quinta-feira, fevereiro 15, 2024

Arte, capitalismo e crime em um microcosmo gnóstico no filme 'Dentro'


Willem Dafoe é um ladrão especializado em roubo de obras de arte milionárias que fica acidentalmente preso em uma cobertura high tech em Manhattan. Trancafiado e incomunicável com o mundo exterior, ironicamente está preso com os milhões de dólares de um colecionador de artes. Arte que se tornou supérflua na sua luta por água e comida numa situação ironicamente cruel. “Dentro” (Inside, 2023, disponível na Amazon Prime Video) é uma cínica e irônica reflexão sobre arte, capitalismo e crime, mas principalmente sobre como a dimensão estética pode ser inspiradora na fuga de uma cobertura que vira um microcosmo da condição humana. Principalmente depois de o ladrão encontrar uma edição do “Casamento do Céu e do Inferno” de William Blake, o filme ganha tons gnósticos.  

A Estética é a ciência das sensações. É a busca da experiência que tenha sentido em si mesma e, portanto, livre das regras impostas pela indústria cultural e a sua Razão Instrumental. Portanto, a dimensão estética é essencial para o processo revolucionário da consciência e do comportamento dos indivíduos. É a oportunidade de libertar o “espírito absoluto”.

Essa é a tese de forte influência hegeliana do pensador alemão Herbert Marcuse em sua “A Dimensão Estética” de 1977. Para ele, autonomia e transcendência seriam as chaves da compreensão da experiência estética. 

Dez anos antes, seu antigo companheiro da Escola de Frankfurt, Theodor Adorno, via a total impossibilidade desse projeto de Marcuse: a arte e sua experiência estética definitivamente foram engolfadas pela divisão do trabalho no capitalismo, transformando-se em puro entretenimento sem qualquer transcendência. Por isso, em sua “Dialética Negativa” fez um acerto de contas com Hegel e propôs o projeto da “metafísica em queda”: ao invés de buscar a transcendência no Absoluto, ele vai encontrar a Verdade no particular, no precário, no singular, na experiência irreprodutível, contrariando a “dialética positiva” Hegel. Projeto que foi abortado pela morte de Adorno em 1969.

Com isso, Adorno na sua “Dialética Negativa” aproximou-se das referências literárias de Marcel Proust e William Blake: a busca de alguma subjetividade ainda intacta, o “subjetivismo em estado puro” – em Proust, as memórias involuntárias na obra “Em Busca do Tempo Perdido”; e em Blake a “energia vital” do corpo numa relação única com a alma, bem longe do dualismo Ocidental.

Não é por menos que o filme Dentro (Inside, 2023), estreia em longa-metragem do documentarista Vasilis Katsoupis, faz uma alusão ao livro de Blake “O Casamento do Céu e do Inferno” – um ladrão especializado em roubo de milionárias obras de arte fica preso em uma cobertura high tech inteligente. Trancafiado e incomunicável com o mundo exterior, ironicamente está preso com milhões de dólares de um colecionador que viajou para o Cazaquistão.



Passa os dias, semanas e meses tentando escapar de um apartamento que mais parece uma gigantesca instalação artística (sem água nas torneiras e banheiro, mas com energia para manter uma instalação de vídeo funcionando e uma geladeira que, quando aberta, toca a música “Macarena”), até se deparar com uma edição do livro de Blake que meticulosamente estudará. Servindo de motivação mística para a ambígua fuga final.

Dentro é uma abordagem cínica e irônica sobre as relações entre arte, capitalismo e crime. Willem Dafoe interpreta Nemo, um ladrão de arte que está invadindo um apartamento ultraluxuoso em Manhattan pertencente a um plutocrata colecionador de arte (Gene Bervoets), repleto de peças de arte modernas. Ele está atrás de algumas pinturas de Egon Schiele (pintor austríaco expressionista do início do século XX), mas o autorretrato que eles queriam (no valor de três milhões de dólares) não está onde ele pensava que estaria; o ladrão começa então procurá-lo pelo apartamento e, talvez, seja essa variação de rota não planejada que desencadeia um catastrófico bloqueio do sistema de segurança. As portas de aço se fecham, as grossas janelas de vidro travam, enquanto o controle de temperatura fica confuso, variando entre o calor tropical e o gelo ártico – aumentando a sensação claustrofóbica que perpassa todo o filme.

Preso em um ambiente luxuoso e de obras de arte de altíssima qualidade, de repente tudo virou bobagem: ele quer apenas escapar daquele bunker que, parece, foi idealizado como uma armadilha com requintes irônicos cruéis pelo milionário colecionador de artes.

É quando Dentro começa a assumir traços gnósticos. Principalmente quando o livro de Blake passa a transformar a natureza da aspiração de fuga de Nemo: a experiência estética proporcionada por Blake como inspiração para fugir daquele microcosmo em que a arte foi usada como forma de prisão. 



O Filme

Dentro começa com um helicóptero deixando Nemo numa ultraluxuosa cobertura em Manhattan. Vemos que ele não está agindo sozinho. Conta com cúmplices com os quais se comunica com um walkie-talkie, revelando que faz parte de uma quadrilha especializada em roubo de obras de arte.

Também vamos descobrindo que Nemo não é um simples ladrão. Ele parece mais um artista frustrado, com sua caderneta de esboços que carrega no bolso. Está ali pela grana, mas possui também aspirações artísticas.

