sábado, outubro 27, 2018

Gil Gomes e Datafolha fazem a tradução política do fascismo brasileiro


Nos dias que antecederam a eleição de segundo turno dois fatos relevantes: a morte do radialista e jornalista Gil Gomes e os resultados da pesquisa Datafolha sobre os atributos dos candidatos à presidência. O primeiro, evento sincrônico cheio de significados – a morte do representante de uma extirpe da crônica policial que por décadas cultivou o ódio, medo e vingança dos telespectadores e ouvintes. Cuja colheita vemos na atual polarização política. E o segundo, divulga números sobre os atributos aos candidatos à presidência que relembram os resultados da célebre pesquisa “Personalidade Autoritária” liderada por Theodor Adorno na década de 1940 nos EUA. Pesquisa representou as configurações psicodinâmicas relacionadas a atitudes e expressões antissemitas, etnocêntricas, conservadorismo político e econômico para chegar ao potencial fascista, a famosa “Escala F”. Provando que o pensamento autoritário não é uma simples “aberração cognitiva”. Mas uma formação reativa psíquica à espera de uma tradução política.

Nesses últimos quinze dias que antecederam as eleições do segundo turno, duas notícias repletas de sentido no contexto atual: a morte do jornalista e locutor Gil Gomes e o resultado da pesquisa Datafolha sobre qual a opinião sobre os atributos dos candidatos à presidência.
É muito sincrônico o falecimento de Gil Gomes às vésperas de uma possível vitória do candidato de extrema-direita Jair Bolsonaro. Gil Gomes fez parte de toda uma geração midiática de nomes como Jacinto Figueira Jr. (“o homem do sapato branco”), Luis Carlos Alborgethi et caterva cuja retórica sensacionalista da crônica policial explorava os instintos mais baixos dos espectadores como o medo, o ódio e a vingança.
Todos eles, por décadas, cultivaram no rádio e na TV esse psiquismo que agora foi agenciado politicamente por um candidato como Bolsonaro. Morte sincrônica: é como se Gil Gomes deixasse esse mundo com a sensação da missão cumprida de ter contribuído com a gênese de um político medíocre, vindo do “baixo” clero da Câmara, que ganhou força ao se sintonizar à essa egrégora proto-fascista.
E por falar em “proto-fascista”, os dados levantados pela pesquisa Datafolha, levantados no dia 17 e 18 de outubro, sobre os atributos dos candidatos à presidência dá muito no que pensar. Principalmente porque a interpretação dos números nos remete diretamente à pesquisa empírica psicossocial chamado “A Personalidade Autoritária”, liderada por Theodor Adorno na década de 1940 nos EUA, junto com outros pesquisadores da Universidade da Califórnia como Nevitt Sanford, Daniel Livinson e Else Frenkel-Brunwisck.

Atributos dos candidatos

“A Personalidade Autoritária” foi uma pesquisa que durou vários anos, mobilizando questionários, escalas, entrevistas individuais e interpretação interdisciplinar dos resultados – representar as configurações psicodinâmicas relacionadas a atitudes e expressões antissemitas, etnocêntricas, conservadorismo político e econômico para chegar ao potencial fascista, a famosa “Escala F”.
Adorno exilou-se nos EUA, fugindo do nazismo, quando percebeu como indivíduos aparentemente normais, vivendo num ambiente liberal e democrático, apresentavam disposições e expressões fascistas, semelhantes às experimentadas por ele na Alemanha. 


A Escala F mediria algo análogo a uma estrutura latente de personalidade, que seria determinante para a recepção de ideologias racistas e etnocêntricas. Mediria um conjunto de facetas em um indivíduo cujo conjunto formaria uma síndrome, uma estrutura mais ou menos duradoura numa pessoa, tornando-a receptiva a propaganda antidemocrática.
Traços recorrentes que comporiam aquilo que Adorno denominou como “personalidade autoritária”: convencionalismo, submissão acrítica, agressividade autoritária, destruição e cinismo, poder e rudeza, superstição e estereotipia, exteriorização, projeção e a exagerada preocupação com relação a temas em torno da sexualidade.
Mas, em primeiro lugar, vamos aos dados levantados pelo Datafolha:

Pergunta
Bolsonaro
Haddad
Mais defende os ricos
55
22
Mais defende os pobres
31
54
Mais preparado para combater a violência
64
26
Mais preparado para cuidar da saúde
44
39
Mais preparado para cuidar da educação
45
43
É mais autoritário
75
15
É o que mais defende a democracia
47
39
É o mais sincero
53
30
É o que mais faz promessas que não poderá cumprir
33
48
É o mais experiente
43
40
É o mais preparado para combater o desemprego
47
37
É o mais preparado para fazer o Brasil crescer
51
34
É o mais moderno e inovador
47
36
É mais inteligente
44
38

