Um olhar tragicômico
sobre o ressentimento. Com uma complexa narrativa repleta de flash backs onde
memórias e fantasias se misturam (marca registrada do belga Jaco Van Dormael,
diretor do filme “Sr Ninguém” de 2009), “Um Homem Com Duas Vidas” (Toto Le
Héros, 1991) conta a história de Thomas, um homem que acredita que a sua vida
foi roubada e, com a ajuda de um agente secreto imaginário chamado Toto, pretende
vingar-se. Embora a constelação de afetos que formam o ressentimento (raiva,
inveja, amargura e vingança) seja tratada pelo filme de forma leve e cômica, a
complexidade narrativa que funde o passado com o presente levanta uma questão central:
o esquecimento. Freud e Nietzsche deram respostas diferentes: para o pai da
psicanálise o esquecimento negaria a chance de compreender o passado enquanto
para Nietzsche era a única chance de nos libertarmos das garras do
ressentimento. Além de levantar esse tema “Um Homem Com Duas Vidas” ainda vai
conectar o ressentimento individual com o social ao mostrar como as memórias de
um super-herói midiático se confundem com memórias e fantasias da infância.
O diretor belga
Jaco Van Dormael já é conhecido por esse
blog pelo filme Sr. Ninguém (Mr.
Nobody, 2009) onde o protagonista vê a sua vida como um gigantesco hipertexto
com diversos futuros alternativos e luta contra os eventos aleatórios que podem
interferir no livre-arbítrio das decisões.
Um Homem com Duas Vidas (Toto Le Héros, 1991) marcou a estreia do diretor em longa metragens.
Situada em um futuro próximo, Van Dormael nos conta a história de um homem
idoso chamado Thomas que olha para trás na sua vida através de uma espécie de
fluxo de consciência construído por um complexo mosaico de flash backs intercalado com fantasias de como os acontecimentos
poderiam ter sido diferentes.
O Filme
Tudo começa em um
asilo onde vemos um velho tossindo e retornando para sua cama. É Thomas que acredita
firmemente que a sua vida foi roubada por Alfred Kant, nascido ao mesmo tempo em
que Thomas, e que supostamente teriam sido inadvertidamente trocados durante um
incêndio no hospital onde estavam. Alfred teria roubado tudo dele: um bom
nascimento, nome, educação, oportunidades, romance e a própria felicidade.
Mas a narrativa é ambígua
e não podemos afirmar plenamente que essa troca realmente ocorreu já que o
tempo inteiro as memórias e as fantasias se confundem. Suas memórias são
constantemente pontuadas pelo personagem Toto (interpretado pelo próprio
Thomas) como um agente secreto que busca investigar o enigma da sua vida e
fazer justiça em cenas que lembram os antigos seriados policiais
norte-americanos.
O ressentimento
marca sua vida, muitas vezes com consequências trágicas para seus entes
queridos. Ele trama uma vingança com a ajuda do seu herói imaginário Toto:
matar Alfred – mas no final Thomas encontrará uma maneira criativa e
surpreendente para retomar a sua vida.
Alfred cresceu em
uma família rica, cheia de conforto e oportunidades que o tornará no futuro uma
pessoa rica. Quando criança Alfred era arrogante e ridicularizava Thomas
chamando-o de “Van sopa de galinha”. Filho de pais bem mais humildes, Thomas
leva uma vida simples marcada pela morte do pai (um aviador que desaparece em
uma missão comercial) e pelo desejo incestuoso pela sua irmã Alice – afinal, Thomas
não a considera sua irmã de fato por acreditar ter sido trocado com Alfred no
hospital.
O que é o ressentimento?
Um Homem com Duas Vidas é uma tragicomédia sobre o ressentimento. Uma vez definiram o
ressentimento como quando você deixa alguém ocupar gratuitamente a sua mente.
Não é um conceito da psicanálise, mas do senso comum: designa uma constelação
de afetos negativos como a raiva, inveja, vingança e amargura. Caracteriza-se
pela persistência da mágoa, a repetição da queixa. O outro que supostamente nos
ofendeu ou humilhou domina a nossa mente e impressões que por vezes acabam
parecendo mais grave do que a ofensa real que a gerou.
Mas o filme de
Jaco Van Dormael parece ir mais longe: a complexa montagem da narrativa feita
de flash backs e um mosaico de
efeitos possíveis de tomadas de decisões em diversos momentos (efeitos que
podem estar tanto na fantasia, na realidade ou nas memórias) dá uma impressão
ao espectador que passado, presente e futuro estão ocorrendo simultaneamente.
Nesse mosaico caótico montado pelo diretor há duas constantes que permanecem e
estruturam a memória de Thomas: o desejo incestuoso pela irmã Alice e a música
que o seu pai cantava para a família.
