Para que serviu o show midiático da prisão dos "mensaleiros" cuidadosamente roteirizado pelo STF e
a mídia se todos os lados do espectro político interpretam o episódio a seu
favor? Talvez a verdadeira função do show tenha sido imaginária, como um
verdadeiro “potlatch” político: um espetáculo irônico de destruição e
desperdício de recursos públicos, cujo processo de julgamento do mensalão supostamente
queria combater através de uma exemplar demonstração moralizante. Tal qual a
instituição primitiva do “potlatch”, um show oferecido como dádiva em pleno
feriado como demonstração de poder inútil e fetichista. Espetáculo de
desperdício de riqueza como forma mítica de sedução e fascínio. Se isso for verdade, testemunhamos um evento político brasileiro que se inscreve no campo da Patafísica: a ciência
das soluções imaginárias, tal como foi proposta pelo dramaturgo Alfred Jarry, o precursor do
teatro do absurdo.
“Em um mundo cada vez
mais delirante, convém analisá-lo de forma delirante.”
(Jean Baudrillard)
Com pompa e circunstância, as
emissoras de TV acompanharam ao vivo os condenados do processo do mensalão se
entregarem na Polícia Federal. Avidamente, as teleobjetivas procurando o melhor
ângulo na subida da escadaria do avião da Polícia Federal que os levaria a Brasília até serem confinados no presídio da Papuda. Os mais aguardados, José
Dirceu e Genoíno, não se fizeram de rogados: cada qual levantou o punho
cerrado, em gesto de desafio para caracterizarem diante das câmeras que eram,
na verdade, presos políticos.
O impacto simbólico pretendido
pelo presidente do STF (ordens de prisão expedidas em pleno feriado da
Proclamação da República) atingiu em cheio a opinião pública, tal qual ondas de
impacto da explosão de uma bomba: discussões acirradas e polarizadas dominaram todas
as redes sociais durante o dia. Toda a ritualística explicada didaticamente
pela TV (detalhes das poltronas ocupadas por cada um no avião, as algemas, o
trajeto pacientemente traçado com locais e horários de partida e chegada,
detalhes da cela da prisão dando destaque à latrina e o banho de água fria
etc.) desde a apresentação dos condenados à suas prisões.
O que significou o show do mensalão para aqueles que estavam presos nas estradas congestionadas do feriadão? |
Para compreender o significado
desse show midiático devemos sair do seu aspecto manifesto (o escândalo moral e
a sua utilidade político-partidária) e aprofundar o latente: o seu impacto na
indiferença do público e no imaginário do sistema político como um todo.
A espiral de interpretações
Há 63 anos o pesquisador
norte-americano Paul Lazarsfeld observava em pesquisas empíricas de recepção
que nove em cada dez receptores eram indiferentes aos conteúdos das mídias.
Apenas um, o líder de opinião, filtrava esses conteúdos de acordo com sua
predisposição política-ideológica e memória seletiva. E parece que as coisas
não mudaram muito desde então. O show midiático das prisões ao vivo parece não
ter conseguido qualquer rendimento pedagógico como lição moral, persuasão ou
convencimento. Ou, pelo menos, de tragédia para os derrotados ou de glória para
os vitoriosos.
Pelo contrário, seu efeito
apenas criou uma espiral interpretativa ascendente, onde ambos os lados
reforçaram suas posições e buscaram no evento argumentos positivos para o seu
lado respectivo – a presidenta Dilma achando que era até melhor antecipar as
condenações para se livrar do embaraço para as próximas eleições; a Direita que
viu mais munição para desmoralizar a “comunalha” e os “petralhas”; a Esquerda
achando que os erros jurídicos do STF se voltarão contra a Direita; e
intelectuais como o filósofo Renato Janine Ribeiro que suspeitam de uma vitória
de Pirro no show pelo alto custo político da engenharia jurídica.
Jean Baudrillard: o delírio do mundo não se origina da loucura, mas da própria racionalidade |
Se quisermos procurar os efeitos
dessa bomba armada pela parceria STF e mídia, devemos buscar outro tipo de
efeito que está para além do campo da semiótica ou da ciência política: estaria
no campo da Patafísica.