A Escala F

Agora vamos fazer um breve resumo dos traços recorrentes da Escala F:
(1) Convencionalismo– aderência rígida a valores convencionais de classe média. Resulta não de escolha espontânea, mas de pressões externas de tipo social;
(2) Submissão acrítica (autoritária)– atitude remissiva e acrítica nas relações com autoridade moral. Adesão acrítica que expressa a falta de consistência interior – ego fraco, sem autonomia, tendendo a seguir o que se entende por “maioria”;
(3) Agressividade autoritária– tendência de rejeitar, controlar e punir quem viola as normas convencionais. Orientação constituída de considerável carga de hostilidade. Sempre dirigida a grupos minoritários e ditado por “boas razões”: moralidade e patriotismo;
(4) Destrutividade e cinismo– hostilidade difusa e desprezo a tudo que é humano. Pessimismo universal que justifica a própria hostilidade e impulsos interiores não-aceitos;
(5) Poder e rudeza– importância exagerada às dimensões domínio-submissão, fraco-forte, líder-liderado. A origem está na falta de força interior, que se procura suprir apoiando-se em estruturas poderosas;
(6) Superstição e estereotipia– crença mística nos destinos fatais de homens e indivíduos. O raciocínio por esquemas pré-elaboradas e categorias rígidascria um halo místico ao redor de líderes nos quais tudo é considerado extraordinário, tendendo ao sobrenatural;
(7) Exteriorização (anti-intracepção)– desconfiança e oposição a tudo quanto é subjetivo, imaginativo, meigo e delicado. Preferência exagerada a tudo que é concreto, tangível e pragmático, desconfiando dos sentimentos, fantasias ou imaginação. “Quando ouço falar em cultura, saco o meu revólver”, frase de uma peça antinazista de Hanns Jost sintetiza essa faceta;
(8) Projeção– disposição em acreditar que coisas violentas e perigosas estão ocorrendo no mundo. Atitude persecutória que se origina da projeção no mundo exterior dos problemas psíquicos (impulsos, tabus, fraquezas, temores, reponsabilidades);
(9) Sexo– preocupação exagerada (repressão e ansiedade) em relação aos atos da sexualidade. 


O discurso Bolsonaro na Escala F

A primeira coisa que salta aos olhos no resultado da pesquisa Datafolha é a aparente contradição entre Democracia/Autoritarismo: Bolsonaro é considerado o mais autoritário, mas também o mais preparado para defender a Democracia. Aberração cognitiva? Conceitos antinômicos se transformam em causa e efeito num pensamento obcecado com domínio-submissão (item 5) e com a visão persecutória do mundo (item 8): somente alguém com “mão forte” (governo forte e totalitário) pode fazer valer a “Democracia” num mundo ameaçado por inimigos conspiratórios.
Encontramos aqui ecos de anti-intracepção: Democracia não é respeito aos outro, diferenças e abertura à oposição – deve ser um governo forte que una a sociedade contra quaisquer ameaças aos valores convencionais (item 1).
Outro ponto é a questão da “sinceridade” – Bolsonaro seria amplamente mais sincero do que Haddad. Aqui encontramos a faceta do Poder e rudeza (item 5) combinado com anti-intracepção (item 7). Nessa combinação encontramos o conteúdo psíquico que ajudou a fazer as “mitagens” e “lacrações” de Bolsonaro na TV e memes das redes sociais. O intelectualismo de Haddad gera desconfiança na personalidade autoritária pela faceta anti-intraceptiva. A sinceridade de Bolsonaro vem da sua fala dura, direta, por frases curtas, sem axiomas ou pressupostos de um discurso intelectual.
A rudeza discursiva se confunde com a sinceridade nessa síndrome das facetas 5 e 7 combinadas. Por isso, ele é o “mito”, aquele que tem coragem de dizer coisas que ninguém fala...
Por isso também ele o mais preparado para cuidar da educação: a educação pensada pela faceta do anti-intelectualismo – na escola deve ser ensinado nada mais do que aquilo seja prático, concreto, pragmático. Sem “ideologias”, “política” ou “partidos” – anti-intracepção.


Haddad é considerado aquele que mais faz promessas que não pode cumprir. Outra ressonância da síndrome Poder e Dureza + Anti-intracepção: diante do discurso “sincero” de Bolsonaro (rude), o discurso propositivo de Haddad soa como insincero e fantasioso. Quando o discurso “propositivo” de Bolsonaro é “vou jogar duro contra o déficit público”. Haddad fala em macroeconomia e máquina do Estado. Somente agora, na reta final, Haddad vem com o discurso direto em baixar o preço do bujão de gás e aumento do salário mínimo... Será que o pitaco de Mano Brown no PT que não fala a “linguagem do povo” deu certo?
A faceta do “Destrutividade e Cinismo” encontra-se nas questões relativas à defesa de ricos e pobres: o fato de Bolsonaro ser aquele considerado como quem mais defende os ricos e, “contraditoriamente”, o mais democrático tem a sua lógica: manifesta uma hostilidade difusa ao outro, ao “pobre” – pobre é sempre o outro. Decorre que os “pobres” devem se virar ou morrer porque são os culpados da sua própria condição. Ecos da atitude anti-intraceptiva que sustenta o discurso meritocrático, do empreendedorismo e do darwinismo social – para o pensamento autoritário, o evolucionismo de Darwin parece funcionar melhor na sociedade do que na Natureza. Porém, numa leitura fascista: não é a lei da adaptação, é a lei do mais forte!
E por último, e não menos importante, o discurso de Bolsonaro atende à obsessão pelos temas que envolvem sexo no pensamento autoritário/fascista (item 9) somado à agressividade persecutória autoritária (item 3): a repetição da denúncia do “Kit gay” que Haddad supostamente seria distribuído em escolas, a acusação do inacreditável filósofo/astrólogo Olavo de Carvalho de que Haddad supostamente defendia o incesto em livro publicado em 1988, e todos o convencionalismo classe média em torno da homofobia e misoginia.
Concluindo: o que torna a personalidade autoritária (fascista) difícil de ser combatida é porque ela não é simplesmente uma aberração cognitiva – algo decorrente do analfabetismo político, desinformação ou simplesmente burrice. É uma síndrome, uma formação reativa sempre à espera de um agenciamento político que dê expressão para essa patologia.
E infelizmente, a atual Guerra Híbrida, que colocou o Brasil na turnê internacional de “primaveras” de revoluções híbridas (Síria, Egito, Ucrânia, Tunísia, Líbia etc.), deu expressão política a essa verdadeira síndrome psíquica.  

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