Esqueça os folclóricos tipos urbanos produzidos pela recente onda do
neoconservadorismo político e cultural como, por exemplo, os coxinhas, coxinhas
2.0, simples descolados etc. Esses tipos ainda são de um “Brasil Renitente”. Com o baixo astral generalizado posto em prática pela grande mídia, a pesada
atmosfera psíquica nacional revela agora novos espécimes, dessa vez de um “Brasil
Profundo”: retrofascistas e protofascistas, tipos-ideais mais perigosos e
beligerantes: pequenos escroques, acadêmicos e intelectuais obscuros, músicos
que fizeram sucesso no passado e que foram esquecidos, ex-anônimos que
confundem militância profissional com fundamentalismo religioso e oportunistas
de toda sorte. Todos, ao mesmo tempo, parecem ter sido resgatados do ostracismo
e infernos pessoais graças à incansável atividade da grande mídia em produzir
novos personagens que sustentem suas pautas.
Depois desses tempos de neoconservadorismo político e cultural nos
brindar com uma rica fauna urbana composta por coxinhas, coxinhas 2.0, novos tradicionalistas,
simples descolados, “rinocerontes” etc. (sobre esses tipos urbanos clique aqui, aqui e aqui), a pesada atmosfera psíquica que
baixou no País, decorrente da polarização política e da intensa atividade do
contínuo midiático para gerar baixo astral, produziu o habitat perfeito para
novos e exóticos espécimes.
Eles vieram do Brasil Profundo! Vamos listar alguns desses exemplares:
Espécime 1 – Nome: Ju Isen. Modelo anônima, famosa por tirar a roupa em uma das manifestações
Anti-Dilma na Avenida Paulista em São Paulo, tentou repetir a dose como
destaque no desfile da Unidos do Peruche e foi expulsa do Sambódromo. Outras
modelos desconhecidas tentaram seguir o exemplo em outro protesto da mesma avenida
de São Paulo, seminuas e segurando cartazes anti-PT ostentando enormes óculos
de marca. Uma se excedeu ao ficar totalmente nua e foi levada presa pela
Polícia Militar.
Espécime 2 – Nome: Junior de França. Ajuda a organizar o acampamento de manifestantes pró-impeachment em
frente ao prédio da Fiesp em São Paulo. Às vezes se passa por jornalista,
outras vezes por ator, mas na verdade recruta homens e mulheres para participar
de feiras. É acusado de estelionato e de tentar fazer sexo com modelos, segundo
matérias na TV Record e no Portal R7 – clique aqui.
Espécime 3 – Nome: Douglas Kirchner. Transformado em personagem nacional atuando em parceria com a revista Época no vazamento de denúncias contra
Lula, o procurador do Ministério Público Federal Douglas Kirchner tem uma
controversa militância religiosa e uma conturbada vida amorosa. Fiel de uma
seita denunciada por explorar crianças e adolescentes, foi acusado de agredir
fisicamente a esposa e mantê-la em cárcere privado no interior de uma das
igrejas da seita. Ministra o seminário “Casamento Gay e Marxismo Cultural” onde
ataca a igualdade de sexos e defende que o feminismo é um “ideal agnóstico das
esquerdas” – sobre a história desse espécime clique aqui.
Espécime 4 – Nome: Janaina Paschoal. Assustando até os apoiadores do impeachment da
presidenta Dilma, numa performance resultante do cruzamento de Death Metal com o desempenho da atriz Linda Blair no filme O Exorcista, a professora de Direito Janaina
Paschoal fez um discurso em ato de apoio ao impeachment na Faculdade de Direito
do Largo do São Francisco em São Paulo. Transtornada e transfigurada fez
alusões ao poder de uma “cobra” que mantém o país no “cativeiro de almas e
mentes”. “Acabou a República da Cobra!”, gritava ensandecida em um discurso que
lembrava um bispo evangélico fora do controle.
“De onde vem essa gente?”
Como perguntou certa vez o Homem-Aranha, cansado depois de enfrentar o Monstro
de Areia e o Venon: “de onde vem toda essa gente?”.
Pequenos escroques, acadêmicos e intelectuais obscuros, músicos que
fizeram sucesso no passado e que foram esquecidos, ex-anônimos que confundem
militância profissional com fundamentalismo religioso e oportunistas de toda
sorte.
Todos de repente parecem ter sido resgatados, todos ao mesmo tempo, de
seus ostracismos, infernos e limbos pessoais para serem reciclados, ressignificados
pela grande mídia e se tornarem a esperança de um futuro melhor – ou uma “ponte
para o futuro”, bordão que subliminarmente vem repetindo a todo momento, em
alusão ao documento do PMDB divulgado como proposta para um futuro governo
pós-impeachment.
Em toda a crise política, talvez a melhor contribuição dada pela grande
mídia foi a de trazer à tona esses personagens do Brasil Profundo, pescados nas
águas turvas de uma conturbada psicologia de massas.
