Há mais de 200 anos Mary Shelley publicava a primeira edição de “Frankenstein ou O Prometeu Moderno”. Sua fantasia prometeica estava assentada na tecnociência vitoriana (eletromecânica). Ao lado de “Pobres Criaturas”, de Yorgos Lanthimos, “(Re) Nascer” (Birth/Rebirth, 2023), de Laura Moss, é uma recriação feminista do conto atemporal de Shelley: só as mulheres conhecem a dor e o estresse de ter um corpo sujeito aos caprichos da natureza. Portanto, as mulheres estão mais próximas dos mistérios da concepção da vida – a eletricidade e as máquinas cedem ao paradigma orgânico. A recriação feminista de “(Re) Nascer” vai muito além do mito do cientista louco – quando uma patologista de um necrotério e uma enfermeira obstétrica se unem para ressuscitar a pequena filha e mantê-la viva a partir de privilégios nada éticos do sistema hospitalar, cairão naquilo que se chamava de “instituição total” – tecnologia disciplinar para manter os corpos sob o controle de uma finalidade totalitária.
Ao longo de 206 anos, desde a publicação da primeira edição de Mary Shelley “Frankenstein ou O Prometeu Moderno”, não importa quantas foram as versões (sejam no teatro ou cinema), há uma espécie de advertência para o homem jamais querer se igualar a Deus – o uso da ciência para roubar da natureza o poder sobre a vida e a morte somente resulta em catástrofes e aberrações.
Questões sobre a ética científica – crimes e atos bárbaros cometidos em nome da ciência e do conhecimento. E, por fim, o drama da criatura de Frankenstein que ao procurar amor e afeto encontra a frieza humana (a repulsa, ódio, medo etc.), o que seria a “verdadeira força negativa” de toda a história contada pelo livro.
Nas diferentes versões desse clássico destacam-se as feministas como Pobres Criaturas (Poor Things, 2023, de Yorgos Lanthimos (mediada por uma reconfiguração feminista do mito hipermasculinizado do ciborgue). Mas ainda aqui, a ciência é masculina e a criatura feminina se volta contra uma ordem tecno-científica patriarcal.
Mas é em (Re) Nascer (Birth/Rebirth, 2023) que encontramos talvez a verão feminista mais radical, da cineasta Laura Moss – o mito do cientista prometeico Dr. Frankenstein é substituído pela maternidade louca e monstruosa de uma médica patologista de um necrotério e uma enfermeira de maternidade sobrecarregada por longos plantões, além de ser uma mãe solteira culpada por não dar a devida atenção à sua pequena filha.
Shelley escreveu sua obra aos 19 anos, no século XIX, casada com a figura emblemática do Romantismo, Lord Byron. A história foi o fruto de uma aposta com o marido em aborrecido dia de férias chuvosas: sem terem o que fazer, desafiaram-se a cada uma escrever um conto que transitasse entre o horror e o fantástico.
O resultado foi um conto marcado pela revolução industrial: a vida resultante da eletricidade, induzida por descargas em um corpo morto reconstituído a partir da costura de pedaços de corpo de diferentes indivíduos – nada mais masculino: a técnico-ciência eletromecânica da era vitoriana.
O que (Re) Nascimento propõe é que o mito do cientista louco frankensteiniano seja atualizado dentro de uma perspectiva feminina do orgânico e da maternidade: se os corpos femininos têm o poder de gerar vidas através de uma complexa composição hormonal, nada mais justo do que as mulheres tomarem as rédeas do mito prometeico.
Só as mulheres conhecem a dor e o estresse de ter um corpo sujeito aos caprichos da natureza. Portanto, as mulheres estão mais próximas dos mistérios da concepção da vida (e de Deus) do que o homem, que, por isso, precisa daqueles imensos laboratórios de cientista louco com fagulhas elétrica chispando para todos os lados.
Esse é o tema de Laura Moss, quando duas mulheres de áreas tão opostas (necropsia e enfermagem obstétrica) se fundem em um Dr. Frankenstein enquanto tentam reanimar o corpo de uma criança morta.
(Re) Nascer tem alguns tropos de “horror corporal” e alguns tropos de terror direto, mas não é realmente uma história de monstro. É mais um thriller médico, protagonizado por duas conspiradoras do mainstream médico-legal, ambas motivadas a partir de um lugar de desespero e trauma pessoal.
O tom que Moss estabelece faz com que os eventos pareçam quase plausíveis. E se os corpos humanos pudessem se regenerar como uma estrela do mar faz? Existe alguma maneira de um cadáver voltar à vida através de meios médicos legítimos?
A questão é que essa quebra feminista de paradigma leva à questão para além da amoralidade do cientista louco ou da busca de se equiparar a Deus a qualquer custo.
Nos conduz à discussão do próprio destino da Medicina quando ela se transforma naquilo que o sociólogo Erwing Goffman (1922-1982) chamava de “instituição total” – tecnologia disciplinar para manter os corpos sob o controle de uma finalidade totalitária. No caso da Medicina, a manutenção da vida a qualquer custo a tão ponto em que negue o direito individual à própria morte. O irônico momento em que a ciência médica corporativa se torna uma ciência negacionista.
