Uma semana depois do contra-ataque involuntário às bombas semióticas do
Enem feito por um estudante que simulou ser um candidato atrasado, veio a
reação: uma nova bomba semiótica, dessa vez em um novo front, ainda mais letal
por atingir dessa vez a percepção e a memória, instâncias pré-linguísticas. O
vídeo do “Rei do Camarote” transformou-se em novo meme que explode em uma
guerrilha memética cujo ponto de partida foi o filme publicitário “Gigante”
protagonizado pelo apresentador Luciano Huck: memes intencionalmente elaborados
para tornar o contínuo midiático ainda mais tenso e pesado.
A proximidade do final do ano e
a lembrança que também nos aproximamos da Copa do Mundo e eleições
presidenciais, está tornando cada vez mais pesada a atmosfera midiática
nacional. Toda semana novos petardos de bombas semióticas cada vez mais
sofisticadas são disparados no imaginário social, politicamente cada vez mais
turvo e tenso. Se na semana anterior acompanhamos um contra-ataque do que
chamamos de “bomba pós-moderna” (a simulação de um estudante que se passou por
candidato atrasado na prova do Enem e que colocou a nu o mecanismo de montagem
das bombas semióticas – clique
aqui para ler), nessa semana tivemos a resposta imediata que abre um novo
front de batalha ao lado das guerrilhas semiológicas: as guerrilhas meméticas.
Muito se fala de uma guerra
memética desde o cenário aberto nas manifestações de junho. Mas, assim como no
Marketing, nesse novo campo de guerrilha procuram-se agora criar memes
artificiais. É o caso da matéria apoiada por um vídeo sobre o chamado “Rei do
Camarote” publicado pela “Vejinha” ou Veja
São Paulo.
"Rede": meme dos apoiadores da Rede Sustentabilidade de Marina Silva? |
Esse caso é a confirmação de uma
tendência iniciada pelo filme publicitário “Gigante” criado pela agência de
publicidade DPZ em setembro. Nele vemos um comercial do cartão de crédito
Hipercard do Itaú e o apresentador Luciano Huck como um gigante caminhando
pelas cidades do Rio de Janeiro, Recife, São Paulo e Porto Alegre. Isso em
plena efervescência das manifestações e da metáfora do “gigante acordou” nas hashtags das redes sociais. Claramente,
a criação pega carona no clima político reinante.
A coisa torna-se ainda mais turva
quando o jornalista Luiz Nassif aponta para o sincronismo entre a Rede
Sustentabilidade de Marina Silva, Itaú e Natura com a mesma imagem – principais
apoiadores da candidatura de Marina Silva, o Itaú muda o nome “Redecard” para
“Rede” e a Natura enaltece suas consultoras dando destaque à palavra “Rede” no
material publicitário – clique
aqui para ler.
Portanto, estamos diante de uma
novidade na guerra que se trava no contínuo midiático atmosférico: a guerrilha
memética com novas bombas semióticas que não mais trabalham com retórica e
persuasão no sentido clássico, mas agora com percepção e memória.
A ambiguidade do “Rei do Camarote”
O caso do “Rei do Camarote”
parece confirmar a psicologia do rumor descrita por Gordon Allport e Leo
Postman em 1947 que apontam dois fatores que impulsionam um boato que poderia
ser sintetizado na seguinte fórmula:
A = i X a
Onde /A/ de alcance é igual à /i/ de importância multiplicada por /a/ de ambiguidade. O alcance de um boato (e
modernamente de um meme) é determinado pela sua importância (o fator novidade
não no sentido tradicional jornalístico, mas de bizarrice, inesperado)
multiplicado pela ambiguidade – o fato é tão inesperado e bizarro que se cria a
ambiguidade: é real ou falso? Alexander de Almeida realmente existe?
A performance overacting do personagem, o fato dele
estar sempre dançando sozinho, a mão pesada da edição do vídeo (a composição
dos planos são muito estereotipados – o personagem posando ao lado de baldes de
champanhe, planos detalhe das pernas de mulheres no camarote, planos de câmera
em contra-plongees do personagem
segurando garrafas de bebidas caras, os vários planos visivelmente posados
etc.), o fato de o personagem ao final de cada frase dar um sorriso forçado ao
estilo Narcisa Tamborindeguy, tudo isso somado confere uma atmosfera ambígua –
além da vergonha alheia ao personagem.
A ambiguidade
do vídeo (no espectador cria-se uma confusão de registros entre o jornalístico,
o cênico e o espontâneo) transforma-o em meme. Propositalmente o vídeo transita
entre o jornalístico e o que em cinema chama-se mockumentary – estilo de filme onde eventos ficcionais são
apresentados em estilo documental. Em outras palavras, o vídeo pegou um
personagem real para representá-lo em linguagem ficcional, numa tal simbiose
que se cria uma forte ambiguidade que, para Portman e Allport, seria o elemento
propulsor de boatos, mentiras e memes.
