Era mais uma manhã de um domingo qualquer. Dois amigos conversam em um restaurante. De repente o chão estremece e ouvem-se urros do lado de fora. Um rinoceronte desce a rua em disparada destruindo portas e vitrines dos bares. Mais tarde, outros rinocerontes aparecem e um deles é reconhecido como um ex-colega de trabalho. Um bizarro contágio de “rinocerontite” se alastra, transformando humanos em ferozes paquidermes. Mas estranhamente as pessoas aceitam tudo como um “fato da vida”, e até começam a achar belo esse retorno da humanidade à “pureza” da natureza. Menos Stanley (Gene Wilder) que lutará para salvar das manadas enfurecidas o que restou da racionalidade humana. Esse é o filme “Rinocerontes” (Rhinoceros, 1974), adaptação da peça do Teatro do Absurdo do romeno Eugène Ionesco. Uma parábola sobre a ascensão do fascismo na pátria do dramaturgo. Mas ao revisitarmos esse filme de 1974, notamos que a “rinocerontite” continua ainda bem atual.
“É bom ficarem longe de mim! Ou eu passo por cima! Eu tenho um objetivo na vida. Então, vou direto a ele...”, alerta John. Enquanto seu amigo, Stanley, perplexo, vê o seu amigo transformar-se em rinoceronte diante dos seus olhos. A princípio, achava que era apenas uma crise de identidade do seu amigo. Para logo depois perceber que era algo mais grave: “rinocerontite”. Uma estranha epidemia que faz o homem retornar à natureza selvagem, reunindo-se em manadas, correndo, urrando, atropelando e destruindo tudo o que estiver pela frente.
Essa é a sequência mais emblemática do filme Rinocerontes (Rhinoceros, 1974), uma adaptação ao cinema de Tom O’Horgan da mais famosa peça do Teatro do Absurdo de Eugène Ionesco (1909-1994) – “O Rinoceronte”, de 1959. Uma verdadeira parábola sobre conformidade e contágio – como é possível pessoas supostamente racionais, morais e orientadas pelo bom senso, serem repentinamente contaminadas por ondas de massas que resultaram, por exemplo, em Hitler como a última palavra em totalitarismo.
O trauma humano, cultural, filosófico e existencial da Segunda Guerra Mundial e dos estados policiais (nazismo, fascismo, stalinismo) resultou na literatura em reflexões sobre parabólicas sobre os sistemas totalitários como “1984” ou “Admirável Mundo Novo”.
Porém, é no Teatro do Absurdo que encontramos as reflexões mais instigantes. Se George Orwell e Aldous Huxley colocavam seus protagonistas em sistemas totalitários já formados e estáveis, em obras do Absurdo como em Beckett e Ionesco encontramos a gênese existencial (“Esperando Godot” – clique aqui) e psíquica (“O Rinoceronte”) de todo totalitarismo. Parece que Beckett e Ionesco estão sempre questionando: como foi possível acontecer? O que há de tão mal no espírito humano a ponto de ter banalizado a destruição, ódio e intolerância.
“Concepção fascista de vida”
Por isso, revisitar esse filme de 1974 é importante. Principalmente no contexto atual brasileiro em que estamos à beira do surgimento de um Estado policial – qualquer crítica ou força que atravesse o seu caminho poderá ser qualificada como “terrorismo”. Tudo com o apoio de massas que protestavam genericamente preferir o “verde-amarelo” ao “vermelho”.
Na época, a adaptação ao cinema de Ionesco foi muito criticada. Alguns acusavam que, transposto para a tela, a peça tornou-se uma mera comédia de pastelão – a lógica absurda do non-sense de Ionesco teria sido transfigurada em simples gags de comédia. Ou de que o resultado foi um grosseiro “overacting” no qual parecia que o diretor Tom O’Horgan estava fazendo um filme para um público composto inteiramente por rinocerontes, e não por pessoas.
Porém, apesar de todas as concessões hollywoodianas (o máximo da estética do absurdo que a indústria do cinema consegue apreender está na gag da cara que afunda em uma torta) Rinocerontes consegue manter o principal tema de Ionesco: o contágio – quando o envenenamento psíquico se normaliza aos olhos de todos. Torna-se sedutor, belo e até motivacional. Tornando as pessoas mais assertivas e supostamente autoconfiantes, pela falta de autocrítica. Muito próximo daquilo que o pensador Theodor Adorno chamava de “concepção fascista de vida”.