O Filme
Os dois personagens principais – Dra. Rose Casper (Marin Ireland) e Celie (Judy Reyes) - estão bem-preparadas para abordar essas questões.
Rose trabalha em um necrotério hospitalar, e Celie é enfermeira de parto. Rose é anti-social e claramente guarda segredos. Por outro lado, Celie está criando sua filha Lila (A.J. Lister) por conta própria como mãe solteira e é muito popular entre seus colegas de trabalho. Ela claramente ama seu trabalho. As duas mulheres trabalham no mesmo hospital, mas não se conhecem.
A Dra. Rose Casper é uma fria patologista de necrotério. Para ela, estar entre os mortos é mais interessante interagir com os vivos. Em seu apartamento sujo no Bronx, Rose experimenta obsessivamente técnicas de reanimação de organismos morto, usando células-tronco embrionárias - como ela as obtém envolve uma piada doentia que esse humilde blogueiro se recusa a dar spoiler para não a estragar.
Um porco bufante chamado Muriel, que anda pelo apartamento fuçando por todos os lados, é até agora a única cobaia bem-sucedida de Rose. Ela acredita estar preparada para o passo decisivo: reanimar corpos humanos mortos.
Enquanto isso, Celie luta para encontrar tempo para sua animada filha de seis anos Lila, em meio a intermináveis plantões na maternidade. Ela sente-se constantemente culpada. E tudo fica ainda pior quando Lila morre inesperadamente de meningite bacteriana.
A Dra. Rose vê no pequeno corpo de Lila que chega ao necrotério do hospital a chance para o experimento final. Rose embala o cadáver em uma mala para levá-lo de volta ao seu pequeno apartamento transformado no covil do cientista louco.
Quando Celie descobre que o corpo de Lila foi “perdido”, ela passa a suspeitar do jeito furtivo da Dra. Rose e a segue para sua casa. Para lá encontrar a sua filha viva mais uma vez, mas ainda sustentada por aparelhos.
O que temos então é um espetáculo absurdo de Celie e Rose, profissionais médicos, se unindo para trabalhar no experimento. Celie vai morar com Rose. Elas se revezam cuidando da criança morta. Elas saem do apartamento para seus empregos reais, revezando-se. Preparam seus almoços na pequena cozinha. Muriel, o porco ressuscitado, fuça no canto. Equanto Lila está deitada na cama, com sua pele com um tom arroxeado.
Como as células fetais são necessárias para fazer o soro essencial, Celie usa da sua posição na maternidade do hospital para adquiri-lo por meio de meios desonestos – chegando à monstruosidade.
É uma narrativa em queima lenta estranha, inteligente até mesmo bem-humorada (no sentido do humor negro) sobre uma espécie de co-parentalidade dedicada: para a Dra. Casper, Lila é a cobaia de um experimento científico; e para Celie é a oportunidade de expiar o sentimento de culpa de uma observação que a filha faz para ela no começo do filme: “Mãe, não estou recebendo atenção suficiente!”.
Mal sabia ela que tudo o que tinha que fazer era morrer.
Goffman, instituição total e hipertelia
O tropos da monstruosidade, indispensável em advertências prometeicas sobre as consequências de roubar o fogo dos deuses, é apenas sugerida, mas jamais desenvolvida. A pequena Lila desperta. Como o porco, começa a andar aleatoriamente pelo apartamento e até senta-se parra ver TV – desenhos animados são os favoritos, numa passagem de crítica social: a associação entre zumbismo, TV e crianças.
Mas em nenhum momento sabemos se o que foi ressuscitado é verdadeiramente Lili – olha estranhamente para a mãe, enquanto suas reações parecem mais instintivas do que dirigidas por uma consciência.
O tema central de (Re) Nascer parece ser mesmo como a medicina se transformou numa instituição total. Se a missão da medicina é manter o paciente vivo e, através da razão, técnica e conhecimento, sobrepujar os caprichos arbitrários da Natureza e impor a vida sobre a morte, aos poucos essa missão se converte numa instituição total – como um fim em si mesmo, a instituição se autonomiza e ela própria quer sobrepujar a própria morte do sistema como instituição. Se não, a instituição perderá a finalidade.
É quando o “fio vira”. Ou, para acrescentar a Erving Goffman, uma ideia de Jean Baudrillard, a medicina é dominada pela hipertelia – quando a finalidade inicial se volta contra si mesma. A vida tem que ser mantida a todos custo, negando ao indivíduo a dignidade de morrer.
No limite, o corpo é disciplinado pela instituição total – a tecnologia torna-se disciplinar, para manter o sistema autônomo funcionado. Paradoxalmente, a produção (vida) é substituída pela reprodução - a “morte” do paciente como indivíduo com liberdade e dignidade.
Ficha Técnica |
Título: (Re) Nascer |
Diretor: Laura Moss |
Roteiro: Laura Moss, Brenda J. O’Brien |
Elenco: Marin Ireland, Judy Reyes, A.J. Lister |
Produção: Retrospecter Films, Shudder |
Distribuição: IFC Films |
Ano: 2023 |
País: EUA |