sexta-feira, novembro 02, 2018

Retrofascismo: na Guerra Híbrida o fascismo retorna como farsa

Em 2011 este “Cinegnose” teve uma sombria antevisão: “o retrofascimo brasileiro só está à espera de uma tradução política para conquistar, mais uma vez, o Estado”, afirmava este humilde blogueiro. E este momento chegou! Só que dessa vez como farsa, diferente da tragédia do fascismo clássico do século XX. Conceito criado pelo pesquisador em Cultura e Tecnologia, Arthur Kroker, “retrofascismo” representa o mix dos motivos que fizeram surgiu o fascismo histórico com a hipertecnologia do século XXI. É necessário entender as nuances entre o fascismo do passado e o atual, como mais um lance no xadrez geopolítico da Guerra Híbrida brasileira: assim como no passado, o retrofascismo utiliza a matéria-prima psíquica da personalidade autoritária, mas dessa vez como estratégia de dissuasão midiática (e, por isso, como farsa) – criação da agenda da polarização em torna das questões identitárias, culturais e de costumes para esconder um programa de governo ruim de voto. Porém, produziu três efeitos residuais: o efeito “Uma Noite de Crime”; o efeito “A Ficha Caiu!”; e o efeito “Apertem os Cintos, a Grande Mídia sumiu!”.

Em 2011 este Cinegnose concluía o artigo “Retrofascismo e a Bomba Tecnológica” (clique aqui) com um sombrio prognóstico: “Pior que as práticas isoladas de intolerância e preconceito é a preocupação de que o retrofascismo está à espera de uma tradução política para conquistar, mais uma vez, o Estado”... E sete anos depois esse momento chegou!
Naquela oportunidade, ocorriam pelo País, aqui e ali, episódios de racismo e intolerância: após as últimas eleições presidenciais em 2010 com a vitória de Dilma Roussef, redes sociais eram invadidas por mensagens incitando ódio aos nordestinos; vinte ciclistas tinham sido atropelados intencionalmente numa mobilização do grupo Massa Crítica em Porto Alegre; o grupo começou a receber ameaças anônimas elogiando o motorista e incentivavam novos ataques a ciclistas; começavam a se tornar recorrentes agressões a homossexuais na região da Avenida Paulista, São Paulo; crescimentos dos casos de bullying digital nas escolas com a criação de perfis falsos nas redes sociais para difamar pessoas.
Na oportunidade este humilde blogueiro apontava para um ponto em comum em todos esses casos: o novo fenômeno do Retrofascismo – o fascismo, que supostamente jamais voltaria a acontecer, retornaria como farsa, como forma latente de personalidade autoritária.

Fascismo histórico e Retrofascismo

“Retrofascismo” é um conceito cunhado pelo pesquisador canadense em cultura e tecnologia Arthur Kroker. Uma mistura entre os motivos que fizeram surgir o fascismo histórico (depressão econômica e senso do enfraquecimento do nacionalismo) com hiper-tecnologia atual que virtualiza o outro e a si mesmo nas tecnologias de convergência.
A questão é que o retrofascismo é o fascismo histórico que retorna como farsa. Nos anos 1990, Kroker relacionava o fascismo com a ascensão das tecnologias que virtualizam o organismo sócio-biológico-linguístico humano (clonagem, virtualização do eu nas redes etc.). O fascismo atual como formação reativa ao senso de desaparecimento do eu por meio da personalidade autoritária: limpeza sexual, limpeza étnica, limpeza intelectual, limpeza racial, limpeza do Estado (moralismo anticorrupção) – limpeza como paradigma universal.

Arthur Kroker e o Retrofascismo: fascismo + hipertecnologia

No caso de um país periférico no século XXI como o Brasil essa natureza farsesca ressurge quando colocamos a campanha e vitória do candidato de extrema-direita Jair Bolsonaro dentro do contexto da Guerra Híbrida iniciada em 2013 – quando o País foi colocado no radar das “primaveras” que pipocaram em todo o planeta dirigido pelo Departamento de Estado norte-americano.
A matéria-prima psíquica continua a mesma – a chamada “personalidade autoritária” como definiu Theodor Adorno nas suas célebres pesquisas empíricas realizadas nos EUA nos anos 1940 – sobre isso clique aqui. Tanto lá atrás no nazi-fascismo como agora com o crescimento da extrema-direita (e toda agenda de intolerância e racismo) no mundo, esse substrato psíquico é agenciado por líderes, movimentos ou partidos que tentam conquistar o Estado.
Porém, dessa vez como farsa: a personalidade autoritária (e seu agenciamento político, o fascismo) torna-se álibi ou pretexto para um objetivo estratégico dentro do xadrez global da guerra híbrida – submeter um país geopoliticamente importante como o Brasil à banca financeira internacional e aos piratas do petróleo, impacientes em por as mãos no Pré-Sal.
É necessário entender as nuances entre o fascismo clássico e o atual para compreender a verdadeira revolução midiática que a campanha eleitoral vitoriosa de Bolsonaro, que emulou, em muitos aspectos, a estratégia de convergência tecnológica de Trump – vitórias eleitorais que simplesmente ignoraram a grande mídia de massas, concentrando-se nas mídias e plataformas de convergência tecnológica. 


