Depois das
manifestações de rua onde foram produzidas bombas semióticas pontuais (fusca
incendiando, coreografia desafiadora dos black blocs etc.) acompanhamos a mídia
repercutir imagens de racismo, linchamentos, intolerância e crimes cometidos
por menores principalmente por meio de vídeos amadores produzidos por telefones
celulares. Todas as imagens seguidas de comentários alarmistas em telejornais
que incitam soluções ainda mais radicais. Sob a aparência neutra de informação,
as imagens a longo prazo suscitam uma estranha nostalgia que se espalha na
grande mídia e redes sociais. “Marcha da Família”, depreciação da política e
intervenção militar ou o revival de alucinadas conspirações comunistas cubanas e Guerra Fria são sintomas de um complexo psíquico mais profundo e preocupante: o
protofascismo colocado em movimento por meio do mecanismo semiótico do “retrofascismo”
– nostalgia pós-moderna + protofascismo.
· O jogador Arouca, disputando uma partida em Mogi Mirim/SP pelo time do
Santos, assim como o árbitro Márcio Chagas em jogo pelo campeonato gaúcho foram
alvos de insultos racistas por parte de torcedores;
·
Após o episódio de defesa do ato de linchamento contra um garoto negro
que havia cometido furtos em um bairro no Rio de Janeiro, a apresentadora de um
telejornal do canal SBT Rachel Scherazade sai nas redes sociais apoiando a
convocação da “Marcha da Família com Deus Pela Liberdade” para o dia 22 que
defende, entre outras coisas, a destituição da presidenta Dilma e do vice
Michel Temer, dissolução do Congresso Nacional e intervenção militar,
ressuscitando antigos fantasmas como conspirações cubanas e comunistas;
·
O apresentador do programa Brasil Urgente da Band, José Luiz Datena, vem
quase que diariamente, todo final de tarde, justificando os casos de
linchamentos noticiados alegando que o brasileiro está “de saco cheio” e de que
a Justiça “só defende os direitos humanos dos criminosos”;
·
Nas últimas semanas os telejornais vêm dando especial destaque a vídeos
produzidos por celulares de anônimos mostrando tentativas ou casos de
linchamento e espancamentos;
·
Nos últimos meses esses mesmos telejornais também vêm destacando casos
de crimes cometidos por menores ou casos de quadrilhas onde o texto
jornalístico sempre destaca o número de menores. Quase sempre são destacadas
opiniões de “especialistas” que defendem a diminuição da idade penal;
·
A grande mídia dá destaque à suposta intervenção da Rússia na crise
política da Ucrânia como uma espécie de revival
da Guerra Fria entre aquele país e os EUA. Destaques para a expressão “não
mexam com o grande urso!”.
"Marcha da Família" em 1964 - ícone conservador do Golpe Militar |
Como interpretar
esses eventos tão sincronizados e recorrentes? Após as grandes manifestações de
rua que serviram de matéria-prima para a construção de uma variedade de
bombas semióticas que conseguiram dar uma turbinada à atmosfera de caos e
descontrole nas ruas das grandes cidades, agora temos uma mudança de tática com
uma ação semiótica não mais pontual (o fusca queimado, os ônibus incendiados, a
coreografia desafiadora dos black blocs etc.), mas agora cotidiana e de efeito
acumulativo de longo prazo: a bomba
semiótica retrofascista.
Observando os
episódios relacionados acima podemos perceber que os discursos midiáticos estão
articulados em dois planos nítidos: o plano retro (uma espécie de ressurreição
de antigos ícones e símbolos como a Guerra Fria, a ameaça do comunismo cubano,
imagens iconicamente históricas como a “Marcha Pela Família” e dos esquadrões
da morte pré-golpe militar brasileiro de 1964) e o plano protofascista (a
atmosfera psicológica de linchamento – real e midiático – intolerância,
revanche, vingança e violência).
Pensando por um
ponto de vista semiótico, esse plano retro utiliza a nostalgia, onda de revival ou
simplesmente clichês icônicos e históricos como suporte significante (ou se
quiser, uma expressão material) para uma atmosfera difusa e contínua de
percepções e sentimentos. Na verdade, esse plano retro parece muito mais com racionalizações
no sentido freudiano: álibis ou pretextos para que percepções e sentimentos
protofascistas latentes na sociedade possam se expressar e, o que é pior, serem
direcionadas politicamente.
Para que possamos desmontar mais essa bomba
semiótica, temos que procurar entender o funcionamento de cada um desses
planos: por que a nostalgia retro? Qual a explicação do desenvolvimento desse imaginário
protofascista, imageticamente repercutido pela grande mídia e constatado na
prática diária das redes sociais?
A nostalgia pós-moderna
Os jovens são
nostálgicos. Mas é uma nostalgia paradoxal: saudades de épocas que não foram
vividas, diferente da nostalgia tradicional.
Nostalgia pastiche pós-moderna |
Jovens montam as
ambiências de suas novas residências com objetos e decorações que remetem aos
anos 60 e 70; os anos 80 retornam com “baladas” especializadas nessa década
(“trash anos 80”, Projeto Autobahn etc.), feiras de rua onde são
comercializados objetos dessa época (livros, jogos, brinquedos) para grupos de
jovens estranhamente nostálgicos por uma época que não vivenciaram. Bares
temáticos recriam para jovens ambiência e atmosferas de épocas e lugares
distantes no tempo e no espaço (“botecos chics” que revivem os botecos populares
dos anos 50 e 60, bares frequentados por tribos de jovens rockers em suas jaquetas pretas de couro, topetes à Elvis em uma
ambiência estudadamente cenográfica com junkerboxes, pisos quadriculados, e
posters com sucessos cinematográficos da época).
