sábado, janeiro 13, 2024

Canibalismo e horror cósmico em 'A Sociedade da Neve'


A história dos sobreviventes dos Andes (o acidente aéreo de 1972 com dezesseis sobreviventes entre 45 pessoas a bordo) já foi contada e recontada na literatura e cinema – sempre com o toque sensacionalista do canibalismo. Mas em “A Sociedade da Neve” (2023), do diretor espanhol J.A. Bayona, a questão do canibalismo é colocada num cenário mais amplo: o do horror metafísico ou cósmico, com forte traço gnóstico. Os planos grandiosos dos Andes os infinitos campos de neve contrastando com fragilidade dos sobreviventes diante da escala do cenário acentuam a absoluta indiferença da Natureza diante da presença humana. Ali não há Deus, propósitos divinos, sentido ou sequer destino. Apenas a fúria dos elementos. Diante da “morte de Deus” resta o pós-humano: o homem tornar-se uma máquina de sobrevivência tão furiosa quanto a Natureza – e o canibalismo é apenas um elemento nesse quadro mais geral.

Em 1993 o brilhante crítico de cinema norte-americano Roger Ebert assim afirmou ao analisar o filme de Frank Marshall Alive que então estava sendo lançado: “Existem algumas histórias que você simplesmente não pode contar. A história dos sobreviventes dos Andes talvez seja uma delas”.

O acidente do voo 571 da Força Aérea Uruguaia nas montanhas dos Andes em 13 de outubro de 1972 já foi contado, recontado e recontado novamente, tanto na literatura quanto no cinema. Com diferentes graus de sucesso, dependendo da interpretação, mas, em todas essas reconstituições da tragédia (ou do milagre), sempre houve a tentativa em buscar uma racionalização, seja religiosa ou filosófica, para justificar os fatos.

Baseado no livro pioneiro de Pears Paul Read, “Alive: The Story of the Survivors”, de 1974, o filme Alivecolocou na telona a tese do autor de que o canibalismo praticado pelos sobreviventes poderia ser avaliado como uma espécie de misteriosa Eucaristia secular – comer o corpo e o sangue de seres humanos para afastar a morte, em um profundo espírito de companheirismo e amor. Afinal, esse é o significado profundo do vinho e da hóstia na Eucaristia cristã.

O filme de 1993 de Frank Marshall popularizou essa tese. Afinal, era necessária uma justificativa importante para os sobreviventes de maioria católica. Principalmente pelo tom sensacionalista dada pela imprensa ao ser revelada (no início as fontes tentaram reter essa informação) a luta pela sobrevivência através do consumo dos corpos dos seus próprios entes queridos. Muitos dos quais morreram em seus braços.

Além disso, Alive recorreu ao “demasiado humano”: as lutas pelo poder e liderança entre os sobreviventes, alguma coisa alusiva ao clássico “O Senhor das Moscas”.

Mas a abordagem da produção Netflix A Sociedade da Neve (2023) é muito mais interessante. Dirigido pelo espanhol J.A. Bayona (O Orfanato, O Impossível) é baseado no livro homônimo do jornalista uruguaio Pablo Vierci.



Por si só os fatos são aterrorizantes. A maioria dos passageiros a bordo foi morta instantaneamente (o avião foi, essencialmente, cortado ao meio por uma montanha). Depois de vários dias, a busca foi cancelada. Os sobreviventes famintos recorreram ao canibalismo. A certa altura, todos foram enterrados sob uma avalanche que cobriu com metros de rochas e neve a fuselagem do avião na qual se protegiam. Eventualmente, quando entrou no período de descongelamento no verão, dois jovens membros da equipe de rúgbi a bordo partiram para o oeste para tentar chegar ao Chile. Eles não tinham equipamento nem experiência em escalada. Contra as probabilidades, os dois chegaram à civilização e foram capazes de guiar os helicópteros de resgate de volta ao avião caído. Dezesseis passageiros foram retirados, vivos. 

Bayona trata a questão do canibalismo como mais um plot – o assunto é retratado no filme de forma complexa mostrando como o grupo cria uma divisão de trabalho no qual alguns dos homens tomam a decisão de cortar cadáveres distante de todos (e das câmeras), como fossem sacerdotes ou intocáveis. “Coma com gelo, é melhor”, recomenda alguém a certa altura.

