No cinema e audiovisual gnósticos, a aproximação dos temas da
morte e tecnologia sempre ocorre pelo viés da Tecnognose: a ambição da
imortalidade através da superação da carne mortal por meio de um atalho tecnológico
que ajude a alcançar a gnose, a transcendência e a imortalidade.
Primeiro pela clássica abordagem prometeica da crítica do
Romantismo de Mary Shelley, rejeitando tanto o cristianismo quanto do
materialismo iluminista através do sincretismo da ciência com o terreno
espiritual - Alquimia, Cabala e Gnosticismo. A tentativa frustrada de tornar a
carne imortal através da ressurreição pelo grande marco do progresso moderno: a
eletricidade, como em Frankenstein. Ou, no século XX, em clássicos do
terror B como O Cérebro Que Não Queria Morrer (1962) – clique aqui.
Ou através da tecnognose cabalística da revolução digital de final
de século XX: a afinidade entre gnose, tecnociência e cibercultura na qual o
conteúdo da mente (a consciência) poderia ser transcodificado e, através de um
upload final, habitar um computador, conquistando a imortalidade pela
libertação da fraqueza da carne mortal. Viver a eternidade no céu da
informação. Do clássico Robocop (1987) a filmes como Lucy (2014)
e Transcendence: A Revolução (2014), está imageticamente popularizado o
sonho da singularidade tecnológica dos engenheiros computacionais do Vale do
Silício.
Mas nada se assemelha a O Senhor dos Mortos (The Shrouds,
2024), o último e mais pessoal filme do diretor canadense David Cronenberg.
Seus temas e imagens ao longo da sua filmografia se tornaram tão consistentes
que acabou gerando uma terminologia indispensável: “cronenberguiano”, ao lado
de filmes como, por exemplo, “linchianos” para designar o surrealismo de David
Lynch.
![]() |
Desde Videodrome, sexo, morte, tecnologias disruptivas e
horror corporal se tornaram as marcas registradas de Cronenberg. Criando quase
uma subcategoria nos filmes de terror.
A inspiração do filme
partiu de um drama pessoal do diretor: Cronenberg vivenciou o horror corporal quando sua
esposa de 43 anos, Carolyn, foi diagnosticada com um câncer que devastou
seu corpo e, por fim, tirou sua vida. Originalmente, o argumento da produção
foi pensado para ser uma série da Netflix. Mas depois que Cronenberg escreveu
dois episódios, a plataforma de streaming cancelou o projeto. Realmente os
mundos imaginados pelo diretor, no qual sexo e morte são os dois lados de uma
mesma moeda numa realidade de alta tecnologia, foram demais para os critérios
do que a Netflix imagina para uma série de entretenimento.
O Senhor dos Mortos deve ser visto como um “filme cronenberguiano tardio” como Cosmópolis,
Mapas para as Estrelas e Crimes do Futuro no sentido de que sua principal
forma de ação na tela é a conversa, numa abordagem geral à narrativa devendo
principalmente ao teatro e à TV pelos enquadramentos em primeiros planos.
A maior parte da ação gira em
torno de quatro personagens. O personagem central é Karsh (Vincent Cassel), que
deu conta do luto e da sua dor interminável pela morte da esposa inventando uma
espécie de muleta tecnológica: o GraveTech, um cemitério/mausoléu conectado à
internet que permite aos visitantes assistirem à decrepitude física e o
apodrecimento gradual até aos ossos em tempo real de seus entes queridos
enterrados, por meio de um aplicativo criptografado para iPhone.
Através de uma mortalha (obviamente,
a versão hightech do Santo Sudário), o corpo é escaneado em alta resolução.
Sabemos que a
tecnologia vem criando ao longo do tempo no cinema e audiovisual (refletindo o zeitgeist
social) uma série de formas de negar a morte ou de oferecer muletas para não
encarar o custo psíquico de um processo de lutificação: seja por meio da clonagem
criogenia ou bioengenharia (Proyecto Lázaro, 2016) ou salvos em códigos
binários para serem projetados holograficamente diante os entes queridos que
ficaram ou replicado por uma IA (série Sunny, 2024-).
Das cinco fases principais da
lutificação previstos pela psicanálise (negação, raiva, barganha, depressão e
aceitação), a tecnologia busca o atalho para mitigar esse processo, criando o
atalho para uma falsa aceitação, mais parecida com a negação. Ao oferecer uma
muleta psíquica tecnológica para a barganha.
![]() |
O Senhor dos Mortos oferece uma
curiosa terceira variação tecnognóstica, depois as visões prometeicas da tecnologia
e o atalho tecnológico para a imortalidade digital da consciência: a
transformação da deterioração da carne de seu ente querido falecido em prazer
voyeurístico online e em tempo real, fazendo uma surpreendente conexão entre
prazer, sexo e morte.
Como diz a certa altura o
protagonista Karsh: “Você quer os detalhes sombrios? A escuridão não me
assusta...”.
O Filme
O filme começa com o pesadelo de
um marido com o corpo nu de sua falecida esposa se decompondo em um túmulo e se
torna cada vez mais sombrio e estranho a partir daí. Mesmo em filmes e
programas de TV em que uma mulher perde uma mama para o câncer, eles geralmente
não mostram como fica o peito depois. Aqui, mostram. Várias vezes. Eles também
nos permitem ouvir Karsh falando sobre como seu desejo incessante pela esposa
entrava em conflito com a consciência de que o câncer estava escavando seus
ossos e que o sexo poderia quebrar algo.
