Num país onde a elaboração de um roteiro para o cinema e o planejamento do marketing político de um candidato são a mesma coisa, filmes como “Bob Roberts” (1992) não se limitam a fazer uma mera sátira da política. Vai mais além, misturando fatos reais da propaganda política com a ficção. Produzindo o paradoxal efeito “mockumentary” – acreditar na realidade por meio de um filme ficcional que simula ser um documentário sobre um candidato de extrema-direita ao Senado dos EUA. Um filme obrigatório, principalmente após o controvertido processo eleitoral brasileiro que levou outro candidato da extrema-direita ao poder, dessa vez à presidência. Após 26 anos da exibição de “Bob Roberts”, o filme continua assustadoramente atual, com surpreendentes semelhanças com as eleições brasileiras: manipular os fios da “política das emoções” (racismo, sexismo etc.) para esconder que por trás não existe nada.
Filmes norte-americanos sobre sátiras políticas devem ser levados muito a sério. Não tanto pelo poder corrosivo da narrativa satírica. Mas porque vem de um país no qual os roteiristas de cinema e os roteiristas do marketing político estão muito próximos. Razão pela qual, filmes como Doutor Fantástico (Dr. Strangelove), O Quarto Poder (Mad City) ou Mera Coincidência (Wag the Dog)têm muito mais do que elementos satíricos: há muitos elementos reais e históricos.
O braço do Dr. Fantástico que tem vida própria e insiste em fazer a saudação nazista em plena Sala de Guerra (alusão à Operação Paperclip pós Segunda Guerra na qual o serviço de inteligência dos EUA resgataram secretamente 104 cientistas nazistas para servirem aos projetos estratégicos norte-americanos), a guerra cenográfica produzida por Hollywood criando vídeos para serem “vazados” em links de satélites para os telejornais exibirem como “furos” de reportagem em Mera Coincidência ou a sincronia entre a grade televisiva e o controle dos acontecimentos num assalto a um museu com reféns no filme O Quarto Poder.
Já não estamos mais no campo da mera sátira. Já é a própria realidade misturando-se com a ficção produzindo o paradoxal efeito mockumentary – acreditar na realidade por meio da ficção.
Bob Roberts (1992), escrito e dirigido pelo ator Tim Robins, é outro exemplo de um filme definido pela crítica como “sátira política”. Mesmo 26 anos depois, essa produção mantém atualidade, principalmente no momento atual de rescaldo do processo eleitoral brasileiro que conduziu um candidato de extrema-direita à presidência. Bob Roberts apresenta elementos que são recorrentes nos processos políticos polarizados, como foi o caso brasileiro.
Lembre-se que nos EUA, a construção de um roteiro de cinema e o planejamento do marketing político são praticamente a mesma coisa. Por isso, Bob Roberts apresenta elementos recorrentes: a construção do mito a partir de campos simbólicos distantes da política, a política das emoções e polarizações, o atentado contra a vida do mito em momento estratégico da campanha, o plano de governo vazio que se esconde por trás da manipulação do ódio, a elaboração do candidato antissistema etc.
E para aumentar esse efeito mockumentary, Bob Roberts foi concebido como um falso documentário, metalinguístico – em vários momentos os personagens dialogam com o cinegrafista que muitas vezes consente balançando a câmera.
O Filme
Bob Roberts (Tim Robbbins) é um homem alto, rosto aberto, sempre com um sorriso infeccioso que, em segundos, pode se transformar em um retrato de ódio. De certos ângulos ele lembra o candidato populista de duas caras Cidadão Kane do filme clássico de 1941.
Roberts é um candidato ao Senado de extrema-direita do estado da Pensilvânia. Ele é um milionário cantor de folk e country com letras de platitudes do nível “Essa terra é minha” ou “Os tempos estão mudando”. Músicas com letras que falam de trabalho duro e mérito, incentiva o ódio contra os “preguiçosos” que vivem às custas do governo, os “hippies sujos comunistas” e acusa professores que dizem aos alunos que “não é necessário rezar” ou que “os árabes são nossos amigos”.
Seu adversário é um idoso senador Democrata chamado Brickley Paiste (Gore Vidal) cuja mensagem parece ser cada vez mais irrelevante para os eleitores: o público parece não querer mais ouvir sobre o que é certo ou errado, ético ou moral. Bob Roberts estimula a acreditar que toda ambição é boa. A questão é: “o que tem pra mim?”.
Embora Roberts fale das suas origens humildes na classe trabalhadora, ele incita a divisão – raça contra raça, trabalhador contra trabalhador, incitando o ódio como motriz da política e da disputa meritocrática no mercado. Sempre com um sorriso largo e o violão debaixo do braço.
Apesar de a crítica musical acusar suas letras de “criptofascista”, além de um músico medíocre”, o público parece adorá-lo – seus vídeo-clips lembram os de Bob Dylan, enquanto os fãs das músicas de protesto acusam Roberts de manchar toda a herança da música folk dos anos 1960.
O lado sinistro de Bob Roberts
Filmado como um documentário, as câmeras nos levam a lugares onde não deveríamos estar, espionamos conversas que não deveríamos ouvir. Pedem em muitos momentos que as câmeras sejam desligadas, mas elas permanecem enquadrando.
