Uma época em que Hollywood deu uma “guinada metafísica” (Boris Groys), cujo filme “Matrix” foi o ápice dessa guinada, tendo a mitologia gnóstica como impulsionadora. Mas o filme “A Cela” (The Cell, 2000), do então estreante Tarsem Singh (de videoclipes como “Losing May Religion” do R.E.M.), foi ao mesmo tempo síntese e ponto de inflexão. Como síntese, juntou a onda do Mal viral dos anos 1990 (desde “O Silêncio dos Inocentes”) à virada PsioGnóstica no cinema. Uma mistura bizarra de ficção científica, assassinatos em série, psicologia policial pop e efeitos especiais assombrosos que marcaram o início do novo milênio no gênero cinematográfico. Para encontrar a última vítima de um serial killer, o FBI se utiliza de uma tecnologia experimental de compartilhamento de mentes: entrar nos labirintos psíquicos e oníricos do criminoso em coma. Um filme que antecipou as topografias da mente de “Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças” e “A Origem”.
Se hoje estamos vivendo uma ansiedade coletiva em relação à Inteligência Artificial, no final do século passado o pânico cultural era em torno da Realidade Virtual e do pesadelo de inadvertidamente acordarmos em algum tipo de constructo tecnológico e não conseguirmos diferenciar mais o que é real do que é virtual – Matrix (1999) foi o ápice desse espírito do tempo e a ressurgência do Gnosticismo, paradoxalmente no mainstream hollywoodiano, como o seu drive mitológico.
O crítico e teórico de mídia Boris Groys chegou a dizer naquele momento que Hollywood estaria experimentando uma “guinada metafísica”: deuses, demônios, alienígenas e máquinas pensantes defrontando-se com heróis movidos, sobretudo, pela questão do que possa estar oculto por trás da realidade sensível – leia GROYS, Boris, “Deuses Escravizados” In: Folha de São Paulo, 3/6/2001, disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs0306200105.htm.
Simultaneamente, a última década do século XX foi marcada por filmes de assassinos seriais misturado com dramas de jogos mentais e psicologia pop – O Silêncio dos Inocentes (1991), Se7en – Os Sete Crimes Capitais(1995), Beijos Que Matam (1997) e Colecionador de Ossos (1999) são alguns exemplos sobre a forma como o Mal torna-se viral e imprevisível nessa década.
A própria metáfora do mundo globalizado triunfante dominado pelos mercados financeiros com efeitos igualmente virais e imprevisíveis.
Certamente o filme A Cela (The Cell, 2000) foi um ponto de inflexão nessa “guinada metafísica” – uma mistura bizarra de ficção científica, assassinatos em série, psicologia policial e efeitos especiais assombrosos que marcaram o início do novo milênio no gênero cinematográfico.
Por toda pirotecnia visual, A Cela dividiu radicalmente opiniões à época: de um lado acharam que tudo era muito pretensioso e desenfreado; e do outro, simplesmente o melhor filme do ano.
O início do filme já dá o ritmo estonteante: Jennifer Lopez estrela como Catherine Deane, uma assistente social que tem um talento especial para estabelecer um relacionamento com clientes psicologicamente problemáticos.
Ela é recrutada para um projeto no qual a tecnologia experimental é usada para estabelecer uma ligação entre sua mente e a de um garotinho aprisionado dentro de um coma. Ela pode persuadi-lo a sair? Catherine enfrenta o desafio de entrar no mundo onírico da mente da criança, enfrentando as armadilhas e ardis dos mecanismos psíquicos de defesa – Freud dizia que “o sonho é o guardião do sono”.
As imagens de abertura de um cavalo negro cavalgado por ela através de dunas em um vestido branco esvoaçante, e depois encontrando o garotinho em uma paisagem cheia de árvores ao estilo do surrealista de Salvador Dali e quase conseguindo a sua atenção são o cartão de visitas para o que pode esperar o espectador nas quase duas horas.
A Cela é um ponto de inflexão no Gnosticismo hollywoodiano: enquanto no ano anterior Matrix acompanhava o herói prisioneiro em uma realidade virtual perversamente imersiva, ignorante sobre sua própria condição, em A Celaa protagonista vive perigosas incursões dentro de uma tecnologia que permite o compartilhamento de mentes – algo que pode ser mortal: morrer nos mundos oníricos da mente anfitriã significa a morte real do corpo físico vestido com um traje especial em um laboratório high tech.
O filme, dirigido por Tarsem Singh, representou uma guinada na metafísica gnóstica de Hollywood: em A Cela, agora não se trata mais de realidades virtuais ou mundos artificialmente construídos pela tecnologia. Agora, a tecnologia é apenas a mediação para entrarmos nos labirintos da mente, sonhos e pesadelos. Agora a prisão não é mais tecnológica (CosmoGnóstico). Em A Cela, o protagonista está prisioneiro num constructo psíquico, em quiasmas mentais. A prisão agora é interior (PsicoGnóstico).