Nesse sentido, Van
Dormael segue uma perspectiva freudiana. Além da descoberta do inconsciente e
de que as ações humanas são motivadas por impulsos inconscientes, Freud rompeu
com outro princípio caro para o racionalismo: a ideia de que evoluímos da
infância para a maturidade, das ilusões infantis para a racionalidade responsável
adulta. Para Freud o homem não passava de uma criança crescida. A vida adulta
nada mais seria do que a recorrência de traumas e fantasias de prazeres
infantis tão intensos que persistem no psiquismo, orientando para sempre nossas
opções, sonhos e projetos pretensamente adultos e racionais.
Freud versus Nietzsche
Talvez por isso
Freud tenha ficado tão distante da investigação psicanalítica do ressentimento,
ao contrário de Nietzsche, o filósofo do ressentimento: todo o método
psicanalítico primava em trazer o passado para o presente, enquanto para
Nietzsche o esquecimento era a força que promovia a vida. Para Nietzsche, o
indivíduo cai nas garras do ressentimento quando se mostra incapaz de esquecer.
Freud e Nietzsche
foram homens do século XIX, de um espírito de época onde a questão do tempo e
da memória passou a ser recorrente na literatura – Alice no País das Maravilhas de Lewis Carroll, Em Busca do Tempo Perdido de Marcel Proust ou A Máquina do Tempo de HG Wells, por exemplo. Em um século onde a
eletricidade, o motor e o magnetismo começavam a acelerar a vida urbana, o tempo
começa a chamar a atenção exatamente pela sua escassez em um cotidiano onde a
efemeridade é a marca da modernidade.
Freud quer
recuperar do passado a cena do trauma no sentido que o filósofo Theodor Adorno
dava ao tempo: o pensamento que aguarda a lembrança do que foi perdido para
despertá-lo e o transformar em ensinamento. Ao contrário, Nietzsche via o
passado como a maior ameaça para uma vida potente e vigorosa, de aceitar o
mundo tal como ele é. Freud era um romântico e Nietzsche um modernista.
Um Homem com Duas Vidas está entre essas duas vertentes filosóficas: entre as divertidas cenas
onde o protagonista revive o passado de forma sensível e poética e essas mesmas
cenas que se transformam em vício e desejos interditados que envenenam Thomas
transformando o presente em obsessão e ressentimento.
Super-heróis e o ressentimento
A construção
mental do herói Toto a partir das memórias do protagonista sobre os clichês dos
seriados policiais é uma interessante sacada do diretor Jaco Van Doarmel da
forma como o ressentimento contemporâneo se relaciona com a linguagem
midiática. O ressentido é um nostálgico da inocência perdida, preso a uma cena
do passado que ele repete como um clichê. Os heróis da mídia de massa parecem
atender a esse secreto desejo do ressentido: personagens estereotipados e
limpos de toda desordem psíquica, com um comportamento unidirecional, sem
dilemas ou dúvidas. Agem apenas num único sentido.
Para a
psicanalista Maria Rita Kehl “uma das condições centrais do ressentimento é que
o sujeito estabeleça uma relação de dependência infantil com um outro, supostamente
poderoso, a quem caberia protegê-lo, premiar seus esforços, reconhecer seu
valor.” (KEHL, Maria Rita, “O
Ressentimento Camuflado na Sociedade Brasileira”) Pessoas fracas idolatram
personalidades fortes e decididas. Esse parece ser o papel que desempenham os
heróis na sociedade de massas, sejam eles ficcionais (os super-heróis dos
quadrinhos e do cinema) ou reais (os líderes políticos personalistas,
populistas e carismáticos).
Dessa maneira Jaco
Van Dormael faz um interessante cruzamento entre o ressentimento individual e
social pela maneira como o herói agente secreto Toto pontua continuamente as
fantasias e memórias de Thomas. As memórias da infância se fundem com as memórias
midiáticas como substituto do pai ausente pela morte no acidente aéreo.
Essa é a faceta
social do ressentimento: a vida roubada de Thomas é uma metáfora da própria
condição do indivíduo na sociedade de massas onde os laços familiares
enfraquecem com a ausência física ou simbólica dos pais. “Na multidão todos nos
sentimos mal amados”, disse certa vez Theodor Adorno. Essa talvez seja a
matéria-prima de todo ressentimento.
Ficha Técnica |
Título: Um Homem com Duas Vidas (Toto Le Héros)
|
Direção: Jaco Van Dormael
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Roteiro: Jaco Van Dormael, Didier de Neck
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Elenco: Michel Bouquet, Jo de Backer, Thomas
Godet, Gisela Uhlen, Mireille Perrier
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Produção: Iblis Films, Metropolis Filmproduction, Canal +
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Distribuição: Transeuropa Video Entertainment
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Ano: 1991
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País: Bélgica, França, Alemanha
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