Ao invés de técnicas hipodérmicas de propaganda política (massificação por meio de repetição, reforço e condicionamento), de agora em diante teremos viralizações meméticas.

Estratégia de dissuasão

Lá no passado, o nazi-fascismo surgiu como reação à condição de depressão econômica generalizada na Europa combinada com o senso de humilhação nacional. 
Hoje, pelo menos no caso brasileiro, fez parte de uma elaborada estratégia de dissuasão: confundir a opinião pública com a polarização política que impediu qualquer debate racional – que se materializou na ausência de debates no segundo turno, enquanto o candidato líder das pesquisas eleitorais alimentava facetas da personalidade autoritária das maiorias silenciosas (o anti-comunismo e anti-petismo histérico, “caneladas” para criar dissonância cognitiva, conservadorismo sexual etc.) nas redes sociais, principalmente WhatsApp.
Apesar do sucesso das diversas primaveras pelo mundo usando redes sociais para criar Revoluções Populares Híbridas (RPH – sobre esse conceito, clique aqui), no Brasil havia um problema: historicamente, sempre a direita foi ruim de voto. Com a sua agenda política alinhada aos EUA e programas econômicos baseados no liberalismo selvagem que qualifica políticas sociais como “populistas”, a direita apenas conseguiu chegar ao Estado sempre por meio do golpe militar ou político.
Como criar uma RPH se a legitimação final dessa “revolução” através do voto seria improvável, a partir do momento que fosse colocada a plataforma neoliberal em debate? Privatizações e extinção de estatais estratégicas, entrega das riquezas nacionais e enxugamento das finanças às expensas das políticas públicas e seguridade social não é exatamente um conjunto de medidas fácil para ser colocado de forma franca em uma mesa de debates. 
Para problemas complexos, soluções simples: então, porque não suspender qualquer tipo de debate, e no lugar incitar a verdadeira síndrome psíquica autoritária brasileira para tornar a atmosfera política densa? Os dados sócio-psicológicos já estavam dados. Por exemplo, na overdose de farmácias e igrejas neopentecostais no Brasil (nas periferias urbanas praticamente ambas em cada quarteirão) são evidentes indícios da doença física e psíquica que acomete o cotidiano brasileiro.  


Two-Step Flow e Agenda Setting

Em postagem anterior analisávamos que as estratégias de guerra híbrida se baseiam nos estudos do cientista Político Gene Sharp (táticas de “Ação Direta”), de Paul Lazarsfeld nos anos 1940 (Efeitos Limitados da Mídia e a Teoria “Two-Step Flow”) e da dupla Donald Shaw/Max McCombs (Teoria da “Agenda Setting”),
A Guerra Híbrida se fundamenta no tripé Grande Mídia/Líderes de Opinião/Mobilização Não Violenta com os seguintes passos: (a) criação de um “Frame”(agendamento ou pauta) pela grande mídia, (b) dentro do qual os líderes de opinião em grupos e comunidades pensarão os temas e influenciarão seus grupos e comunidades, (c) que serão mobilizados ou de forma direta em manifestações nas ruas ou virtualmente através do compartilhamento de fake news e pós-verdade nas redes sociais.
Desde o ano passado a grande mídia colocou o noticiário dentro do “frame” dos movimentos identitários e culturais (gênero, étnico-racial, geracional etc.). E foi no interior dessa agenda é que foi colocada toda a campanha eleitoral: porte de armas, aborto, feminismo, intolerância a minorias, racismo etc. foram temas transversais dos discursos dos candidatos. 
O propósito foi evidente, encaminhando para um óbvio segundo turno entre Bolsonaro X Haddad: a polarização da opinião pública que gerou a campanha eleitoral mais despolitizada da história brasileira – não se debateu projetos, políticas econômicas micro ou macro. Quando muito, algumas generalidades como “jogar pesado” contra o déficit público ou o tema guarda-chuva “Reforma da Previdência”.