Uma verdadeira contribuição no campo da Etnografia e da Antropologia
Urbana: ressuscitar espécimes que estavam em estado latente, hibernos, apenas
esperando a atmosfera ideal para que voltassem a respirar em plenos pulmões.
Espécimes redivivos que agora podemos finalmente ter a oportunidade de
estuda-los in loco.
Brasil Renitente e Brasil Profundo
Por “Brasil Profundo” não estamos nos referindo a uma referência
geográfica como um “interior” ou “periferia”. Mas como o ponto mais profundo de
um inconsciente coletivo ou “sombra”, no sentido dado pela psicanálise
junguiana.
Muito mais profundo do que o imaginário da “Casa Grande e Senzala” de um
país ainda marcado pelos signos de distinção de classes (elevador social,
uniformes de empregadas domésticas etc.), marcas de uma antiga ordem escravocrata. Onde até mesmo um publicitário como Nizan Guanaes (Publicidade, símbolo de uma suposta modernidade brasileira) é capaz de revelar esses velhos estereótipos em sua coluna na Folha, reclamando sobre o fim das empregadas domésticas: “Preciso de uma Dona Flor, mas
que não precisa ter o corpo da Sônia Braga – precisa é cozinhar”, explicou. –
Folha, 16/11/2011.
Esse não é ainda o Brasil Profundo, é o Brasil Renitente.
Ego embrutecido
“Quem é duro consigo mesmo, também é com os demais”, dizia o sociólogo
Theodor Adorno na sua célebre fórmula do psiquismo do nazi-fascismo. Certamente
esta fórmula poderia ser aplicada nesse estudo dos espécimes do Brasil
Profundo.
Em comum, todos eles vieram do esquecimento e obscurantismo. São pessoas
apegadas aos valores da meritocracia e competição, o que mais torna essa
condição de anonimato em profunda frustração de um ideal de ego também atormentado
por um profundo ressentimento.
Ju Isen busca a oportunidade que lhe proporcione, pelo menos, a condição
de sub-celebridade; Kirchner, o típico concurseiro de editais públicos,
espécime que massacra o próprio psiquismo em busca da aprovação – após a
vitória, com o ego tão embrutecido e encouraçado, torna-se frio, indiferente em
diversos graus, como, por exemplo, no conservadorismo político e de costumes.
Janaina Paschoal, com seu ego igualmente embrutecido em um meio tão competitivo
e masculinizado como o campo do Direito; e Júnior de França, oportunista de
ocasião no mundo das sub-celebridades que vivem a fama como farsa.
Ressuscitados do seu estado de torpor pela eletricidade das mídias,
descobriram que tinham nas mãos uma hiper-tecnologia: redes sociais e dispositivos
móveis para poderem amplificar em tempo real seu ódio e ressentimento.
Retrofascismo
Como alertava o sociólogo canadense Arthur Kroker no final do século
passado, o futuro seria do “retrofascismo”: uma situação ambivalente de
hiper-tecnologia e primitivismo. Kroker dizia que “o fascismo é a revolta dos
derrotados”. A vida dirigida pelo ódio de si mesmo (o ressentimento pelo
ostracismo e obscurantismo) vingando-se através da destruição do outro - leia KROKER, Arthur. Data Trash, New York: Saint Martin's Press, 1994.
Como nos informa o prefixo “retro”, esses espécimes protofascistas são
nostálgicos de um passado de pureza onde supostamente haveria lei e ordem. Nos
nazifascistas do trágico passado, a pureza da raça em um Idade do Ouro; nos
retrofascistas, a ordem militar que nos mantinha seguros de feministas, gays e
comunistas - sobre o conceito de retrofascismo clique aqui.
Brasil Profundo e Neodesenvolvimentismo
Ao contrário do Brasil Renitente, o Brasil Profundo foi parido nessa
última década. A inclusão de milhões de brasileiros à sociedade através do
consumo (que o economicismo e neodesenvolvimentismo faziam o PT acreditar que
por si só geraria consciência política e de cidadania) na verdade produziu um
perverso efeito inverso: despolitização por meio da percepção de que qualquer
direito seria um oportunista substituto do mérito e do trabalho.
Estado policial e militarismo é a atmosfera ideal para esses espécimes
protofascistas – a oportunidade de destruir o outro mandando à favas todas as
formas de direitos e garantias sociais. Destruir todos esses preguiçosos
corruptos que vivem à sombra do Estado com bolsas famílias e créditos
educativos.
A ironia é que esses espécimes são perdedores na corrida meritocrática:
concurseiros que se mataram em concursos públicos para conseguirem estabilidade
dentro de um Estado tão odiado, pequenos escroques, oportunistas intelectuais e
acadêmicos condenados à própria mediocridade, além de roqueiros esquecidos pelo
mercado.
Ressuscitados por uma grande mídia ávida por novos personagens que deem
sustentação às suas pautas, sentem na nova atmosfera a chance de vingar no
outro a dureza com que tratam a si mesmos.
Fora de suas tocas onde se mantiveram hibernos, hoje esperam uma
tradução política para, mais uma vez na História, ocuparem o Estado.
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