Aos poucos começamos a entender as implicações sinistras da campanha de Bob Roberts. O ônibus da campanha que atravessa a Pensilvânia não é apenas o quartel general de marketing político. É um centro financeiro: corretores estão comprando e vendendo ações, diante das telas de computadores, dia e noite. Seu dinheiro sujo é lavado através de uma ONG chamada “Pomba Enferma” de assistência social – é suspeito de ter tomado dinheiro público para construir casas para desabrigados, mas na verdade usou o dinheiro para comprar aviões de carga para carregar drogas da América do Sul.
De 1992 a 2018: a “Realpolitik”
Estamos em 1992, numa era pré-Internet e redes sociais. Ainda Bob Roberts conta com a tradicional mídia de massas para sua campanha: telejornais, vídeos de propaganda política no horário nobre e os vídeo-clips folk com letras políticas de direita executadas na MTV.
Mas acompanhamos todos os elementos da chamada “realpolitik”, presentes tanto lá no início dos anos 1990, como agora no século XXI da hipertecnologia. Da qual, como comprovou a vitória de Bolsonaro, a direita conseguiu extrair o máximo de eficiência: velhos conteúdos através de novos instrumentos.
Por exemplo, acompanhamos o candidato Bob Roberts dando seus pitacos nas letras das suas músicas folks e country. Costuma fazer shows relâmpagos em restaurantes e qualquer lugar público. Com isso, constrói sua imagem de mito em campos não-políticos: vídeo-clips da MTV e shows musicais. Assim como Bolsonaro produziu suas “mitagens” no início em programas televisivos como CQC e Pânico na TV para depois se converter em candidato-avatar nas redes sociais.
Bob Roberts é um gênio do que o filme chama de “política das emoções”: “é um gênio na hora de puxar os fios do racismo e do sexismo disso daquilo. A política das emoções. Nisso é muito bom. O que se esconde por detrás? Não vejo nada”, comenta um analista político a certa altura do filme”. Lá como cá, Roberts, assim como Bolsonaro, cria polarização através da pauta das causas identitárias (gênero, raça, feminismo etc.) para se desviar de qualquer debate programático ou propositivo: o que o senador fará em Washington?
Tudo que Roberts fala é atacar “hippies nojentos”, drogas e escolas que impedem as crianças de rezar. Algo muito parecido com o discurso extremista como farsa de Bolsonaro: enquanto polemiza em questões religiosas, culturais e de costumes, escondeu da opinião pública o neoliberalismo selvagem que espera para tomar Brasília de assalto.
Com seus vídeo-clips ao estilo Bob Dylan e as acusações sobre corrupção e imoralidade dos políticos e do seu concorrente Brickley Paiste (acusam-no de pedófilo por supostamente sair com garotas adolescentes por meio de fotos adulteradas – qualquer semelhança com a acusação de pedofilia e kit gay contra Haddad não é mera coincidência), Bob Roberts cria a imagem de antissistema – é um cantor que enriqueceu na música e, por isso, é considerado um não-político. Logo, alguém com ficha limpa.
Mas a semelhança mais assustadora é o atentado sofrido por Bob Roberts a certa altura do filme: leva tiros na saída de um estúdio de TV deixando-o paraplégico. O atentado ocorre num momento em que as pesquisas apontam um empate técnico. O atentado transforme automaticamente Bob Roberts no novo herói da direita, um autêntico patriota vítima dos tiros supostamente disparados pelo ativista negro Bugs Raplin (Giancarlo Esposito). Cujas informações são manipuladas pelo staff de Roberts, atribuindo um nome muçulmano ao suposto atirador. Para atiçar ainda mais o ódio, num momento em que os EUA estão em plena Guerra do Golfo.
Assim como o atentado a faca sofrido por Bolsonaro teve o timing perfeito para retirá-lo dos debates televisivos (que lhe tiravam votos) e humaniza-lo como um herói antissistema. Um atentado tão oportuno que nos faz pensar em teorias conspiratórias, assim como sugere o plano de câmera fechado no pé de Bob Roberts quando dedilha seu violão e canta sentado em uma cadeira de rodas – seu pé levemente se movimenta, acompanhando o compasso da música. Será que Bob Roberts criou a sua “bala de prata” na reta final que o catapultou para a vitória?
Por tudo isso, Bob Roberts é um filme obrigatório depois de tudo que se sucedeu nas eleições brasileiras desse ano. Mostra como a direita sempre foi mais atualizada com o campo da comunicação, ao contrário da esquerda. Enquanto no filme ativistas de esquerda e um repórter investigativo tentam denunciar o modus operandi corrupto de Bob Roberts (denúncias que a grande mídia dá pouco espaço), o candidato manipula com maestria a “política das emoções”.
Ficha Técnica
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Título: Bob Roberts
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Diretor: Tim Robins
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Roteiro: Tim Robins
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Elenco: Tim Robins, Giancarlo Esposito, Ray Wise, Gore Vidal, Alan Rickman
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Produção: Miramax, Live Entertainment
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Distribuição: Versátil Home Vídeo (DVD)
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Ano: 1992
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País: EUA
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