segunda-feira, novembro 19, 2018
Wilson Roberto Vieira Ferreira
Uma mulher desesperada em recuperar a guarda da sua filha. Uma mãe que foi vítima de uma rede europeia de prostituição de mulheres e crianças que realiza sequestros no Leste Europeu para o mercado sexual da elite intelectual e corporativa inglesa. Para ter sua filha de volta, deve relatar onde esteve nos últimos dois anos. Ela descreve o cabaré-bordel chamado “Bibliotheque Pascal”, em Liverpool, repleto de estantes com livros e quartos que recriam em tons futuristas e sadomasoquistas cenas literárias das obras de Shakespeare, Nabokov, Wilde, Shaw entre outros. O filme húngaro “Bibliothèque Pascal” (2010) dança nas bordas entre fantasia e realidade, civilização e barbárie. É impossível não lembrar do pensador alemão Walter Benjamin, principalmente nas sequências do cabaré-prostíbulo. Lá a barbárie não parece ser o avesso da civilização, mas um pressuposto dela. O impulso bárbaro parece não estar fora, mas no interior do movimento de criação e transmissão cultural.
“Nunca houve um monumento da cultura que também não fosse um monumento da barbárie”, escreveu Walter Benjamin em sua Tese 7 de “Sobre o Conceito de História”. Essa frase está numa passagem rica de sentidos e interpretações, mas basicamente Benjamin fazia uma reflexão sobre como a barbárie está situada no interior da própria cultura e civilização. Para além da dicotomia tradicional que coloca uma como oposta a outra.
Se pensarmos que a Grécia Antiga, berço da civilização Ocidental (Democracia, Filosofia, Olimpíadas, Ética, cidadania etc.), foi também uma sociedade assentada na escravidão e que toda a sabedoria da filosofia Oriental surgiu de sociedades estruturadas na violência, segregação e dominação, então temos que concordar com esse tese de Benjamin – por toda a História, civilização e barbárie sempre foram os dois lados de uma mesma moeda.
Parece que a premissa do filme Bibliothèque Pascaldo diretor húngaro Szabolcs Hadju está muito próxima desse insightdo pensador alemão. “Onde há fumaça há fogo. Todas as histórias ficcionais, apesar de fantásticas, têm uma base na realidade”, afirma o diretor para justificar a narrativa sobre uma mãe capturada por uma rede de prostituição como fosse um sombrio conto de fadas.
Bibliothèque Pascaltransita sempre entre os limites entre realidade e fantasia, entre o intelectual e a ignorância, entre a cultura e o instintivo. Mas também vai mais além: como uma coisa se transfigura rapidamente na outra, fazendo o tempo inteiro o espectador recordar que o que assiste não meramente um conto de fadas – por trás da teatralização há uma realidade crua, como se a civilização somente pudesse produzir os produtos mais brilhantes da cultura assentada na violência e barbárie.
Como se a realidade fosse tão demasiado horrível que fosse necessário torna-la teatral, literária para dar um toque de respeitabilidade à perversão sexual e violência.
Como no bordel exclusivo que dá nome ao filme, misturando literatura, prostituição e perversão.
Por isso, em muitos aspectos, o filme lembrará ao leitor As Aventuras do Barão Munchausen, de Terry Gilliam – as mentiras poéticas do Barão como forma de tornar mais suportável a violência da guerra de uma cidade contra os turcos.
O Filme
Acompanhamos nas primeiras cenas a húngara-romena Mona (Orsolya Török-Illyés, esposa do diretor) em uma entrevista ao Conselho Tutelar, uma mãe desesperada tentando recuperar a custódia de sua pequena filha Viorica (Lujza Haidu), atualmente sob os cuidados do Estado depois que foi descoberto os maus tratos da sua protetora, a Tia Nena (Oana Pellea).
Mona irá relatar ao oficial do Conselho o porquê ter deixado a filha sob os cuidados da tia nos últimos dois anos que esteve fora do país. Mas a história que ela contará será fantástica, muito próxima a um conto de fadas sombrio ou as velhas aventuras do Barão de Munchausen.
Porém, onde há fumaça há fogo: o núcleo real da história é cruel e doloroso. Mona era uma produtora de shows de artistas de rua, às voltas com prefeitos mafiosos do Leste Europeu. Abandona um show malsucedido para fugir em direção ao litoral, onde conhecerá o pai da sua futura filha: um fugitivo da polícia homofóbico acusado de assassinar um homossexual, porém sedutor e poético, sempre acreditando em algum destino divino manifesto na sua vida.
Vivendo com sua filha, as oportunidades de sobrevivência não estão nada boas, acabando por cair nas garras do seu pai (Rzvan Hadju), um desonesto cafetão: sob promessas de ter boas oportunidades na Alemanha, acaba caindo numa rede de tráfico de mulheres. Sendo despachada, junto com outras mulheres e também crianças, para o mercado de prostituição da Inglaterra.
Até aqui a narrativa é em tom felliniano e burlesco – a Tina Nena, por exemplo, uma taróloga, vidente e cartomante charlatã, é um personagem simultaneamente engraçado e amargo.
As coisas tendem para o sombrio com tons futuristas quando conhecemos a “Bibliotheca Pascal” – um bordel exclusivo de Liverpool de propriedade de um dândi chamado Pascal (Shamgar Amram) e frequentado pela elite intelectual, empresarial e política da Inglaterra. Mona é forçada a trabalhar lá, um complexo secreto formado por uma grande biblioteca central no qual ocorrem shows com artistas circenses, decorado com grandes estantes com livros e mesas sobre as quais vemos casais em atos sexuais.
Em torno, diversos quartos temáticos: cada um foi projetado para recriar obras clássicas da literatura, enquanto as prostitutas se entregam aos fetiches dos clientes em meios às linhas de diálogo literárias: Shakespeare, Nabokov, Oscar Wilde, Bernard Shaw. Obras como Lolita, Desdêmona, Joana D’Arc, Pinóquio etc. são pretextos ou temas para realizar fantasias sadomasoquistas que podem chegar a ser fatais.
Algumas recriações chegam ao gênero futurista ou sci-fi.
A Civilização, a Barbárie e o Onírico
Ao melhor estilo Terry Gilliam em Barão de Münchausen, fantasias épicas salvarão Mona de um trágico destino, mas tudo será tão inverossímil para o oficial do Conselho Tutelar que apenas dificultará o retorna da guarda da filha. Tudo foi real ou Mona é apenas uma ótima contadora de histórias?
O filme dança nas bordas entre fantasia e realidade, civilização e barbárie. É impossível não lembrar de Walter Benjamin, principalmente nas sequências do cabaré-prostíbulo Bibliotheque Pascal. Lá a barbárie não parece ser o avesso da civilização, mas um pressuposto dela. O impulso bárbaro parece não estar fora, mas no interior do movimento de criação e transmissão cultural – causando horror em Benjamin que via a História da Cultura como o cortejo triunfal dos vencedores pisoteando os corpos dos vencidos.
Se isso for verdade, toda obra cultural é o preço da infâmia da civilização. Como o companheiro de Benjamin, Adorno, dizia que “toda ideologia tem o seu momento de verdade”. É claro que em Shakespeare, Wilde ou Shaw há uma crítica e desejo por transcendência numa ordem injusta. Porém, como mostra Bibliotèque Pascal, tudo se transforma em má-consciência quando transmitida e consumida pelos mesmos algozes da barbárie.
Como o filme propõe ao final, somente o onírico e o anárquico conseguem ficar externos a essa dialética infernal entre civilização e barbárie.
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Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, organizado pelo Prof. Dr. Ciro Marcondes Filho e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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