terça-feira, março 07, 2023

Filme 'Triângulo da Tristeza' leva Hegel, Marx e luta de classes para o Oscar 2023


Depois de “Parasita” ganhar o Oscar de Melhor Filme em 2020 levando a luta de classes para as telas, agora é a vez de “Triângulo da Tristeza” (Triangle of Sadness, 2022, disponível na Amazon Prime) concorrer ao Oscar desse ano: Melhor Filme, Diretor e Roteiro Original. O cineasta sueco Ruben Östlund (“Força Maior” e “The Square”) é o principal nome da onda de filmes em que os obscenamente ricos são objetos da vingança das forças sociais e até mesmo naturais. Dessa vez com uma cruel e impiedosa sátira contra os super-ricos globais, incluindo a exploração do mercado da moda e o insípido mundo dos influenciadores das mídias sociais. Dividido em três episódios, “Triângulo da Tristeza” une os segmentos com o fio condutor dos temas do poder, submissão, humilhação, ruína e ressentimento. Ecoando principalmente a famosa dialética hegeliana do senhor e do escravo – o ponto de partida para as reflexões de Karl Marx.

A situação daqueles 1% da população do planeta obscenamente ricos continua cada vez pior no cinema. Parasita, O Cardápio, Glass Onion: Um Mistério Knives Out são alguns exemplos recentes desse, digamos, “mal-estar” do capitalismo. Tão transparente para a opinião pública (principalmente após a pandemia da Covid-19, a mais violenta concentração de riqueza do período moderno da História) que virou argumento recorrente para diretores e roteiristas no cinema e audiovisual nos últimos anos.

O principal nome dessa onda é o diretor sueco Ruben Östlund, especialista em narrativas sobre perrengues chiques que podem se transformar de crises conjugais a lutas de classes: Força Maior (2014, onde uma família passando férias num resort nos Alpes é surpreendida por uma terrível avalanche de neve com repercussões conjugais) e The Square: A Arte da Discórdia (2017, quando a bolha social de mantenedores milionários e egoístas do mundo da arte é explodida pela desigualdade estrutural da sociedade).

No seu último filme Triângulo da Tristeza (2022, indicado ao Oscar de Melhor Filme, Diretor e Roteiro Original), Östlund volta à carga. Dessa vez com uma cruel e impiedosa sátira contra os super-ricos globais, contra a exploração do mercado da moda e o insípido mundo dos influenciadores das mídias sociais.

A primeira sequência de dez minutos que abre o filme já anuncia as intenções do diretor: um modelo masculino chamado Carl (Harris Dickinson) participa de uma escolha de cast para algum editorial de moda. Embora jovem, sua carreira está arruinada, recebendo um comentário maldoso de um editor de moda sobre seu “triângulo da tristeza” (a zona carrancuda logo acima das sobrancelhas), além das ironias de um jornalista de moda acompanhado de um cinegrafista, que trata os modelos candidatos como simples fantoches dirigidos pelo seu comando, ao enunciar marcas de grifes como a exclusivista Balenciaga e a popular H&M. 

Triângulo da Tristeza vai expandir os temas lançados nesses dez primeiros minutos nas mais de duas horas adiante: poder, submissão, humilhação, ruína, ressentimento e como os corpos perdem suas individualidades e dignidade num sistema econômico no qual qualquer coisa pode entrar numa barganha mercantil, por conquistas de migalhas de regalias ou mesmo de poder.

Premiado com a Palma de Ouro em Cannes, o filme causou uma profunda divisão entre espectadores e críticos. De um lado, de que os temas são óbvios e executados de forma grosseira, mas com polimento visual e inteligência superficial o suficiente para enganar o júri de Cannes. Por outro lado, a de que os alvos do filme (super-ricos e influenciadores) merecem o tratamento dado por Östlund e que a precisão narrativa histérica (com direito a vômitos e excrementos para pontuar a luta de classes) é a maneira mais acertada para abordar os exclusivos mundos dessa elite superficial econômica e cultural.


Todos no filme são bonitos, sorridentes, educados, finos e sofisticados. Pelo menos assim começa, até tudo ser desconstruído em um catastrófico cruzeiro marítimo exclusivo – um verdadeiro naufrágio em vômitos e fezes liquefeitas que jogam os ricaços no oceano para os sobreviventes terminarem numa ilha na qual a ordem social será invertida: os ricos serão subjugados por aquela que os servia no navio.

Diz o ditado que devemos “comer os ricos”. Mas depois desse filme, quem terá apetite para fazê-lo?

O Filme

Após o preâmbulo de dez minutos, Östlund divide a narrativa em três capítulos que aparentemente podem parecer estanques, mas o espectador perceberá que o tema mais geral das consequências da luta de classes (ressentimento e humilhação) é o fio condutor.