Depois, temos um encontro às cegas ao mesmo tempo engraçado e sombrio. Myrna (Jennifer Dale), uma divorciada, está almoçando com um empresário viúvo, Karsh (Vincent Cassel), que fez fortuna como produtor de vídeos corporativos. Mas Karsh desde então mudou para outros empreendimentos. Por um lado, ele é dono do restaurante em que estão; está localizado em um cemitério, do qual ele também é parcialmente proprietário. Sua esposa, Rebecca (Diane Kruger), que morreu de câncer quatro anos antes, está enterrada do lado de fora sob uma lápide visível de onde estão.
![]() |
Antes de ser sepultada, ela foi
envolta em uma mortalha metálica com um scanner embutido de alta resolução,
permitindo que Karsh monitorasse seus restos mortais em decomposição por meio
de um aplicativo digital que ele criou, chamado GraveTech. Puxando um feed do
corpo de Rebecca em seu telefone - ou em sua lápide, que tem uma tela de vídeo
embutida - Karsh pode observar a descoloração gradual de seus ossos e ampliar
seu crânio agora sem pelos.
A maioria dos entes queridos
enlutados sentiria repulsa por essas imagens; Karsh acha isso reconfortante.
"Eu posso ver o que está acontecendo com ela", ele se maravilha.
"Estou no túmulo com ela." A ideia de Karsh surgiu desse desejo
inquietante de querer “ser enterrado com ela”.
Karsh está muito consumido com o
corpo de sua falecida esposa - e, tão crucialmente, com a tecnologia que torna
esse consumo possível - para perceber, ou mesmo se importar, com o que os
outros pensam. Mas Cronenberg é consideravelmente mais conhecedor e lida com
esse material descaradamente mórbido com uma brincadeira desarmante. Grande
parte do diálogo tem uma planura expositiva, o que apenas aumenta a comédia
sombria de todo o conceito.
Mas supreendentemente, o conceito
mórbido ganhou um nicho de mercado entre endinheirados. Vemos um cemitério com
um setor inteiro com lápides GraveTech – ao lado das epígrafes costumeiras, uma
tela touchscreen para o parente observar a carne se transformando em ossos.
Karsch transformou sua tristeza em
um casulo chique de alta tecnologia. Se transformou em titã de uma tecnologia
fúnebre. A GraveTech está se popularizando globalmente; apoiado por
investidores chineses, está se expandindo para túmulos islandeses e atraindo
clientes influentes, entre eles um empresário húngaro em estado terminal.
A atriz Diane
Kruger interpreta múltiplos papéis. Ela é a falecida esposa de Karsh,
Becca, que aparece em cenas que mais parecem alucinações ou sonhos (parábolas,
até) do que flashbacks típicos; e ela é também a única irmã de Becca, Terry,
uma veterinária que virou tosadora de cães e testemunha a jornada de Karsch
pelo luto enquanto lida com o seu próprio.
![]() |
O quarto personagem principal é o
ex-marido de Terry, Maury (Guy Pearce), um guru digital que tanto Karsh quanto
Terry descrevem como um "nebbish" e um "idiota", mas que
possui um conjunto particular de habilidades que um dia se mostraram úteis para
Karsh, e podem se mostrar novamente.
Entre suas muitas contribuições,
Maury criou Hunny, uma IA assistente digital que ajuda Karsh na vida diária e
ouve seus problemas – e frequentemente parece estar flertando com ele, embora
sutilmente o suficiente para que Karsh geralmente ignore.
Mas apesar de estar se
popularizando (principalmente entre judeus, pela proibição religiosa da
cremação) a empresa GraveTech também tem inimigos invisíveis. O cemitério é
vandalizado - os sistemas hackeados, as lápides das câmeras do caixão
arrancadas de suas fundações – e Karsh tem agora um mistério em suas mãos.
Cronenberg constrói isso em uma
conspiração obscura que pode envolver financiadores internacionais e
influências russas e chinesas. Ou até eco ativistas ou mesmo religiosos
fundamentalistas protestando contra o “ateísmo tecnológico”. Opções que se
apagam e se reescrevem parcialmente a cada vez que é discutida.
Mas tudo isso parece ser um imenso
McGuffin pensado para desviar a atenção. Parece que Cronenberg quer mesmo
discutir as conexões entre sexo e morte, lembrando outro filme seu, Crash (1996)
no qual personagens se excitam sexualmente ao testemunhar ou mesmo participar
de acidentes automobilísticos – o quão pode ser excitante um corpo com
cicatrizes, deformado pelo câncer ou fazer sexo com uma parceira cega, como em O
Senhor dos Mortos.
Ao que tudo indica, David
Cronenberg concorda, em parte, com a afirmação de Woody Allen de que a vida
pode ser resumida a três episódios significativos: nascimento, sexo e morte.
O diretor canadense reduz a duas:
sexo e morte. Certamente, pelo acúmulo de referências e alusões orientais no
filme (para começar, o protagonista Karsh mora em um apartamento sereno em
estilo japonês, com uma cama futon cercada por um fosso cheio de carpas), o
diretor deve ser influenciado pelo taoísmo que vê a existência como um
ciclo de nascimento, vida e morte, e a reencarnação como o processo de
continuidade desse ciclo.
Portanto, a existência se
reduziria, ao final, a unicamente dois eventos que realmente importam: sexo e
morte.
Ficha Técnica |
Título: O Senhor dos Mortos |
Direção:
David
Cronenberg |
Roteiro: David
Cronenberg |
Elenco:
Vincent Cassel, Diane
Kruger, Guy Pearce |
Produção: SBS
Productions, Prospero Pictures |
Distribuição: Janus Films |
Ano: 2024 |
País: Canadá, França |