O filme espanhol “Agnosia” de Eugenio Mira e “A Origem” de Christopher
Nolan foram lançados no mesmo ano de 2010. São dois filmes com versões
diferentes para o mesmo tema: um thriller de espionagem industrial que envolve
a invasão da mente de alguém para extraírem um segredo que envolve interesses
corporativos. Um exercício de análise comparativa entre os dois filmes revela
diferentes formas de representar a mente humana: se na Europa a Psicanálise e a psicologia da percepção possuem prestígio no meio artístico e intelectual, nos
EUA a mente não é pensada como uma máquina desejante, mas informática onde
dados são deletados ou inseridos. Enquanto “Agnosia” é um conto gótico inspirado
em psicanálise, “A Origem” é o inconsciente traduzido pelas neurociências.
A análise comparada em cinema (o exercício de analisar diferentes visões
de filmes e diretores sobre um mesmo tema) sempre dá surpreendentes resultados
ao revelar as diferenças ideológicas e culturais de países ou de polos de
produção cinematográfica.
Um exemplo evidente é o filme espanhol Agnosia (2010) do diretor Eugenio Mira e escrito por Antonio
Trashorras. Assistindo ao filme, é impossível não comprarmos com o filme de
Christopher Nolan A Origem
(Inception, 2010), produção norte-americana lançada no mesmo ano da produção
espanhola. Ambos exploram o tema da espionagem industrial: há um segredo de
grande interesse industrial que está na mente de uma pessoa e que deve ser
extraído.
Como já analisamos em postagem anterior, o filme de Nolan focava abordava a mente pelo ponto de vista das neurociências ao refletir a atual agenda tecnocientífica em
fazer uma cartografia e topografia da mente com objetivos de manipulação e
controle. Em A Origem não há
inconsciente, simbolismo ou mundos oníricos. Há apenas a representação da mente
como níveis, porões e regiões que poderiam ser topograficamente localizadas –
sobre esse tema clique aqui.
Em Agnosia há também interesses
corporativos de uma indústria de armamentos que objetiva extrair uma fórmula
secreta da mente de um protagonista. Mas a abordagem é indireta e simbólica em
um misto de psicologia a percepção e psicanálise. Nolan é pragmático como num
thriller de espionagem, enquanto Eugenio Mira dirigiu um conto gótico e
romântico onde a mente não é invadida, mas seduzida pelo amor e erotismo.
O filme
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Mas Joana tem em algum lugar da sua mente um segredo: a fórmula da fabricação de lentes
catadiópticas, poderoso acessório telescópico para armas de fogo por
possibilitar miras precisas a distâncias muito superiores das armas
convencionais. Seria uma revolução na indústria de armamentos.
A principal concorrente da indústria dos Prats trama um sinistro complô
para extrair a valiosa informação aproveitando-se da confusão sensorial de
Joana no momento em que um psiquiatra propõe uma revolucionária terapia envolvendo
hipnose e a construção de uma “crisálida” – encerrar Joana em uma sala
totalmente isolada dos estímulos do mundo exterior por três dias para tentar
fazer regredir a agnosia.
O plano é “contaminar” a terapia envolvendo os criados da mansão, um
sósia do noivo (Vincent – Félix Gomes – um jovem impulsivo que cresceu na
mansão dos Prats) braço direito do pai de Joana na indústria de armamentos da
família e os doutores responsáveis pelo tratamento. Penetrar naquela crisálida
seria o equivalente a invadir a mente de Joana e, de alguma forma, seduzi-la e
convencê-la a revelar o segredo industrial.
O Gótico e o Romântico
O filme demonstra o fascínio do autor do roteiro pelo início de uma
literatura popular já perdida no tempo: a literatura gótica e os folhetins do
século XIX em forma de seriados com tom misterioso e mórbido, intrincadas
peripécias que giram em si mesmas, a perpétua busca do assombro e do
maravilhoso.
Todos os componentes da literatura romântica estão em Agnosia, desde o pai íntegro, o
padecimento da heroína enferma, as contradições dos seus desejos com a
moralidade da época, fabulações sinistras e personagens decadentes e perversos.
A direção de arte é perfeita, mas o filme acaba se ressentido pelo
excesso de estilização e maneirismo (no final há até uma sequência inteira
fazendo um misto de alusões à cena da escadaria do filme Encouraçado Potenkin de Eisenstein e a escadaria da estação de trem
do filme de Brian de Palma Os Intocáveis).
Mas mesmo assim Agnosia vale à pena
pelas representações da mente e inconsciente que a produção espanhola faz,
significativamente diferentes daquelas feitas por A Origem.