Porém, o Demiurgo continua: não são mais falsos deuses, aliens, corporações ou máquinas. Agora são os implacáveis guardiões dos nossos próprios sonhos e pesadelos.
O Filme
A Cela tem a marca dos videoclipes de bandas mais vanguardistas da década de 1990. Tarsem deixou sua marca no início como diretor de videoclipes. Alguns dos grandes foram “Hold On” do En Vogue, e também “Losing My Religion” do R.E.M. Olhando para esses videoclipes, ficou claro que Tarsem era fascinado por arte e pinturas. Quando ele passou a fazer este filme, e seus próximos, ficaria claro que isso é uma enorme influência em tudo o que ele faria.
Estrelado por Jennifer Lopez como Dra. Catherine Deane, uma assistente social que se vê trabalhando em um tratamento experimental de realidade virtual para pacientes em coma.
Ela atua como uma laboriosa cobaia que se aventura através da mente do outro paciente. O programa está sendo financiado pelos pais de um paciente, Edward Baines. Um garotinho em coma que Catherine tenta trazê-lo de volta – mas ele está arredio e introvertido em seu próprio mundo surreal.
Enquanto isso, Peter Novak (Vince Vaughn) está tentando pegar um serial killer que branqueia suas vítimas femininas com requintes cruéis (de leite a água sanitária) para aparentarem serem bonecas. Quando Peter e a polícia finalmente alcançam o assassino Carl Stargher (Vincent D'Onofrio), ele mesmo acaba entrando em coma.
A polícia corre contra o tempo para encontrar a última vítima, presa em algum lugar numa cela hermeticamente fechada e com um temporizador: há uma contagem regressiva para inundar a cela de água para matar afogada a sua última mulher sequestrada.
E o local da cela está em algum lugar do assassino serial que entrou em coma.
Ok! Basta a heroína entrar na mente do criminoso e descobrir o local. Mas nada é simples: o assassino sofre de um raro caso de esquizofrenia que criou uma espécie de clivagem cerebral, dificultando a jornada de Catherine na mente de Stargher. A questão é que no interior da mente esquizofrenia se manifesta antropomorficamente num Demiurgo que se considera o Deus dos sonhos e pesadelos. Ele fará de tudo para tornar Catherine também sua prisioneira.
Obrigando o detetive Novak a também entrar nos labirintos mentais de Stargher, transformando tudo num thriller PsicoGnóstico.
Em muitas sequências começamos a entender o quanto A Cela foi influente nas primeiras décadas do século XXI: como a iconografia de filmes como Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças (2004) e A Origem (2010) se aproxima das paisagens mentais imaginadas por Tarsem.
Um filme PsicoGnóstico
Como um filme PsicoGnóstico, a narrativa tangencia com a lógica dos sonhos lúcidos: ao entrar na mente de outra pessoa, é fundamental que o explorador repetir para si mesmo que nada é real, para manter o nível meta dentro de um universo imersivo, sedutor e ao mesmo tempo assustador. Se imergirmos e acreditarmos naquela realidade, poderemos morrer de verdade em qualquer incidente.
O filme é uma fantasia visionária, na qual os espaços mentais de Stargher e Deane são paisagens que lembram as imagens arquetípicas de Jung e as telas de Dali, com um toque do baralho de tarô, além de viagens de luz e som que lembram 2001: Uma Odisseia no Espaço.
E além de tudo isso, acompanhamos uma corrida contra o tempo, na qual uma vítima luta por sua vida enquanto o FBI reúne desesperadamente pistas; essas cenas lembram “O Silêncio dos Inocentes”.
Os intercortes são tão bem-feito que, no final, há tensão de todas as três direções (nos mundos oníricos, na corrida para salvar a vítima e na tensão dos cientistas que monitoram a cartografia mental da viagem na mente), e o que está em jogo não é simplesmente a vida da próxima vítima, mas também a alma de Carl Stargher, que deixa Catherine vislumbrar sua infância infeliz de violência e abusos. A origem da distorção da personalidade.
Como dissemos, Tarsem é um diretor que chegou a filmes através de videoclipes e comerciais - na verdade, a sequência de abertura no deserto parece que poderia aparecer em um anúncio de cerveja tão facilmente quanto em uma fantasia psicológica como em A Cela.
O trabalho de Tarsem é um exemplo do destino da vanguarda do surrealismo no século XX: das seminais imagens do inconsciente e dos mundos oníricos (transformando em imagem aquilo que Freud teorizou), abalando o conservadorismo vitoriano, o surrealismo virou a isca das fantasias e desejos dos consumidores na publicidade e cultura pop.
Essa ambiguidade é flagrante e perturbadora em A Cela: uma iconografia limítrofe entre a psicanálise e a publicidade.
Ficha Técnica |
Título: A Cela |
Diretor: Tarsem Singh |
Roteiro: Mark Protosevich |
Elenco: Jennifer Lopez, Vince Vaughn, Vincent D’Onofrio, Colton James, Marianne Jean-Baptiste |
Produção: New Line Cinema |
Distribuição: Amazon Prime Video (aluguel e compra) |
Ano: 2000 |
País: EUA |