Através do walkie-talkie o cúmplice lhe passa as instruções tensas sobre códigos de segurança e por onde andar na cobertura. Mas tudo sai do planejado quando Nemo não encontra o milionário autorretrato de 1910 de Schiele onde deveria estar. Só resta fugir com os quadros que tem. Mas a digitação dos últimos códigos dispara um erro fatal no sistema que transforma a cobertura numa bizarra combinação de bunker com instalação artística – em uma das salas há uma instalação de videoarte em funcionamento 24 horas.

O cúmplice de Defoe o abandona e ignora seus gritos desesperados no walkie-talkie. Agora Nemo está totalmente sozinho: uma espécie de Robinson Crusoe pós-moderno preso em um mundo cujo luxo de alta qualidade e todas as suas peças de arte (telas e esculturas e instalações de videoarte funcionando incessantemente e sem sentido em salas especiais) viram instantaneamente coisas supérfluas. 

O auge disso é quando Nemo pega uma peça em bronze de Lynn Chadwick chamada “Paper Hat” (leiloada por 2,5 milhões de Libras) como um pé de cabra improvisado para tentar abrir a porta do apartamento.



Nemo agora luta pela sobrevivência: tem que buscar restos de comida que sobraram na geladeira, tem que tomar água através dos canos de irrigação cronometrada para as plantas. Sem água nas torneiras e banheiro, Nemo é obrigado a defecar na banheira, ironicamente ao lado peças de arte super especiais que decoram todos os ambientes. 

À medida que lentamente enlouquece, Nemo começa a ficar obcecado por uma faxineira chamada Jasmine (Eliza Stuyck), a quem ele pode ver com a tela do circuito interno de TV que ainda está funcionando. Ironia cruel: o comunicador com a portaria não está funcionando, mas as câmeras, sim. Para apenas mostrar a Nemo todos os lugares pelos quais poderia fugir... mas não pode! 

Todas as obras de arte que compõem o impecável design de produção do filme são reais – nos créditos finais são listadas em detalhes técnicos, assim como fazem com as trilhas musicais nos filmes.

Nemo zomba dos ricos que estocam em uma cobertura em mármore luxos fúteis que lhe dão a sensação de estar preso no túmulo de um faraó. A geladeira contém apenas caviar, molho de trufas e bebida; pior, ela toca a “Macarena” para lembrar os usuários de fechar a porta. 

Ao mesmo tempo, o sistema de controle de temperatura corta a água e aumenta o calor para mais de 50 graus para depois congelar a casa num clima ártico. A chamada tecnologia inteligente — o oposto prático das belas artes — é a coisa mais próxima de um vilão. Este computador não é autoconsciente como o Hal 9000 de 2001 de Kubrick. Mas, decididamente, parece que a vida orgânica é o que menos importa para ele.



Ambiguamente gnóstico – Alerta de Spoilers à frente

 A primeira mensagem que Katsoupis e o seu roteirista Ben Hopkins parecem estar sugerindo é que enquanto a humanidade decai e morre como o ladrão eremita interpretado por Dafoe, a arte continua persistindo em sua maneira insensível - e até oferecendo uma espécie de fuga.

Aqui o filme Dentro tangencia com uma perspectiva gnóstica. A certa altura, em um sonho, Nemo imagina estar numa exposição de videoarte sobre marionetes e fantoches – e até que ponto elas seriam metáforas da própria condição humana.

Nemo é, ele próprio, uma marionete aprisionada por uma tecnologia “inteligente” com requintes de crueldade.

Mas é a entrada em cena da obra de William Blake “O Casamento do Céu e do Inferno” que reforça esse simbolismo: corpo, alma e arte contendo a energia vital que nos faria escapar daquilo que Blake considerava obras do demônio: a Natureza e o Cosmos.

Como fosse uma irônica instalação artística, Nemo constrói uma escada feita com pedaços de obras de arte do mobiliário (cadeiras e pedaços de metais e tábuas) para alcançar a tampa de uma claraboia no teto de um elevado pé direito. E fugir.



Esteticamente, o amontoado de objetos que se elevam para o teto parece mais uma obra pós-moderna como tantas naquela cobertura. Mas para Nemo, é o caminho da fuga, autonomia e transcendência.

No final, Nemo reproduz metaforicamente aquilo que tanto Marcuse como Adorno viam como potencial para a dimensão estética. 

Mas, para Nemo uma fuga ambígua: o que ele encontrará para além do teto? A claraboia poderá levá-lo ao terraço ou à borda do prédio? Se for ao terraço, ele poderá chegar às escadas e alcançar o saguão. Se levá-lo à borda do prédio, a fuga terminará com ele pulando para a morte, já que sua racionalidade atingiu seu limite, fazendo qualquer coisa para fugir daquele prédio.


 

Ficha Técnica

 

Título: Dentro

Diretor: Vasilis Katsoupis

Roteiro:  Ben Hopkins, Vasilis Katsoupis

Elenco: Willem Dafoe, Gene Bervoets, Eliza Stuyck 

Produção: A Private View, Bord Cadre Films

Distribuição: Amazon Prime Video, Focus Features

Ano: 2023

País: Grécia, Alemanha, Bélgica

 

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