Para além do
horror diante da barbárie do linchamento de uma dona de casa por vizinhos e até
crianças em Guarujá/SP, o mais perturbador nesse episódio é a ambígua
declaração do governador do Estado de São Paulo Geraldo Alckmin, sugerindo que
o ato bárbaro era injustificável porque, afinal, “tudo não passou de boato”- então, se os boatos fossem verdadeiros o linchamento seria justificado? Essa surpreendente declaração para um governador confirmaria as sinistras
previsões de Arthur Kroker e Michael Weinstein nos anos 1990: uma integração
entre Estado, pan-capitalismo e violência sacrificial. O impulso primitivo
amplificado pelas redes digitais seria a fase “interativa” dos rituais de
sacrifício cotidianamente praticados pelos linchamentos midiáticos de
reputações ou dos refugos sociais (desempregados, velhos e pobres) oferecidos
como objeto sacrificial e bodes expiatórios em programas diários de TV. É o
retrofascismo à espera de uma tradução política para, mais uma vez na História,
ocupar o Estado.
“O homem preferirá ainda querer o nada ao nada querer” (Nietzsche)
O trágico episódio
do linchamento da dona de casa Fabiane de Jesus por vizinhos, amigos e até crianças
na cidade do Guarujá/SP provocado por um boato amplificado pela rede social
Facebook poderia ter passado despercebido como mais um caso num cotidiano de
chacinas e violências em bairros pobres e periféricos se não fosse por duas
características e um sintoma importante:
(a) Uma explosão
primitiva de violência motivada por um boato através de uma rede social produto
da alta tecnologia de comunicação digital desse início de século. Tecnologia
digital e primitivismo coexistindo como fossem dois lados de uma mesma moeda;
(b) O boato a
partir de um suposto retrato falado publicado em página do Facebook dava conta
de que Fabiane seria sequestradora de crianças para rituais de magia negra. Se
na sua origem primitiva o linchamento é um impulso sacrificial para esconjurar
o mal em uma comunidade, o episódio tem um quê de estranha ironia: um
linchamento (ritual de sacrifício) para punir uma pessoa que supostamente sequestrava
crianças para rituais que também visam esconjurar o mal ou/e compactuar como
ele;
Declaração do governador Alckmin: sintoma? |
(c) E finalmente, o sintoma que partiu do Estado na figura do governador
do Estado de São Paulo Geraldo Alckmin que fez a seguinte declaração sobre a
tragédia: “É inadmissível um ato de barbaridade como esse, tirando a
vida de uma pessoa que não tinha nada a ver com a desconfiança da população,
até porque tudo não passou de um boato”. Se ela não fosse inocente e se os
boatos fossem verdadeiros, então seria justificável o linchamento? Estranha
declaração de um representante de uma instituição que, ao lado da Justiça,
teria a função civilizatória de ser o guardião da tendência humana de destruir
uns aos outros e a si mesmos.
Se um representante do Estado dá uma
declaração pública assim tão ambígua, abrindo uma sinistra possibilidade de
haverem linchamentos justificáveis, somente podemos interpretá-lo como um
sintoma de algo que os pesquisadores canadenses Arthur Kroker e Michael Weinstein chamam de pan-capitalismo, regime político-econômico
sem opositores que conviveria funcionalmente com o seu duplo homicida: o
retrofascismo - Leia KROKER, A. e WEINSTEIN, M. Data Trash, New York: St. Martin Press, 1994.
O retrofascismo
seria o velho fascismo histórico em sua nova roupagem ao mesmo tempo virtual e
nostálgica (a ressurreição como farsa de antigos referenciais) que combina os
impulsos primitivos e mágicos por esconjuração do mal com alta tecnologia de
informação e comunicação associado ao mal estar individual de um sistema
baseado na luta pela sobrevivência em uma sociedade competitiva cada vez mais
indiferente com o destino de seus cidadãos.
Em outras
palavras: Estado e sistema econômico e tecnológico (virtualização da economia,
financeirização, fim dos direitos trabalhistas etc.) se unem na promoção de um
sistema que, segundo Kroker e Weinstein, teria uma contradição interna: a
hiperliquidez e a livre circulação acelerada de informação e especulação
financeira versus estagnação comportamental dos indivíduos pelo mal estar
produzido por um sistema indiferente aos destinos dos cidadãos que necessitam
ser continuamente duros consigo mesmos – a violência contra si mesmo através da
autodisciplina motivacional como forma de continuar a ter esperança em
continuar vivendo.
Theodor Adorno: "Quem é duro consigo mesmo, também é com os demais" |
“Quem é duro
consigo mesmo, também é com os demais”, dizia o filósofo Theodor Adorno para
sintetizar o mecanismo psíquico do fascismo – intolerância, ódio, racismo e a irresistível
sedução pelas “soluções finais”. O fascismo esconderia um profundo ódio pela
existência: se eu não sou feliz, ninguém tem direito a sê-lo.
Para entendermos
essa estranha combinação entre Estado, alta tecnologia informacional e
violência sacrificial como sugerida pela dupla de pesquisadores canadenses, temos
que compreender esse conceito de sacrifício ritual.
Sacrifício e bode
expiatório
As diversas
formas de sacrifício ritual perpassam as mais variadas religiões, culturas e
épocas, usando sejam animais ou seres humanos para serem mortos de forma
sistemática por terceiros ou instituições.