Apesar de toda estilização e do pastiche (uma mistura de conto gótico,
romântico, thriller de espionagem com um toque de ficção científica retro), o
roteiro de Transhorras é bem fiel ao espírito da época e a sensibilidade do
período para a questão da mente humana.
A mente do século XIX
As primeiras metrópoles europeias, o trem, a luz elétrica, a máquina a
vapor e a industrialização começam a acelerar a vida urbana. Associada ao
desenvolvimento da imprensa, a fotografia, cinema e meios de comunicação como
telefone e telégrafo, nunca até então a percepção humana tinha sido bombardeada
com tantos estímulos. Por isso tempo, memória e percepção do instante passaram
a serem temas recorrentes na arte, literatura, filosofia e psicologia.
O impressionismo na pintura buscava registrar o flagrante do instante
através dos efeitos da cor e da luz sobre os objetos; o filósofo Henri Bergson
que via a percepção e a mente humana como uma câmera de cinema e a memória como
um frame isolado; a hipnose e a descoberta do inconsciente e dos mecanismos da
neurose de um psiquismo ao mesmo tempo reprimido pela moralidade vitoriano e
superexcitado pela nova vida urbana.
A virtude de Agnosia é colocar
a representação da mente humana em perspectiva ao espírito de época do final do
século XIX, enquanto A Origem
expressa a sensibilidade pragmática atual que vê a mente como um objeto a ser
mapeado para manipulações, extrações e inserção de informações.
A protagonista Joana sofre de agnosia que, como descrito em uma linha de
diálogo do filme, é como se o paciente tivesse perdido o filtro através do qual
retém e seleciona os estímulos exteriores, permitindo à mente à organização da
experiência como objetos, sons, pessoas, formas etc.
Como sugere o pesquisador francês Paul Virilio em livros como Guerra e
Cinema e Estética do Desaparecimento, as disfunções neuropsicológicas como a
afasia seriam a extensão na vida civil dos estados de afásicos dos soldados nas
guerras modernas marcadas pela tecnologização e aceleração da percepção –
Walter Benjamin falava dos soldados que retornavam da I Guerra Mundial em estado de
choque e sem memórias. Para Virilio, a aceleração tecnológica da comunicação e
informação militar (a Guerra do Golfo em 1990, por exemplo, transformou-se em
um videogame para os pilotos norte-americanos) chegaria á vida civil, trazendo
disfunções neurológicas pelo bombardeio perceptivo.
A “crisálida”
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Na sua agnosia, Joana consegue apenas ver as estrelas do céu tão perfeitamente
como as pessoas normais. As estrelas se tornam para ela o símbolo de um mundo
“que está lá fora”, o desejo da cura e liberdade de uma vida contida e
reprimida por uma moralidade vitoriana e de um casamento já planejado com o
sócio do seu pai. O complô que envolve o segredo de Joana envolve exatamente
seduzi-la pelo seu desejo sexualmente reprimido. E por isso decoram o mundo
interior da crisálida com estrelas projetadas nas paredes e teto a partir de um
abajur.
Ao contrário, embora em A Origem
o Nolan faça seus personagens entrarem no inconsciente, eles não encontram
desejos, mas apenas culpas e ressentimentos que devem ser deletados para
facilitar o resgate da informação vital para os interesses corporativos dos
seus chefes.
Talvez o principal fator que determina as diferenças entre Agnosia e A Origem seja a nacionalidade: enquanto na Espanha a Psicanálise e
a filosofia da percepção possuem prestígio entre os meios artísticos e
intelectuais, nos EUA a Psicanálise não goza de credibilidade científica por se
acreditar que noções como inconsciente e psiquismo não tenham comprovação
empírica. Percepção se torna input de
dados e a mente uma máquina de processamento e programação.
E a principal diferenças entre os dois filmes é a visão gnóstica da realidade. Enquanto em A Origem a realidade (os interesses corporativos) é um dado inquestionável com o qual o protagonista deve trabalhar, em Agnosia a realidade é o resultado de como Joana vê ou ouve os dados da percepção - um demiurgo (o psiquiatra) prende Joana em uma "crisálida" e manipula os seus sentidos para arrancar dela um segredo. Cria um microcosmo, inclusive com estrelas projetadas ao redor dela. Nada mais gnóstico: nossos sentidos podem nos enganar em um cosmos que é um constructo assim como a redoma do gigantesco reality show que é a vida no filme Show de Truman.
Ficha Técnica |
Título: Agnosia
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Direção: Eugenio Mira
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Roteiro:
Antonio Trashorras
|
Elenco: Eduardo
Noriega, Bárbara Goenaga, Félix Gomez, Luíz Homar,Matina Gedeck
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Produção:
Roxbury Pictures, telecinco Cinema
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Distribuição:
Primer Plano Film Group
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Ano: 2010
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País: Espanha
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