O telefone toca
e uma estressada gerente de uma lanchonete fast food ouve a voz de um policial
avisando que uma atendente da loja roubou dinheiro de uma cliente que veio
prestar queixa. Nas próximas horas ela cegamente obedecerá as ordens de um
suposto policial ao telefone para além dos limites dos seus valores e
consciência. Baseado num caso real absurdo e bizarro em uma lanchonete
McDonald’s nos EUA, o filme “Obediência” (“Compliance”, 2012) narra como a
tendência humana de ceder à autoridade leva a atitudes tão irracionais como os
maiores crimes da História: nós apenas sempre “obedecemos ordens”. Se para
Nietzsche a consciência é a principal fonte de enganos como o medo e o espírito
gregário, “Obediência” politiza esse insight do pensador alemão: as organizações
sociais e corporativas verticalizadas nos tornam ainda mais vulneráveis. Mais
uma sugestão do nosso indefectível leitor Felipe Resende.
O homem é o
mais medroso e desprotegido animal da natureza. Por isso necessitou do seu
semelhante e fez surgir a consciência de si, a última e derradeira fase da
evolução do sistema orgânico. É o que há de menos forte e acabado nesse
sistema. Por isso, é a fonte de uma multidão de enganos – o seu espírito
gregário e de submissão, para obedecer e fazer obedecer, por exemplo.
Nietzsche (1844-1900) afirmou isso no século XIX na sua obra A
Gaia Ciência, bem antes da maior comprovação desse diagnóstico: o
holocausto nazista promovido por subordinados imbuídos de autoridade e que
apenas “cumpriam ordens” das autoridades superioras.
Mesmo depois da
maior evidência empírica da História, pesquisadores ainda procuraram provas
“científicas” para que fossem publicadas em anais acadêmicos. Como o famoso e
controvertido Experimento Milgram sobre a obediência à autoridade realizado em
1961 pela universidade Yale no qual um avental branco de laboratório,
estetoscópio e a prancheta do pesquisador Stanley Milgram conferiram autoridade
suficiente para “cobaias” obedecê-lo a administrar choques elétricos em
supostas vítimas atrás de uma parede (mesmo ouvindo gritos), apesar do
experimento conflitar com a consciência e valores dos participantes.
Mas não é
necessário chegar a tanto para sermos nietzschianos. Diariamente, pequenos
golpistas, escroques de toda sorte e psicóticos comprovam o diagnóstico do
pensador alemão. Talvez, esses membros da escória humana sejam os maiores
psicólogos da consciência, explorando centímetro por centímetro nossas
fraquezas, medos e ressentimentos.
Esse é o tema
do filme Obediência (Compliance, 2012) baseada em um bizarro
caso real de 2004 envolvendo uma lanchonete do MacDonald’s localizada em uma
cidadezinha rural no estado de Kentucky. Uma gerente recebe o telefonema de um
investigador da polícia denunciando que sua empregada roubou uma soma de
dinheiro de um cliente.
E isso, em
plena sexta-feira à noite, com a lanchonete lotada e desabastecida de picles e
bacon. E para piorar, estavam sob a eminência da visita de um “cliente
secreto”- um supervisor da rede disfarçado, misturado com o público para checar
a qualidade do atendimento. A tempestade perfeita estava formada.
Uma situação na
qual todas as fraquezas e vulnerabilidades da consciência humana, tal como
descritas por Nietzsche há mais de um século, vêm à tona de forma
incontrolável.
Como é
impossível uma análise mais aprofundada do filme sem incorrer em spoilers,
aconselho aos leitores mais intolerantes a “spoilers alert” a pararem a leitura
nesse ponto, assistir ao filme e retomar a postagem.
O Filme – Aviso de Spoilers à frente
O dia de Sandra
(Ann Dowd), gerente de uma lanchonete da fictícia rede Chicken Wich de frango
frito, já começou conturbado: um funcionário deixou um freezer aberto no dia
anterior gerando prejuízo de 15 mil dólares em picles e bacon estragados. É
sexta-feira, dia de grande movimento, e um supervisor da rede fará uma visita
de inspeção a qualquer momento, disfarçado de cliente.
O telefone toca
e uma voz diz ser um policial chamado Daniels (Pat Healy) e pergunta se a loja
tem uma atendente loura. “Sim”, Sandra responde. “Chama-se Beacky” (Dreama
Walker). Daniels diz que na delegacia está uma cliente da Chicken Wich
prestando queixa de que Beacky roubara dinheiro
da sua bolsa e que ele pode vê-la fazendo isso através da câmera de segurança.
Sandra conduz
Beacky para um quarto privativo dos empregados enquanto o policial Daniels
permanece na linha telefônica. Em seguida, a voz do policial, passo a passo,
começa a orientar Sandra a fazer uma revista na atendente: a tirar cada peça de
roupa e depois as roupas íntimas da funcionária.
Constrangida e
perplexa, Beacky nada sabe sobre o dinheiro e, sem alternativa, obedece as
exigências da voz do suposto policial, repetidas pela estressada Sandra –
dividida entre os clientes que cada vez mais lotam a lanchonete, a falta de bacon
e picles, o fantasma do “cliente secreto”, além de um potencial escândalo
policial.