A ausência de debates no segundo turno foi o desfecho natural, ficando no seu lugar o reforço da personalidade autoritária da maioria silenciosa brasileira através do disparo em massa de milhões de notícias falsas com apoio empresarial (o “ZapGate”), cujo principal efeito foi a “pós-verdade” – o reforço das predisposições autoritárias (ódio e intolerância) cujo critério verdade/mentira é o que menos importa.
Criado o “frame” para todos os lados discutirem dentro da lógica binária dessa moldura midiática, a Guerra Híbrida atingiu em cheio o objetivo principal: esconder da opinião pública o lado mais impopular e ruim de voto de um candidato de extrema-direita – o neoliberalismo selvagem destruidor do Estado de Direito e de garantias sociais.
Portanto, essa é a natureza farsesca que faz do fascismo brasileiro um retrofascismo: o discurso de ódio e intolerância de Bolsonaro serviu de reforço do frame criado pela grande mídia, turbinou a polarização, catalisou a personalidade autoritária da maioria silenciosa (que momentaneamente se converteu a Bolsonaro) que, ao final, cumpriu a tática de dissuasão tornando, pela primeira vez, um candidato de extrema-direita bom de voto – porque escondeu seus projetos e políticas para um futuro governo por trás do debate polarizado das questões identitárias, de costumes e culturais.
Em outras palavras: a personalidade autoritária das maiorias silenciosas foi agenciada pelo discurso fascista de Bolsonaro como farsa (ao contrário do fascismo histórico, nacionalista, este é entreguista e só fala de “pátria” e “nação” para catalisar a doença psíquica brasileira) para esconder da opinião pública o programa de governo ruim de voto do candidato de extrema-direita.


Efeitos colaterais

Esse retrofascismo já está produzindo alguns efeitos colaterais:
(a) Efeito “Uma Noite de Crime”: certamente o leitor deve ter assistido ou ouvido falar do filme The Purge (Uma Noite de Crime), num EUA distópico no qual anualmente, por um período de 12 horas, toda forma de crime é permitida para liberar os instintos assassinos e manter a estabilidade social. 
A vitória de Bolsonaro com o discurso retrofascista está criando um efeito de “liberou geral”: juízes eleitorais que decidem ações policiais em universidades sob “suspeitas de ações irregular de campanha política”; o estudante de Direito da faculdade Mackenzie (SP) que grava vídeo comemorando que é “hora de matar a negraiada” porque o “capitão” ganhou a eleição; um travesti esfaqueado no Centro de São Paulo enquanto os agressores gritavam “Bolsonaro!”; vídeo circula nas redes sociais com homofóbicos no metrô de São Paulo cantando “Ô bicharada, toma cuidado, o Bolsonaro vai matar viado!”.  
Depois que o discurso retrofascista foi útil, como farsa, para a tática de dissuasão eleitoral, resta saber o quê fazer com a horda de mortos vivos que agora não conseguem mais sair do personagem. Teme-se o que será dos grandes centros urbanos na noite de primeiro de janeiro de 2019 – festa da posse do capitão Jair Bolsonaro.
(b) Efeito “A Ficha Caiu”– depois de um processo eleitoral despolitizado, polarizado, cujo frame midiático impediu qualquer debate sobre programas de governo, agora parece cair a ficha de jornalistas e agentes do campo econômico-financeiro: “no programa de Bolsonaro só aparece uma vez a palavra “meio ambiente”!”, exclama um comentarista na Globo News; “Bolsonaro não termina o mandato com esse programa para conter a dívida pública”, diz Zeina Latif da XP Investimentos no canal "Painel WW" do ex-global William Waack, no YouTube; “a fusão dos ministérios da Agricultura com Meio Ambiente poderá fechar o mercado europeu para o agronegócio brasileiro”, comenta estupefata a jornalista Natuza Nery da Globo. 
Terminado o bate-bumbo midiático das causas identitárias para gerar polarização, todos caem na real: “Bolsonaro, como fica o nosso bolso?...”.
(c) Efeito “Apertem os cintos, a grade mídia sumiu”: é exagero afirmar que Bolsonaro levou as eleições apenas com as redes sociais. Foi necessário num primeiro momento a grande mídia de massas criar o frame que emoldurou e conteve os debates político-eleitorais. Só então, dentro desse agendamento midiático, é que Steve Bannon, Cambridge Analytics, puderam nadar de braçadas criando polarizações que colocaram Trump e depois Bolsonaro no poder.
 Mas o que ficou para os vitoriosos foi a ideia de “bala mágica” que representou as viralizações de vídeos, memes e fake news em redes sociais. A transformação de Bolsonaro em candidato-avatar que se elegeu à base de “pitacos”, “mitagens” e “lacrações”. Para ele, Twitter é o seu porta voz e o WhatsApp sua opinião pública. 
Enquanto isso, do lado de fora do luxuoso condomínio da Barra da Tijuca onde mora Bolsonaro, na rua, ficam os repórteres da Globo informando apenas a partir de vídeos e twittes que o presidente eleito posta na rede. 
Com evidente má vontade, Bolsonaro concede entrevistas coletivas para jornalistas da grande mídia. Com exceção da TV Record que promete ser a nova Fox News brasileira. Afinal, a emissora pertence ao bispo Edir Macedo. Um pastor preocupado em cultivar a doença psíquica que assola os grandes centros urbanos com uma igreja da Universal em cada quarteirão. 
A doença psíquica que turbinou o retrofascismo brasileiro como farsa.

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