O primeiro capítulo nos apresenta um casal de modelos em namoro, Carl e Yaya (Charlbi Dean) no final de um jantar em um restaurante chique. A conta fica parada por tempo suficiente na mesa para fazer Carl perceber que sua namorada não tem intenção de pagar, embora ela tenha dito na noite anterior que faria isso. Os dois discutem sobre suas suposições baseadas em gênero e o mal-estar se instaura, levando a discussão volta ao hotel, onde Yaya joga na cara que é ela que está pagando as diárias.

O trabalho de modelo e autopromoção em redes sociais fazem Yaya ganhar uma viagem em um cruzeiro para passageiros muito ricos. Apesar de tudo, convida Carl para a irrecusável oportunidade.



Eles são apresentados para um grupo de pessoas tão ricas que perderam totalmente o contato com a realidade. A maioria enriqueceu por herança, mas no meio estão empreendedores que não fazem coisas que melhorem o mundo: um simpático casal de idosos britânicos fizeram fortuna fabricando granadas ou um bilionário russo que ganhou muito com o fim da União Soviética, vendendo “merda” (como costuma dizer), ou melhor, fertilizantes que tornam o planeta um lugar cada vez pior para viver. 

Uma bilionária insiste que a tripulação também mergulhe na piscina, obrigando-os a fazer fila enquanto os ricaços observam tudo como um gesto de empatia com os empregados. Enquanto uma outra mulher, incapacitada por um AVC só consegue repetir as palavras “In Den Wolken” (“Nas Nuvens”).

Mas claramente não para esse lugar que Östlund levará os ricaços. O capitão (Woody Harrelson) se trancou em sua cabina para ficar bêbado um pouco antes do jantar de gala. Sem comando ou controle, uma tormenta atinge o cruzeiro no meio do jantar para começar a tragédia da elite: o enjoo crescente se transforma em jatos de vômitos e privadas transbordando lamas de fezes. Um outro convidado parece estar tendo um ataque cardíaco e uma outra tenta engolir tudo com goles de champanhe, uma estratégia que escandalosamente termina em mais jorros de vômito.



Enquanto isso, o capitão e o magnata dos fertilizantes russos se apossam do sistema de som para fazer um debate etílico sobre as virtudes do comunismo contra os elogios do neoliberalismo feitos pelo magnata russo. 

Hegel e Marx – Alerta de spoilers à frente

O terceiro ato acompanha os sobreviventes alcançando uma ilha, quando a mesa vira e uma empregada do convés inferior, a asiática Abigail (Dolly de Leon), tomas as rédeas por ser a única que sabe pescar – criando uma tirana ordem do matriarcado.

Esse último episódio lembra bastante a famosa passagem da dialética do Senhor e do Escravo do livro “Fenomenologia do Espírito” escrito pelo filósofo alemão Hegel no século XIX. Passagem marcante na dialética hegeliana por ser o ponto de partida das reflexões de Karl Marx.

O senhor obriga o escravo, ao passo que ele próprio goza os prazeres da vida. O senhor não faz sua própria comida e não acende seu fogo: ele tem o escravo para isso. O senhor não conhece mais os rigores do mundo material, uma vez que interpôs um escravo entre ele e o mundo. O senhor, porque lê o reconhecimento de sua superioridade no olhar submisso de seu escravo, é livre, ao passo que este último se vê despojado dos frutos de seu trabalho, numa situação de submissão absoluta. 

Porém, o senhor só o é em função da existência do escravo, que condiciona a sua. O senhor só é reconhecido como tal porque é reconhecido pela consciência do escravo e porque vive do trabalho dele. Nesse raciocínio o senhor seria uma espécie de escravo de seu escravo. Por uma conversão dialética exemplar, o trabalho servil devolve-lhe a liberdade.

Abigail ainda continua trabalhando para os ricaços (ela pesca, acende a fogueira e prepara a comida). Porém, ela transforma o seu saber-fazer (força de trabalho) em poder que é negado pelas relações sociais no Capitalismo. Na ilha não há mais capital. Apenas a força de trabalho dá as cartas, através de uma ordem matriarcal. 

Abigail torna-se o “Senhor”, mas sem a mediação de escravos porque ela detém o “saber-fazer”. Dos ricos, somente deseja a submissão simbólica... ou favores sexuais, ao transformar o fracassado modelo Carl num gigolô exclusivo.

Ironicamente, Triângulo da Tristeza termina colocando na prática a utopia de Karl Marx formulada na “Crítica ao Programa de Gotha”: “de cada um segundo sua capacidade, a cada um segundo sua necessidade”.


  

 

Ficha Técnica

 

Título: Triângulo da Tristeza

 

Direção: Ruben Östlund

Roteiro: Ruben Östlund

Elenco:  Harris Dickinson, Charlbi Dean, Dolly de Leon, Woody Harrelson

Produção: Imperative Entertainment, Plattform Produktion, Film I Väst

Distribuição: Amazon Prime

Ano: 2022

País: EUA, Suécia, Alemanha

 

 

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