Mas ao
contrário dos memes espontâneos, esse possui intencionalidades, a primeira
delas mais óbvia: a mercadológica, demonstrada na resposta que a revista deu à
suposta falsidade do personagem - “quando uma pessoa vira personagem de uma
capa da Veja São Paulo é comum que sua vida mude bastante depois que a revista
começa a circular”. O personagem é sucesso porque a revista é sucesso, quis
dizer a redação da revista.
A segunda,
mais imediata: a riqueza do protagonista vem da recuperação de frotas de
veículos de pessoas físicas e jurídicas inadimplentes – ecos de uma suposta
conjuntura de crise econômica, quadros inflacionários e recessivos que o
descontrole fiscal e cambial estaria provocando no País. O “Rei do Camarote” se
associa à imagem do colar de tomates no pescoço da apresentadora global Ana
Maria Braga, esse um meme mal sucedido na tentativa de criar uma bomba
semiótica de um suposto abismo econômico nacional.
A terceira é
mais profunda e preocupante: embora a ostentação desavergonhada de quem fala
que gasta 70 mil em uma noite em um camarote de balada cause vergonha alheia e
indignação moralista, quem desdenha quer comprar... e principalmente a nova
classe média criada paradoxalmente pelo sucesso econômico que o vídeo quer
desmentir: novo grupo social que foi integrado à sociedade de consumo por meio
do crédito e facilmente seduzido por esses ícones de status e prestígio. Sua
mobilidade social foi mais rápida que sua consciência de cidadania, seu poder
de compra veio primeiro que a consciência política. Contradição com a qual a
Esquerda terá que enfrentar em um futuro muito próximo. A intencionalidade
profunda dessa vídeo/meme sabe disso e aposta nos frutos dessa contradição.
Luciano Huck e o meme do “Gigante”
O início
dessas novas bombas semióticas criadas para o front das guerrilhas meméticas
certamente está no filme publicitário “Gigante” onde Luciano Huck pega carona
na metáfora do “gigante acordou” das manifestações de rua de junho. Mais do que
uma estratégia de marketing oportunista (aproximar um cartão de crédito ao
público jovem que saiu às ruas), há também as ambições políticas e lobistas do
próprio apresentador (sobre isso, clique
aqui) e as incursões partidárias do Itaú ao apoiar a Rede Sustentabilidade
de Marina Silva.
Essas bombas
semióticas meméticas são bem diferentes das clássicas que até aqui estávamos
nos defrontando. As clássicas lidam com discursos, retórica e persuasão por
meio de figuras de linguagem como metáforas e metonímias. Elas apelam para a
alteração comportamental – opinião, atitude e opção política.
Proust: memes, percepção e memória |
Ao contrário,
as bombas semióticas meméticas lidam com fragmentos de ícones e símbolos, E
apelam não mais para o comportamento, mas agora para a percepção e memória por
meio daquilo que as neurociências chamam de afecção. O filósofo empirista
inglês John Locke afirmava que “nada está no intelecto que não estivesse
anteriormente nos sentidos”. Outro filósofo, o francês Henri Bergson, chamava a
transição entre os mecanismo sensórios e o intelecto como afecção: qualquer
processo sináptico cerebral resultante de um estímulo de nossos órgãos
sensoriais, principalmente áudio e imagem. À medida que as afecções se repetem
produzem no cérebro um misto de percepção e memória. Quanto mais percebemos
diversas vezes, mais se tornam memórias. Mas estas memórias não estão sempre na
nossa consciência: elas estão no mundo.
Tanto para o
escritor francês Marcel Proust (autor do clássico Em Busca do Tempo Perdido) como para o filósofo Bergson, perceber é
lembrar. Um exemplo é o objeto perdido que, sem querer encontramos na gaveta em
um dia de limpeza da casa e que nos faz voltar à lembrança de determinados
fatos. As memórias estão latentes, à espera que acontecimentos perceptivos as
despertem para que processos sinápticos sejam despertados e novos possam se
configurados.
Pois os memes têm esse poder: são como objetos
perdidos em gavetas, fragmentos que podem despertar novas associações. É claro
que a intenção dessas novas bombas meméticas seja, a médio e longo prazo, a
mudança de um comportamento político que resulta numa ação direta: voto ou
golpe! Mas, ao contrário da bomba semiótica clássica que age em aspectos
subliminares e liminares por meio de processos linguísticos, a bomba semiótica
memética é, por assim dizer, fenomenológica: explora a percepção e os órgãos
sensórios mais imediatos.
Surgido em um
filme publicitário de uma marca de uísque, a metáfora do gigante foi apropriada
nas postagens das redes sociais sobre as manifestações a partir o momento em
que o movimento foi encampado pela grande mídia sob a pauta genérica (mas com
endereço bem definido) da indignação “contra tudo que está aí”. Luciano Huck
como um gigante caminhando pelas grandes capitais do país onde coincidentemente
aconteciam as manifestações cria essa percepção sincrônica que satura o
contínuo midiático: é o objeto perdido na gaveta que faz lembrar determinados
fatos.
Pela sofisticação
e letalidade cada vez maior das bombas semióticas, certamente devemos esperar
por atmosferas cada vez mais escuras e pesadas nos próximos meses. E certamente
não faltarão aqueles que gostam de pescar em águas turvas.