Na série 'Silo' a verdade não está lá fora... foi esquecida

Baseado na trilogia literária "Wool", de Hugh Howey, a série Apple TV+ “Silo” (2023-) é uma ficção científica distópica que foge do clichê clássico “a verdade está lá fora” ao contar a história de um bunker de 144 andares abaixo da superfície com o que restou da humanidade num mundo pós-apocalíptico. A paranoia permeia todos os cantos do Silo e os habitantes estão sob constante vigilância. Todos perderam a memória da História: quem construiu o Silo, com qual propósito e como vieram parar ali. O esquecimento é incentivado e a curiosidade reprimida. Ninguém pode sair, a não ser condenados à morte, para morrerem envenenados pelo ar tóxico exterior. Mas, e se tudo for uma mentira totalitária? O problema é que a verdade em “Silo” não é aquilo que simplesmente se opõe à mentira.

A série Apple TV+ Silo (2023) é um ponto fora da curva nas produções sci-fi pós-apocalípticas atuais. Como este Cinegnose vem observando nas últimas décadas desse século, desde Distrito 9 (2009), a ficção científica vem imaginando futuros hipo-utópicos (futuros que projetam de forma hiperbólicas as mazelas já existentes no presente). A série Black Mirror é a versão mais acabada dessa tendência.

Baseada na série literária “Wool” de Hugh Howey tem ecos de produções como Blade Runner, The Expanse e até mesmo The Platform. Mas principalmente, Silo retorna ao tom distópico clássico de obras como 1984 de Orwell, ou Brazil, O Filme de Terry Gilliam – mundos futuros nos quais as tecnologias políticas e científicas se voltam de forma totalitária contra a humanidade.

O argumento é clássico: dez mil pessoas vivem em um enorme bunker subterrâneo conhecido como “O Silo” – uma gigantesca estrutura vertical composta de 144 andares terra abaixo, acessados por uma escadaria em espiral cujo grafismo dos créditos iniciais faz lembrar as hélices da estrutura do DNA.

Como numa distopia totalitária convencional, o Silo é um lugar onde dissidências ou desacordos podem ser punidos – o passado e a História foram destruídos e apagados da memória a tal ponto que os habitantes não sabem mais como chegaram lá ou o que aconteceu com o mundo exterior. Tudo o que sabem (ou pelo menos é que é informado para todos) é que lá fora o ar é mortal e o planeta foi devastado. Uma pequena fresta para essa devastação é uma janela panorâmica no andar do refeitório do Silo.

Uma estrutura judicial e policial é composta por xerifes e uma espécie de polícia do Poder Judiciário, comandado por juízes implacáveis. A própria estrutura vertical do Silo espelha a divisão em classes: no fundo, a Mecânica com operários que mantém o gerador de energia criado pelos “Pais Fundadores” em funcionamento. Nos andares intermediários, a classe média que trabalha nas funções administrativas – principalmente na área de informática. E no topo, juízes, xerifes e policiais.

Essa elite de juízes, policiais e xerifes tem em suas mentes de cor e salteado os artigos do “Pacto”, uma espécie de Constituição do lugar. Que prevê o risco que representam as “relíquias”: objetos antigos do mundo anterior (revistas, discos rígidos, utensílios variados etc.) que podem servir de pistas para a memória do que era o mundo antes dos “Fundadores”. 

Todos devem ser confiscados, e quem conspirar, mantendo-os em seu poder, poderá ser condenado à “Limpeza”: ser expulso do Silo e condenado a morrer lá fora, envenenado pelo ar – enquanto é observado por todos através da janela do refeitório. 

O ritual da “Limpeza” é estranho: o condenado veste um traje do tipo astronauta, sai e, diante de todos que assistem, limpa a lente da câmera que gera a imagem da tela do refeitório, para caminhar alguns passos e depois cair morto.

Essa é a pista do argumento central da série que a torna diferenciada dentro do universo das distopias clássicas. 

Nessa configuração, teríamos todos os elementos clássicos CosmoGnósticos – protagonistas prisioneiros de realidades artificialmente criadas ou que despertam em realidades (uma nave, um bunker etc.) sem saberem o propósito, porque estão ali e de onde vieram. Algo assim como a própria condição gnóstica e existencial humana nesse cosmos. Esquecimento ou perda induzida da memória por algum tipo de conspiração (política, cósmica etc.) completa o quadro.

Os primeiros episódios de Silo nos induzem a acreditar nessa configuração – o sistema basicamente mente sobre a realidade exterior para manter todos coagidos pelo medo e a ilusão. Mas a série vai além do clichê “a verdade está lá fora”.

Ao evitar esse clichê, Silo explora uma realidade mais sutil e complexa, para além das dicotomias verdade vs. mentira ou ilusão vs. realidade. De certa maneira, a série (e a obra literária de Hugh Howey) sofistica os argumentos CosmoGnósticos tradicionais, presentes em filmes como Show de Truman ou Matrix.

A Série

O Silo foi construído sobre uma série de mentiras e segredos. Allison (Rashida Jones) começa a ouvir sussurros de que os poderes que estão no Silo estão mentindo para seus moradores para mantê-los sob controle. Ela tem medo de compartilhar essas crenças com seu marido, que por acaso é o xerife (David Oyelowo), porque o Silo é um lugar onde a dissidência e o desacordo podem ser punidos com a “Limpeza”.