A Patafísica é a essência do mundo
A Patafísica, “a ciência que
está além da Física e da Metafísica”, é a definição dada para o conceito criado
pelo escritor e dramaturgo francês Alfred Jarry (1873-1907) que inspiraria o
teatro do absurdo de Beckett, Ionesco e Jean Genet. “A ciência das soluções
imaginárias, onde se encontram as ciências exatas e inexatas, as atividades e
inatividades, é uma ciência do particular e da exceção, e que todos os homens a
praticam sem saber”, afirmava Jarry.
Alfred Jarry |
A racionalidade jurídica do
processo do mensalão produz o seu oposto: a irracionalidade e desperdício. Pretendia
punir o desperdício da corrupção, mas os altos custos envolvidos com a
transferência dos condenados a Brasília como demonstração exemplar de
autoridade (desnecessariamente, pois terão que retornar ao seus próprios
domicílios para o cumprimento da pena) confirmou ironicamente a irracionalidade
que pretendia punir.
O show midiático do STF acabou
se constituindo em um autêntico potlatch
político: tal como a instituição de tribos indígenas da América do Norte tão
estudada pelo antropólogo Marcel Mauss, quanto maior a oferta de bens e a sua
destruição, mais rico e poderoso se torna o indivíduo. Tal qual o potlatch, a condenação veio como uma
dádiva (ou presente) em pleno feriado, às custas da queima de recursos
públicos. Tal qual a instituição indígena, fascinação fetichista e religiosa
pela destruição daquilo que pretendia combater como exibição exemplar de
moralidade. Inutilidade e futilidade, a inversão irônica e patafísica de todos
os sistemas.
O escândalo moral como simulação política
Dr. Faustroll: as bases do pensamento patafísico de Alfred Jarry |
A chegada do PT ao poder em 2003
foi acompanhada pela expectativa de que Lula e o partido enfiariam os pés pelas
mãos, criando um descontrole da pilotagem econômica tão alarmante que cairiam
antes das próximas eleições. Mas a gestão econômica “deu certa” (o
reconhecimento internacional não pelas medidas “revolucionárias” de Esquerda,
mas por projetos de inclusão social aguardados pelo próprio capital para a
normalização de reprodução da força de trabalho e consumo inerentes a uma
economia de mercado). Ironicamente, o país finalmente entrou no capitalismo
através de um governo “de Esquerda”.
Isso representaria uma ameaça
potencial ao sistema político: a força simbólica das diferenças políticas
produzidas pelo jogo partidário poderia enfraquecer com a descoberta dessa
isonomia de todos os discursos políticos. Por isso, o sistema agônico deve ser
regenerado pela simulação do escândalo moral.
O escândalo é a estratégia de
simulação do sistema político. A cada denúncia de corrupção, a cada
assassinato, é como se salvaguardasse a integridade referencial. No Brasil, os
sucessivos escândalos, repercutidos diariamente pela mídia, que envolvem o PT e
a figura do presidente (“mensalão”, “caos aéreos”, etc.) simulam uma diferença
entre os discursos ideológicos do espectro político-partidário. No final,
encobrem o fato de que um partido de esquerda, quando no governo, não consegue
efetivar na vida real o programa ideológico professado (revolução, socialismo).
Um governo de esquerda que “desse certo” poderia tornar-se potencialmente
detonador de uma perigosa crise sistêmica: a exposição da reversibilidade de
todos os discursos político-partidários e, por fim, a apatia política dos
cidadãos e a crise regenerativa.
Ao fim desse raciocínio
patafísico, poderíamos chegar à descoberta da verdadeira “função” do show
midiático da prisão dos condenados do mensalão: a renovação simbólica do
sistema, a injeção de sentido ou significado para reforçar a miragem
referencial do sistema político. Principalmente através das figuras nostalgicamente
fortes (Genoíno e Dirceu) de uma época onde o sistema político ainda não havia
se fechado e dobrado sobre si mesmo.
Ironicamente, as imagens dos
dois com os punhos cerrados e levantados como prisioneiros políticos
representou duas mensagens contraditórias: de um lado, a renovação do sistema
distintivo do espectro político através do escândalo e, do outro, um símbolo
nostálgico de um passado onde as ideologias pelo menos procuravam algum
sentido.