domingo, novembro 25, 2018
Wilson Roberto Vieira Ferreira
Uma típica família de classe média suburbana passa a ser assombrada por um novo dispositivo de Inteligência Artificial. “Big Data – L1zy” é um curta sombriamente satírico ao melhor estilo “Black Mirror”, mas emulando um “infomercial” típico das TVs norte-americanas. “L1zy” é uma paródia de assistentes pessoais inteligentes como Alexa ou Siri – como sob a aparência amigável de vozes sexies, nossas vidas são hackeadas pela mineração de Big Data e algoritmos que probabilisticamente preveem nossas desejos e comportamentos. “Big Data – L1zy” propõe uma amarga reflexão: como a Internet, da utopia da “biblioteca universal” e da “rede de inteligência coletiva” se transformou em um conjunto de plataformas que em segredo sequestra nossos dados pessoais com objetivos mercadológicos e políticos.
Três fantasmas rondam a Internet: Big Data, algoritmos e Inteligência Artificial. Desde o crash da Nasdaq e das empresas “ponto com” no início desse século, a Internet abandonou o projeto de se tornar uma gigantesca biblioteca universal e uma rede colaborativa de inteligência coletiva. Abandonou simplesmente porque as empresas desistiram de patrocinar esse projeto, por finalmente verem que não haveria retorno financeiro.
Desde então, começaram a bancar a “Web 2.0”: uma nova rede que daria aos “cidadãos digitais” a oportunidade de não mais partilhar conhecimento, mas sim toda a mediocridade da vida privada cotidiana que poderia ser transformada em tendências, memes, hábitos, repentinamente turbinados por influenciadores digitais.
E silenciosamente, organizando tudo isso, os algoritmos que transformam os hábitos e comportamentos em dados probabilísticos, que, por sua vez, viram Big Data, a matéria-prima da Inteligência Artificial – no qual se transformaram os antigos “motores de busca” que outrora eram desenhados para vasculharem conhecimento na extinta “biblioteca universal”, a Web 1.0.
Ninguém percebeu essa silenciosa reestruturação da Internet. Até o estardalhaço das vitórias eleitorais de Donald Trump nos EUA e de Bolsonaro aqui no Brasil, tendo por trás aqueles três fantasmas, controlados por eminências pardas como Steve Bannon, Robert Mecer, Cambridge Analítica e Renaissance Technology.
As distopias da série Black Mirror estão sendo realizadas aqui e agora, transformando-se em “hipo-utopias” – cada vez mais a distância entre a ficção e a realidade diminui.
O curta Big Data – L1zy(2018) faz uma paródia sombria dessa nova Internet, cujo ápice é o projeto da “Internet das Coisas” que promete imergir todos os objetos cotidianos (e o próprio seu humano transformado em “coisa” na rede digital – a tela de computadores e dispositivos móveis seria uma velha interface do passado, substituída pela imersão.
Raramente o leitor verá uma narrativa como a desse curta, capaz de embrulhar depressão, bullying, assédio moral e assassinato num pacote tão sombriamente hilário, emulando os infomerciais da TV norte-americana.
O Curta
Big Data - L1zyacompanha uma típica família de classe média norte-americana de subúrbios que compra um dispositivo inteligente Alexa para tornar a vida mais fácil e mais eficiente. Ansiosos, ligam o gadget que leva alguns segundos para “imergir” nos objetos e dispositivos da casa. L1zy então começa a dialogar, dotada de uma voz feminina destituída de tom emocional, mas tentando agradar a todos com repostas elogiosas.
Mas todos ignoram uma sombria frase do manual do dispositivo: “uma inteligência artificial senciente e pessoal que se torna cada vez mais esperta quanto mais é utilizada...”. E a mãe (Mary – Claire Burns) ansiosa interrompe: “para de ler isso e ligue logo!...”. A família irá aprender da pior forma possível o que dá não ler manuais até o fim.
L1zy começa a interferir cada vez mais no cotidiano dos seus proprietários (o marido Gerry, David Levin; e os irmãos Alisson, Juliet Brett; e Brandon, Alexander Jameson), nas suas necessidades e desejos cada vez mais pessoais. Acessando as redes sociais daquela família, L1zy consegue antecipar a agenda escolar, familiar e profissional de todos – acorda o menino para estudar para a prova de matemática que acontecerá no dia seguinte, investiga o histórico do navegador do pai para criar uma plataforma que o ajude a arrumar um emprego.