A voz do
policial Daniels é ao mesmo tempo calma e determinada, sem deixar de fazer
elogios à postura “profissional” de Sandra ao telefone e como está conduzindo
aquele delicado caso. O que cria entre
ela e a voz ao telefone uma estranha variação da chamada “síndrome de
Estocolmo”.
As exigências
tornam-se cada vez mais invasivas, chegando à necessidade de revistar “as
partes de baixo” da pobre Beacky já completamente nua e vestida apenas com um
avental.
Em um ponto
ainda recente da narrativa, Obediência
revela que na verdade o “oficial Daniels” não é um policial, mas uma cara comum
e de voz mansa que mantém a ligação enquanto tranquilamente faz um sanduíche na
mesa de uma cozinha. Não há nenhuma sugestão que esteja sexualmente excitado
divertindo-se em alguma espécie de jogo erótico sadomasoquista. Daniels parece
apenas se divertir em perceber como as pessoas obedecem cegamente suas ordens.
Enquanto
tranquilamente sai para fora para fumar um cigarro, Daniels constrói apenas com
o seu tom de voz monocórdico e insistente um cenário imaginário no qual seus
colegas policiais já estão revistado a casa de Beacky e o irmão dela também
está envolvido.
As sequências
de invasiva humilhação, chegando ao abuso sexual, são sempre comandadas pela
voz de Daniels, sempre impondo sua autoridade de um suposto policial.
O filme foi
baseado em uma caso real em 2004 de uma gerente de MacDonald’s que caiu na isca
de um psicótico que tinha uma estranha necessidade de fazer as pessoas
cometerem crimes de abusos somente obedecendo aos seus caprichos, sempre
ocultados por trás de um personagem supostamente investida de autoridade. Mas o pior de tudo é que não foi um caso
isolado: o autor repetiu o trote outras 70 vezes em diversos pontos dos EUA.
Organização vertical nos torna vulneráveis
Duas coisas
chamam a atenção na construção narrativa de Obediência:
primeiro, como as técnicas vocais e recursos retóricos e entonações como uma
narrativa radiofônica podem ser mais envolventes do que as imagens – a
capacidade de visualizar os eventos em nossas mentes que tornam-se mais vívidos
do que qualquer filme ou vídeo.
E segundo, como
as primeira sequências do filme constrói a paisagem humana de pessoas comuns em
um trabalho entediante, submetidos a uma rotina altamente hierarquizada
(gerentes e supervisores em uma rede de fast food) submetida à pressão por
desempenho.
Em outras
palavras, a rotina do trabalho precarizado – são insistentes os closes na
sujeira e gordura nos equipamentos e mesas da cozinha da lanchonete, e a
aparência gordurosa e pouco saudável dos alimentos manipulados de qualquer
jeito por empregados.
A gerente
Sandra, sob pressão e responsável pelo desempenho de um grupo de empregados
desinteressados e entediados, é a vítima perfeita do psicótico Daniels. Ele
sabe que Sandra está costumada a obedecer irrefletidamente ordens e fazer os
seus subordinados também obedecerem.
Por isso,
assistindo ao filme, a situação para nós parece totalmente irracional: como
alguém obedeceria ordens de uma voz pelo telefone, executando procedimentos que
claramente entram em conflito com seus próprios valores e consciência? Como
ainda foi possível essa bizarra situação ser repetida outras 70 vezes?
Politizando Nietzsche
Claramente, é o
Experimento Milgram na prática, fora dos laboratórios de psicologia da
Universidade de Yale.
Certamente, na
atualidade os melhores conhecedores das mazelas emocionais humanas são os
psicóticos, escroques, estelionatários e pequenos golpistas. São os mais
nietzschianos dos humanos, capazes de entender a combinação do medo e o
espírito gregário em obedecer a autoridade do mais forte. E às vezes, a ambição
do dinheiro fácil, como secreta vingança do ressentido contra o mais forte.
Mas o filme Obediência, por assim dizer, politiza
Nietzsche: se o pensador alemão via esse espírito gregário como uma
insuficiência humana decorrente de um incipiente estágio evolutivo orgânico, no
filme as razões são sociais e da própria organização do trabalho: nos ambientes
corporativos nos quais o trabalho alienante e repetitivo combinado com a cega
obediência verticalizada é o cenário de vulnerabilidade psicológica perfeita
para os planos de um psicótico.
E só para
constar: na vida real, a atendente ganhou cerca de 6 milhões de dólares de
indenização. A gerente foi demitida, mas processou a empresa e também recebeu
uma indenização milionária.
E o psicótico
do trote foi absolvido – alegou não ter cometido crime algum e obedeceu quem quis. Como estava ao telefone
não poderia ver o que ocorria. Portanto, não poderia ser responsabilizado.
Esses verdadeiros atentados terroristas
psíquicos talvez sejam, ironicamente, o gesto mais revolucionário da sociedade
contemporânea: revelam de maneira nua e crua a miséria humana em uma
organização social que nos torna ainda mais vulneráveis.
Ficha Técnica
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Título: Obediência (Compliance)
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Diretor: Craig Zobel
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Roteiro: Craig Zobel
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Elenco: Ann
Dowd, Dreama Walker, Pat Healy, Philip Etinger
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Produção: Bad Cop Bad Cop Film Productions, Dogfish Pictures
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Distribuição: Magnolia Pictures
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Ano: 2012
|
País: EUA
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