O Filme
“As pessoas que se apegam a individualidade, sempre terminal mal”, diz Stanley (Gene Wilder) na última cena do filme. Essa é a tônica de Rinocerontes: quando o instinto gregário de manada faz o humano regredir para a natureza, abandonando a individualidade, cessam todos os juízos éticos ou morais. E a humanidade torna-se um mero “sentimentalismo ridículo”, como John (Zero Mostel) brada, na sequência da transformação em paquiderme.
Stanley é um sujeito tímido, que vive desarrumado, descabelado, sempre ou bêbado ou de ressaca. Mas sempre precisando de mais um drink. Mas também é sensível e inteligente, mas que diante das exigências da vida é sempre inseguro.
Enquanto isso, John é o seu vizinho: falastrão, autoconfiante, supostamente culto e elegante – carrega sempre uma gravata a mais para qualquer eventualidade e defende sempre elevados padrões de como os seres humanos devem se comportar.
John e Stanley se encontram num restaurante em uma manhã qualquer de domingo, até que ouvem alguma coisa correndo pela rua e fazendo tremer o chão: um rinoceronte desce a rua urrando e quebrando portas e vitrines das lojas e bares.
Mas o dia seguinte é ainda mais estranho. Enquanto Stanley está no trabalho, seu escritório é atacado por outro selvagem rinoceronte. Todos conseguem identificar no paquiderme o seu colega de trabalho – parece que os humanos estão se transformando em rinocerontes.
Porém, Stanley percebe algo ainda mais estranho: enquanto para ele a situação é angustiante (pessoas estão perdendo a individualidade para se integrarem em manadas selvagens), surpreso vê todos ao redor complacentes, aceitado tudo como mais um fato da vida.
Stanley vê no seu vizinho e amigo John a pièce de resistance que resistirá a onda de loucura. Afinal, ele é “culto” (gaba-se de ler “News World Report”, “Observador Nacional” e “Popular Mecanics”) e sofisticado. Porém, Stanley percebe que a pele do seu vizinho está tornando-se cinza – John começa a urrar, bater o pé no chão, destruir o apartamento e quase pisotear seu amigo.
Para depois sermos informados em diversas linhas de diálogo que o mal se espalha rapidamente: o âncora de um telejornal que virou um paquiderme ao vivo em plena previsão do tempo, um primo em Nova Jersey que também virou um rinoceronte. E ainda se estima que a “rinocerontite” logo se espalhará para o México e Canadá.
A peça original era uma parábola para a ascensão do fascismo na pátria do romeno Ionesco. Mas em Rinocerontes toda a ação de passa nos EUA, com todas as referências contextuais da época – inclusive uma foto do presidente republicano Nixon, saudado por John enquanto se transforma em rinoceronte.
A vida é uma selva
Além do tema do contágio, o filme concentra-se na naturalização dos eventos bizarros: aos olhos de todos tudo torna-se banal, no começo. Para depois, tornar-se belo (os urros dos animais parecem música aos ouvidos) e uma espécie de elogio ao retorno à pureza da natureza – ecos do discurso da pureza racial nazi?
A metáfora do rinoceronte é perfeita para a “concepção fascista de vida” cunhada por Adorno. Nele está um complexo de significados: poder, rudeza, destruição, agressividade e submissão acrítica a uma manada. Traços descritos na famosa pesquisa empírica coordenada por Adorno nos anos 1940 nos EUA: os estudos sobre a “Personalidade Autoritária” – clique aqui.
Toda a concepção fascista de vida parte da premissa de que a vida é uma selva, exigindo do psiquismo uma couraça psíquica para tornar o ego mais assertivo, direto, focado em objetivos. Essa visão rude da existência requer proteção: a manada, a submissão ao líder, e assim por diante.
Daí a banalização do mal aos olhos de todos no filme: homens virando rinocerontes são “fatos da vida”. Afinal, a vida é dura, rude, uma selva na qual valores como o humanismo ou individualidade são fantasias nostálgicas.
Ionesco concentra-se na gênese psíquica do fascismo: o instinto gregário, expressado no ser humano pelo medo da solidão, muito pior do que a morte, segundo Freud. Claro que essas manadas descontroladas de rinocerontes que destrói tudo que se ponha na frente precisa ser direcionada. Essa energia instintiva necessita ser canalizada por algum tipo de agenciamento para se tornar socialmente produtiva. E a expressão política dessa energia psíquica será o totalitarismo e o Estado policial.
Ficha Técnica
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Título: Rinocerontes
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Diretor: Tom O’Horgan
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Roteiro: Julian Barry, Eugène Ionesco (peça teatral)
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Elenco: Zero Mostel, Gene Wilder, Karen Black, Joe Silver
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Produção: The Ely Landau Organization Inc., The American Film Theatre
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Distribuição: Kino Video
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Ano: 1974
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País: EUA
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