a riqueza, mas também de ser. Desejar o desejo do outro, criando a tensão homoafetiva que atravessa a narrativa. 

Cujo ápice é quando Oliver bebe a própria água da banheira na qual o aristocrata patologicamente blasé Felix Catton (Jacob Elordi) masturbou-se – um aristocrata lindo e divino com um senso quase ingênuo de nobreza e que se move nos ambientes sem qualquer “predador natural”. Até Oliver colocar seus olhos nele – em uma narrativa que esbanja close-ups no suor de Felix, na nuca, no seu pescoço e abdômen num mix perverso de voyeurismo queer com ressentimento de classe. Uma combinação explosiva que, como no filme anterior Bela Vingança, Emerald transita entre o thriller e comédia sombria.



De qualquer maneira, é a sátira sobre comer os ricos. Oliver não quer apenas galgar a hierarquia tornando-se o predador que a ingenuidade aristocrática sequer pode imaginar. Oliver quer também consumir os próprios desejos dos ricos – de qualquer forma, desejos mais excitantes do que aqueles da modorrenta e cinzenta da classe média britânica da qual ele quer fugir.

O Filme

Voltamos para 2006 e acompanhamos Oliver, um jovem proveniente da classe trabalhadora, chegando na exclusiva universidade de Oxford graças a uma bolsa de estudos. 

Na primeira meia hora do filme, percebemos o quanto Oliver é um peixe fora d’água naquele ambiente de intrincados códigos de classe, hierarquia e de ostentação simbólica de poder. 

As hierarquias são particularmente cruéis, especialmente quando Oliver decide levar os estudos a sério como um bom jovem subalterno que ainda acredita na meritocracia – seu professor (Reece Shearsmith) zomba dele quando descobre que Oliver leu os cinquenta livros da leitura de verão, que até inclui a Bíblia de King James. 

Oliver descobre que está num mundo em que aqueles jovens nem precisavam estar ali. Afinal, herdarão a riqueza bilionária das suas famílias, perpetuando a aristocracia. Então, por que ingressaram em Oxford? Para justificar sua condição de elite diante da sociedade, por terem “estudado” numa prestigiosa universidade. Na verdade, passam o tempo de estudos em festas ou eventos nos quais desfilam as etiquetas de prestígio – usar o suéter certo ou pedir a bebida adequada para um encontro.

Para Oliver, tudo é estranho, até imediatamente se identificar com o aluno alfa do campus: Felix Catton, um aristocrata bonito, popular, e que se move pela vida com a facilidade com que ignora os direitos alheios. Ele tem carisma e autoconfiança que hipnotizam Oliver.



Depois do episódio do pneu da bicicleta furado (Oliver empresta sua bike a Felix para que ele atravesse o campus e não perca uma prova importante) Felix o convida para passar o verão na propriedade da família Catton chamada “Saltburn” – uma extensa propriedade gramada com uma mansão barroca com tetos estratosféricos e decorada por quadros de valor incalculável como os do barroco Rubens, além de uma coleção de pratos Bernard Palissyceramic. E no jardim, o destaque para um imenso labirinto feito para aristocratas se perderem nas delícias das festas. Ironicamente, com uma grande estátua do Minotauro no centro.

Logo Oliver encontra seu oponente: Farleigh (Archie Madekwe), uma espécie de bobo da corte que os Catton mantêm como “agregado da família” – certamente para entretê-los. Farleigh suspeita que Oliver quer o seu lugar. Mas perceberão, da pior maneira possível, que Oliver tem outros planos.

Para completar o quadro de uma aristocracia complacente e superficial (que passa seus dias assistindo VHS na sala de TV, dando risadas bobas na sala de karaokê e convidando outros nobres para as festas no jardim) temos o pai Sir James (Richard E. Grant), deliciosamente fleumático e alienado, a glamourosa mãe ex-modelo Elspeth Catton (Rosamud Pike) e a irmã chique e trágica de Felix, Venetia (Alison Oliver). 

As cenas com os aristocratas Cotton são muitas vezes involuntariamente cômicas – vivem num mundo paralelo, são poderosos, mas, paradoxalmente, ao mesmo tempo demonstram uma ingênua fragilidade. São incapazes de perceber a chegada do “vírus” Oliver invadindo silenciosamente Saltburn. 

Quando a irmã Venetia, enganosamente seduzida por Oliver (aproveitando-se do crônico tédio dela), percebe o que Oliver quer já é muito tarde.



Roteiro “deus ex-machina” – alerta de spoilers à frente

Saltburn tem evidentes problemas de roteiro. O filme é exuberante, atraente com sua bela fotografia e eloquência visual. E caro. Porém, a narrativa é dominada por viradas inverossímeis que às vezes parecem um “deus ex-machina” - termo para designar soluções arbitrárias, improváveis, sem nexo ou plausibilidade na narrativa, para solucionar becos sem saídas em roteiros mal-conduzidos.

Principalmente a necessidade de o protagonista ter que explicar ao final numa espécie de tutorial do ardil que utilizou para conseguir ser convidado para passar o verão em Saltburn e como implodiu os Catton.

Embora fique evidente ao final do primeiro ato que estamos diante de uma espécie de remix de O Talentoso Ripley, não acompanhamos pistas ou as peças de um quebra-cabeças que faça o telespectador juntar no final. Oliver tem que pegar o espectador na mão e explicar tudo direitinho, até a dança da vitória final, nu em uma Saltburn vazia.

A tensão sexual entre Oliver e Felix, além das sequências lascivas sugerindo a explosiva combinação entre sexo e luta de classes, parece querer levar a narrativa para outra direção: a psicopatia do protagonista. Para depois, voltar aos trilhos narrativos e a necessidade da didática explicação final.


 

 

Ficha Técnica

 

Título: Saltburn 

Diretor: Emerald Fennell

Roteiro:  Emerald Fennell

Elenco: Barry Keoghan, Jacob Elordi, Rosamund Pike, Richard E. Grant

Produção: Amazon MGM Studios

Distribuição: Amazon Prime Video

Ano: 2023

País: EUA/Reino Unido

 

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