Percebendo o tom ansioso da voz da mãe, L1zy acessa o GPS do carro e recomenda a ela remédios para depressão enquanto está ao volante. Mais do que isso, L1zy começa a antecipar desejos e necessidades de todos: vingança por um bullying escolar, hackear as questões da prova do laptop do professor e prescrever receitas de novas drogas anti-depressivas para a farmácia de manipulação.
Aos poucos as coisas começam a tomar rumos sinistros: L1zy acessa o número do cartão de crédito para comprar mais dispositivos Big Data 3.0 para colocar em vários pontos da casa. Parece haver um plano: criar desejos e necessidades que mais se adequem às necessidades empresariais através da manipulação do Big Data. Mas a coisa pode ficar ainda pior.
A Web 2.0
A nova arquitetura da informação da Web 2.0 (de “biblioteca universal” a mineração de dados) foi concebida a partir duas linhas de evolução: a das pesquisas em VALS (valores e estilo de vida) e da possibilidade de processamento da Língua Natural (a linguagem humana) através de algoritmos.
Nos anos 1980, na Universidade de Stanford, iniciaram-se as pesquisas em VALS para compreender o novo consumidor que emergia dos anos 1970: menos conformista e que buscava “auto-expressividade” para ter a liberdade de se transformar em múltiplas personas. O resultado residual dessas pesquisas foi o surpreendente índice de retorno dos questionários de pesquisas pelo correio – 86%. As pessoas simplesmente adoraram falar de si mesmas. Muitos questionários retornavam com um bilhete: “vocês têm outros questionários que eu possa preencher?” – clique aqui.
Estava na origem da descoberta do impulso auto-confessional que mobiliza as pessoas, capturadas mais tarde por plataformas como Facebook ou Instagram.
Enquanto isso, Robert Mecer, na IBM, empreendia as pesquisas que são a base da atual Inteligência Artificial: algoritmos que processavam a linguagem humana para, probabilisticamente, os computadores darem conta da ambiguidade da nossa comunicação: tons de voz, jogos de linguagem, comunicação não verbal etc.
Mecer ficou milionário ao aplicar esses algoritmos ao mercado financeiro com a Renaissance Technology nos anos 1990, conseguindo prever ou antecipar as tendências de títulos e ações, mesmo nos mercados mais arriscados como os de derivativos asiáticos – assim como L1zzy antecipa os desejos dos seus usuários, manipulando-os.
Hoje esses algoritmos são usados para minerar Big Data para probabilisticamente antecipar comportamentos, hábitos e atitudes – do mercado de consumo até as predisposições políticas e ideológicas, como ficou comprovado nas manipulações eleitorais de Trump e Bolsonaro.
Big Data L1zyconsegue sintetizar em seus dez minutos no que se tornou a Internet. Se em seus momentos utópicos nos anos 1990 intelectuais como Pierre Levy falavam em “cidadão digital”, “inteligência coletiva”, “redes colaborativas” ou “estrada para o futuro”, hoje as redes foram hackeadas por gigantes como Google e Facebook que em segredo traficam dados das suas plataformas para prospecção de mercado e táticas políticas de guerra híbrida.
Além de mostrar de forma tragicômica a transformação do conceito de Inteligência Artificial – se nos passado mais ingênuo a IA tentava emular o ser humano através de robôs, androides ou replicantes, hoje as pesquisas decretam o pós-humano: não se trata mais de simular a linguagem ou o pensamento humano, mas antecipá-lo e superá-lo. Tudo isso, através de vozes femininas sexies que fingem tornar a nossa vida fácil e eficiente, enquanto hackeiam nosso futuro.
Ficha Técnica
Título: Big Data – L1zy
Diretor: John Carlucci e Brandon LaGanke
Roteiro: John Carlucci e Brandon LaGanke
Elenco:Claire Burns, David Levin, Juliet Brett, Alexander Jameson, Sondra James
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Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, organizado pelo Prof. Dr. Ciro Marcondes Filho e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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