No primeiro episódio vamos conhecendo uma série de interessantes personagens, ante da narrativa se concentrar em Juliette (Rebecca Ferguson). Juliette trabalha nos pisos mecânicos na parte inferior do Silo, aqueles que mantêm tudo funcionando. 

Através de uma cadeia de eventos iniciados com as desconfianças sobre a natureza do Silo no primeiro episódio, Juliette acaba tornando-se xerife e, na esteira da investigação de uma série de suicídios e assassinatos, descobre uma enigmática relíquia: um HD com o número 18 estampado. Com a ajuda de um dissidente do setor de TI, ela abre por alguns minutos a estrutura de arquivos. Vê um vídeo supostamente do mundo exterior, com árvores e revoadas de pássaros sob um límpido céu azul.

Não tardará para que o setor judicial, administrado por uma figura imponente chamada Sims (Common), e o supervisor de tecnologia assustador (Tim Robbins), que pune as pessoas por postar as informações erradas on-line, verem nela o maior ameaça à ordem do Silo em anos.

Ao longo da temporada, o espectador perceberá que a paranoia está permeando todos os cantos do silo, os habitantes estão sob constante vigilância, e privilégios e poder vêm com um preço alto e qualquer um poderá se transformar em inimigo.

Depois de ver as imagens no disco rígido de George (Ferdinand Kingsley), Juliette agem rapidamente e têm um plano kamikaze para expor as mentiras do Judiciário. Com segurança em todos os níveis e Juliette, a pessoa mais procurada no Silo, não vai ser fácil e ela vai precisar de ajuda. A ajuda são os coadjuvantes da série Patrick Kennedy (Rick Gomez) e o hacker Danny (Will Merrick): eles explicam que podem utilizar amplificadores de sinal em todos os níveis do silo e podem transmitir as filmagens para o centro do monitor Judicial.

Há um subtexto político em Silo: a democracia formal, aquela que é reduzida apenas ao voto, quando na verdade a judicialização passa a dominar o sistema político. No Silo, periodicamente há eleição para a escolha do Prefeito. Porém, é o departamento judicial, com a sua casta de juízes que dão as ordens para buscas, apreensões e eventuais prisões, que efetivamente detém o poder. Amparado legalmente pelo livro do “Pacto”, dos “Pais Fundadores” que ninguém mais lembra quem foram.

A verdade está lá fora? – Alerta de Spoilers à frente

Como dissemos acima, o clichê “a verdade está lá fora” é evitado no final da temporada – abrindo grandes perspectivas para a segunda temporada. No final, Juliette descobre que a verdade é apenas mais uma dimensão em camadas e camadas de ilusões mentiras que se descortinam para as próximas temporadas.

Há apenas uma verdade, que fará lembrar a fala de Morpheus em Matrix: “bem-vindo ao deserto do real” – a única realidade é a de um planeta destruído por guerras nucleares enquanto o que restou da humanidade vive em inúmeros silos, isolados e incomunicáveis entre si.

E a revelação de que todo o ritual da “Limpeza” é uma operação psicológica para manter todos na linha.

Por que, afinal, os condenados limpam a lente da câmera mesmo sabendo que são seus últimos momentos de vida lá fora? Na verdade, aquela imagem de um suposto mundo exterior idílico e limpo é uma imagem de computação gráfica projetado no visor do capacete dos condenados.

O vídeo gerado por computador atua como um gatilho psicológico que convence o condenado de que precisa dizer a verdade para todos no Silo. Então, precisam limpar os sensores para que outros também possam ver a suposta realidade que ele está vendo. 

Mas por que essa limpeza é tão importante?

O sensor da câmera fora do Silo que captura a imagem do mundo exterior fica empoeirado na ausência de limpeza. E os cuidadores do Silo não podem se dar ao luxo de enviar alguém para fora para limpá-los, porque se eles retornassem sãos e salvos, todos ficariam intrigados com a possibilidade de sair pelo menos uma vez na vida. 

Eles não podem nem deixar a projeção no refeitório ficar embaçada, pois isso deixaria as pessoas loucas e tiraria a vontade de viver outro dia. Talvez os sensores da câmera fora do Silo não tivessem um sistema de limpeza automático, e é por isso que eles precisavam periodicamente do ritual da “Limpeza”. Para que as pessoas não percam seu único raio de esperança.

Já não vimos isso em algum lugar? Não seria essa a própria natureza da indústria de consumo e entretenimento? Através das telas, nos mostrar imagens hiper-reais de mundos felizes de consumo e diversão. Para nos manter na linha, motivados no cotidiano de trabalho e afazeres, esperançosos de que o amanhã será melhor.

 

Ficha Técnica

Título: Silo (série)

Criador: Graham Yost

Roteiro: Hugh Howey, Graham Yost, Jeffrey Wang

Elenco:  Rebecca Ferguson, Tim Robbins, Common, Ferdinand Kingsley, David Oyelowo

Produção: AMC Studios

Distribuição: Apple TV+

Ano: 2023-

País: EUA

   

 

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Posted in: Cinema Americano, ficção científica, hipo-utopia, séries, Sociedade de Consumo