O jovem atual é
conservador não apenas esteticamente: essa relação nostálgica com a História
tende a idealizar o passado como épocas que foram melhores. Essa percepção se
fundamenta nas próprias referências midiáticas ao passado, para começar
cinematográficas e, depois, televisivas pelas retrospectivas superficiais.
Golpe militar de
1964, Guerra Fria e comunistas se fundem num amálgama de política, Woodstock, Beatles
com imagens de estetizadas de Chê Guevara em baús de motoqueiros na atualidade
e uma percepção de que no passado os jovens eram mais “atuantes” e que hoje são
“alienados” pelo carnaval e futebol.
Protofascismo
Em seus famosos estudos sobre a personalidade
autoritária nos anos 1940, Theodor Adorno elaborou a chamada "Escala F" resultando na
fórmula clássica sobre o caráter fascista: “quem é duro consigo mesmo,
também é com os demais”. Essa dureza individual viria como estratégia psíquica
de sobrevivência em tempos difíceis (hiperinflação, pobreza, falta de
perspectiva, humilhação etc.) resultando em ressentimento, vingança e ódio
descontado no socialmente mais fraco ou no bode expiatório oferecido no momento.
Retrofascismo: nostalgia pós-moderna + potofascismo |
Na
sua forma clássica, após a Primeira Guerra Mundial, o fascismo surgiu como uma
reação à condição da depressão econômica generalizada na Europa combinada com o
senso de humilhação nacional. Nada
mais foi do que a tradução política desse mecanismo psíquico difuso e
regressivo de autoconservação.
Esse psiquismo protofascista (de “proto” – aquilo
que é primitivo, incipiente) retorna na atualidade através de um novo endurecimento das condições da vida cotidiana, dessa vez pelas novas formas de organização tecnológica do trabalho
decorrentes da alteração das estratégias de acumulação do capital:
(a) crise da ideologia meritocrática das classes
médias: a precarização de um trabalho mal pago e insegurança profissional leva
àquilo que o professor de Sociologia do Trabalho da Unicamp Ricardo Antunes chama de “vida urbana destroçada”. Frustrada, toda
uma nova geração descobre que estudar para crescer na vida se tornou um mito
após passar anos em escolas privadas caras e de péssima qualidade – sobre isso
clique aqui. Essas condições criam sentimentos de traição, humilhação e
ressentimento prontos para se converter em ódio contra os “preguiçosos”, “encostados”,
sejam eles pobres, imigrantes ou todos aqueles que recebem benefícios sociais
do Estado.
(b) A precarização do trabalho e a “vida urbana
destroçada” (insegurança e paranoia do cotidiano da vida urbana) conduzem a uma
estratégia desesperada de racionalização da vida pelo apego a gadgets
tecnológicos como aplicativos, dispositivos móveis, redes sociais (que em outra
oportunidade chamamos de “bomba tecnológica” - clique aqui para ler sobre esse conceito) pela sedução de liberdade e
organização prometida pela virtualidade do ciberespaço. A “inteligência
coletiva” que tais ambientes digitais proporcionariam e que supostamente
resultaria em liberdade e interatividade reverte-se no contrário: tais ambientes tornam-se muito mais solipsistas e narcísicos ao criar um meio circundante plasticamente moldável aos desejos do usuário reforçando uma autoimagem grandiosa.
Aplicativos e gadgets tecnológicos: ambientes solipsistas que alimentam o protofascismo |
“Protegido” em um ambiente simulado, fecha-se à
experiência da alteridade e da convivência com o outro. Esse é um importante
pressuposto psíquico que alimenta o protofascismo.
(c) O já fartamente documentado apoio logístico e
financeiro dos EUA a grupos neonazistas na Ucrânia que defendem pureza étnica e
a derrubada de um governo eleito, alimenta o imaginário protofascista de
depreciação da política e estimula as soluções de força como saída para crises políticas.
Principalmente quando a mídia, por exemplo, coloca as notícias das
manifestações de rua no Brasil no mesmo bloco de notícias das crises na Ucrânia
e Síria, atiçando a analogia entre situações totalmente diversas.
Retrofascismo
O que espanta
nessa bomba semiótica é que a esperança em relação ao futuro só pode existir
retornando ao passado. Embora o psiquismo protofascista seja antigo e
ahistórico, ele sempre parece retornar através de diferentes significantes ou
suportes. Na atualidade, o novo significante para esse psiquismo está em uma
nostalgia cuja origem é midiática pela idealização do passado seja em filmes,
novelas ou retrospectivas jornalísticas.
O fascismo em sua
forma clássica já apelava para essa nostalgia do “retorno às origens” de um
passado idílico: retorno a supostos valores tradicionais da nação corrompidos
pelo capitalismo financeiro internacional, retorno aos valores da vida agrária,
dos laços familiares tradicionais e da pureza do corpo e do caráter por meio da
prescrição de hábitos “saudáveis” (antitabagismo, higiene, assepsia e
monitoramento médico – médicos da SS no caso da Alemanha - da população).
A diferença é que
a nostalgia atual que dá suporte ao protofascismo é muito mais midiatizada,
pastiche e pop, sem a aura mítica e ritual da mitologia nazi-fascista clássica.
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