Mas Bayona está à procura de outra coisa em A Sociedade da Neve: o horror metafísico ou cósmico. Bayona insiste em mostrar planos grandiosos dos Andes e das imensas encostas brancas das montanhas, diante da fragilidade dos sobreviventes diante da escala do cenário. Ele quer acentuar a absoluta indiferença da Natureza diante da presença humana. Ali não há Deus, propósitos divinos, sentido ou sequer destino. Apenas a fúria dos elementos.

Diante desse quadro da “morte de Deus” resta o pós-humano: o homem tornar-se uma máquina de sobrevivência tão furiosa quanto a Natureza – e o canibalismo é apenas um elemento nesse quadro mais geral.

O Filme

A Sociedade da Neve não perde muito tempo em apresentar os personagens. Conhecemos vários jogadores de rúgbi, entusiasmados com a perspectiva de fazer um jogo amistoso no Chile. Muitos deles nunca saíram do país. Jovens de uma classe afluente do Uruguai, felizes em sua bolha social, enquanto acompanhamos protestos políticos nas ruas de Montevidéu – mas tudo que esperam são mulheres, festas e diversão na viagem para o Chile.



O filme é narrado por Numa Turcatti (Enzo Vogrincic), um jovem encorajado por seu amigo a vir na viagem. Mas ele não é o líder do grupo. Mas é apenas quando o desastre acontece que descobrimos as personalidades distintas - uma representação precisa de como uma catástrofe não muda você, mas revela quem você realmente é. 

Bayona recria o acidente com precisão. Antecipando a catástrofe, um dos jovens explica as dificuldades das rotas aéreas em transpor os Andes: as correntes de ar e ventos que atuam por sucção. “Mas somos mais espertos e não voamos em linha reta... contornamos pelo sul...”, diz confiante. Para em seguida começar o pesadelo.

A parede da montanha do lado de fora das janelas do avião surge como uma entidade malévola, como de fato era. A cinematografia de Pedro Luque é inspiradora no sentido mais clássico da palavra. Vemos as montanhas se aproximando, os campos de neve branca infinitos, com pessoas minúsculas lutando pelas suas vidas dificilmente perceptíveis a olho nu. Luque aborda a paisagem com um respeito por suas qualidades sinistras: "Os seres humanos não podem sobreviver aqui. Nada pode sobreviver aqui”, desabafa um dos sobreviventes após a queda. Sugerindo que aqueles que morreram instantaneamente foram os felizardos.



O grande protagonista é a Natureza: o intrincado labirinto da cordilheira dos Andes e a sua indiferença ao sofrimento humano.  Montanhas paradoxalmente de uma beleza majestosa, mas que ao mesmo tempo representam o inferno branco.



O grande tema de A Sociedade da Neve é o horror cósmico, presente em diversas linhas de diálogo em cenas de pausas para reflexão: “Deus não existe... Deus são nossas pernas, mãos...”, desabafa a certa altura o jovem ateu do grupo. 

Se a Natureza é indiferente à presença humana, então devemos virar máquinas de sobrevivência. Assim se torna o grupo, após abandonarem todas as ilusões ao ouvir através de um pequeno rádio portátil, encontrado em uma mala enterrada no meio da neve, que as buscas haviam sido suspensas e eles já eram dados como mortos.

“Éramos máquinas de sobrevivência sem nos importar com o que estava acontecendo. Não chorávamos os amigos mortos porque isso tirava nossa energia”, relatou a jornais da época Roy Harley, um dos sobreviventes – clique aqui.

“A Natureza é uma obra do Diabo, não de Deus”, disse certa vez o poeta e pintor maldito do romantismo sombrio William Blake. 

Dessa maneira a abordagem de Bayona à tragédia dos Andes é inovadora: coloca a questão do canibalismo num quadro mais amplo – a da luta do homem contra a Natureza. Para sobrevivermos, devemos nos despir de todas as ilusões, sejam religiosas, morais ou racionais. Devemos encarar o horror cósmico essencialmente gnóstico: o Universo não nos ama. 


 

 

Ficha Técnica

 

Título: A Sociedade da Neve

Criador: J.A. Bayona

Roteiro:  J.A. Bayona, Bernat Vilaplana, Jaime Marques

Elenco: Enzo Vogrincic, Agustín Pardella, Matías Recalt

Produção: Cimarrón Cine, El Arriero Films

Distribuição: Netflix

Ano: 2023

País: Espanha

 

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