Em geral os
deuses ocupam a razão central do sacrifício, seja para a manutenção do poder
divino, como moeda de troca para conseguir favores divinos em retribuição, como
oferta de vida e sangue que conteriam o mana
para o alimento dos deuses, ou ainda como função de “bode expiatório”: para que
no objeto de sacrifício recaia a ira dos deuses ou do destino que, caso contrário,
poderia recair indiscriminadamente sobre todos os homens ou comunidades
inteiras.
Sob um ponto de
vista antropológico, os rituais de sacrifício funcionariam como um mecanismo de
purificação e renovação de uma comunidade, assim como uma estratégia de
sociabilidade onde as tensões, conflitos e medos coletivos são expiados: alguém
morre no lugar de todos ao oferecer-se como sacrifício expiatório. Dessa forma,
o mal estar coletivo é aplacado e a comunidade pode iniciar um novo ciclo de
existência.
Rituais de sacrifício: punição e purificação |
Psicólogos e
psiquiatras especializados em terapia familiar sob o enfoque sistêmico já
localizaram há muito tempo um mecanismo análogo de elaboração do ritual de bode
expiatório em dinâmicas familiares onde sempre um membro é eleito como a
“ovelha negra”, isto é, como o doente ou pessoa disfuncional que atrai a atenção
de todos (raiva, preocupação, escárnio etc.) proporcionando equilíbrio ao
sistema familiar que ressurge como “puro” diante de um membro “doente”.
O sacrifício
ritual sem deuses
Porém essa
liquidação de segregados societais assumiria um novo aspecto em sociedades
industrializadas, tecnológicas e laicas onde os deuses não mais existem como
justificativa de manutenção de um ritual tão primitivo.
O sacrifício
ritual é renovado e adaptado à nova exigência trazida pela depressão econômica
e o pan-capitalismo: imposição da
disciplina punitiva cotidiana. O nazifascismo, por exemplo, foi a resposta à
depressão econômica combinando a férrea disciplina voltada à produção (pleno
emprego voltado à indústria bélica) e à vida cotidiana (médicos da SS
realizavam intenso controle pública de hábitos – antitabagismo e alimentação
saudável – e pesquisas biométricas sobre a “pureza” racial do alemão).
Nazifascismo: o primitivo ritual sacrificial do bode expiatório |
Combinado com a
violência sacrificial do holocausto, através de um Estado bunker o nazifascismo conseguiu combinar o primitivismo do bode
expiatório com uma sociedade voltada para a indústria bélica renovada pelo
ritual de purificação pelo ódio e intolerância.
Sob a nova
forma atual de capitalismo telemático (o pan-capitalismo) a produção e finanças
se virtualizam, assim como o trabalho por meio da automação, terceirização,
crise dos direitos trabalhistas, flexibilização das relações de trabalho e a
precarização das profissões.
Nessa nova
forma de sociabilidade cria o terror econômico do abandono: a indiferença da
sociedade e o Estado sobre o destino dos cidadãos, forma neodarwinista de uma
nova ideologia de competição social onde os refugos, desempregados,
subempregados, perdedores, velhos e pobres devem ser oferecidos como objeto
sacrificial, em primeiro lugar para a mídia: linchamentos midiáticos cotidianos
em programas ao estilo Brasil Urgente
ou Polícia 24 Horas onde diariamente
vítimas são sacrificadas não mais para a glória dos deuses como no passado, mas
agora pelo ódio niilista contra a existência: se eu não sou feliz, ninguém pode
sê-lo. Bodes expiatórios oferecidos como descarga para expiar o mal estar do
sofrimento cotidiano.
Sem os deuses
antigos que davam um sentido transcendente ou religioso aos rituais de
sacrifício, agora o impulso primitivo ressurge como tragédia, isto é, como
vontade niilista do nada, como alertava Nietzsche.
Da combinação
do primitivismo com a eletrônica (a TV) agora testemunhamos o hibridismo do
primitivismo com o digital. O linchamento de Fabiane de Jesus partiu de um
boato amplificado por uma página do Facebook chamada “Guarujá Alerta”, título
em si com um sabor proto-fascista que inspira a urgência diante de fatos
consumados que exigem “soluções finais”. Dos antigos “vigilantes” dos bairros
(esquadrões da morte, por exemplo) agora vemos a irrupção brutal da vontade por
purificação estimulada por uma rede social, sem mediações, através de uma
simulação de comunidade (a virtualização das relações sociais pelo Facebook)
que contagiou as relações reais.
Para além da barbárie do linchamento, o mais
perturbador nesse episódio é a ambígua declaração do governador do Estado de
São Paulo Geraldo Alckmin que poderia confirmar as sinistras previsões de
Kroker e Weinstein nos anos 1990: uma integração entre Estado, pan-capitalismo
e violência sacrificial. O impulso primitivo amplificado pelas redes digitais
sob as vista grossas do Estado que, ao invés de cumprir sua função
civilizatória de proteger a sociedade de si mesma, anula-se diante violência
sacrificial necessária para a disciplina punitiva das organizações corporativas
– a dor no trabalho é descontada na destruição do outro pela seguinte lógica:
pelo menos sei que tem gente com uma vida pior do que a minha!
O episódio do
linchamento no Guarujá é um alerta da possibilidade de o retrofascismo estar à
espera de uma tradução política que conquiste o poder criando, mais uma vez na
História, o Estado bunker.
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