sábado, outubro 11, 2025

Filme 'Goat' transforma protofascismo do futebol americano em conto de terror



Um jovem e promissor jogador de futebol americano enfrenta uma semana intensa de treinamentos sob a orientação de seu ídolo, um carismático quarterback que está perto de se aposentar. É possível retirar um conto de terror dessa sinopse? O filme “Goat” (Him, 2025), de Justin Tipping, consegue. Jordan Peele se interessou em produzir esse projeto pela existência de uma lacuna cinematográfica sobre a temática do terror em esportes profissionais. E Peele e Tipping compartilham de uma visão ultracrítica sobre o futebol americano. O slogan promocional de “Goat” (“A Grandeza Exige Sacrifício”) revela a ironia crítica: a conversão do esporte como entretenimento pedagógico para as massas: a celebração da educação pela dor como princípio de uma concepção fascista de vida. Apesar do filme tender para um terror gonzo e slasher que lembra “A Substância”, o filme didaticamente revela os nove traços da personalidade fascista que Theodor Adorno descreveu nos “Estudos Sobre a Personalidade Autoritária”.

Já foi há muito o tempo em que a importância do esporte estava no campo sanitário e ético. Primeiro, como poderosa ferramenta de prevenção e promoção da saúde em vários níveis - o investimento em esporte traria um retorno significativo, pois ajudaria a economizar gastos com saúde pública a longo prazo. 

Mas o esporte, principalmente, promoveria valores éticos e educativos: o esforço pela vitória promoveria o respeito, a dignidade e a ética na competição.

Pierre de Coubertain, o fundador do Movimento Olímpico, foi mais além, juntando os dois aspectos: Equilíbrio entre mente e corpo. Para ele, o corpo e a mente não deveriam ser separados; a atividade física era crucial para o desenvolvimento e a saúde do indivíduo como um todo. 

Mas tudo isso ficou para trás. Desde as Olimpíadas de Berlim de 1936, o esporte foi dominado pelo princípio do desempenho: eficácia, eficiência produtividade. Dessa vez voltada para a promoção ideológica nazista da supremacia ariana.

No pós-guerra, a Guerra Fria transformou o movimento olímpico numa máquina propagandística de medalhas, enquanto os esportes se mercantilizavam, transformando atletas em marcas promocionais e a competição uma corrida científica por melhorias de performance, numa zona cinza entre a contravenção (dopping) e a criminalidade (organizações criminosas).



Com o fim da Guerra Fria, paradoxalmente o esporte parece ter voltado a assumir o papel educacional. Porém, não naqueles termos imaginados por Coubertain, mas promovendo valores do individualismo do neoliberalismo triunfante pós-Guerra Fria, sintetizado na exortação “sem dor, sem ganho!” (“No Pain, No Gain”) – um slogan bem polissêmico, que pode ser interpretado num sentido disciplinar, religioso ou mesmo político.

O filme Goat (Him, 2025), ambientado nos bastidores da fama no futebol americano, revela como a promoção de um esporte de massa como esse consegue juntar esses valores simbólicos numa tricotomia de prioridades para a qual o atleta de sucesso deve se guiar: “Futebol, Deus, Família”.

E transformar essa trilogia da nova ética do esporte num conto de terror.

Dirigido por Justin Tipping, o projeto chamou a atenção de Jordan Peele que assumiu a produção do filme. Primeiro, porque o roteiro segue os moldes psicológicos de Nós (Us, 2019) de Peele. E, segundo, porque não existem tanto filmes de terror sobre esportes profissionais. Este novo filme produzido por Jordan Peele visa preencher essa lacuna com a história de um quarterback em ascensão que encontra forças obscuras em seu caminho para se tornar o melhor de todos os tempos.

O diretor Justin Tipping (escolhido a dedo pelo produtor Jordan Peele com base em sua estreia em 2016, Kicks) tem uma visão ultracrítica do futebol americano, que é apresentado aqui como uma prática ancestral, quase oculta, transformada em mercadoria tóxica — uma que canaliza a agressividade do público para uma forma quase teatral de combate encenado, onde as baixas (ou concussões incapacitantes) vêm como uma lição moral para as massas: “sem dor, não há vitória!”.

Embora comece promissor, na segunda metade se transforma seriamente em uma fantasmagoria surreal que é mais gonzo do que assustadora. Torna-se um terror exagerado, slasher, hiperbólico, muito semelhante à conclusão do filme A Substância.

Porém a grande virtude de Goat, ao preencher essa lacuna de ver o terror num esporte profissional, é tocar no ponto nevrálgico dessa nova pedagogia de massas: a educação motivacional pela disciplina, dor e individualismo.

Essa é a gênese da concepção fascista da vida, cuja fórmula o pensador alemão Theodor Adorno sintetizou da seguinte maneira: “aquele que é duro contra si mesmo adquire o direito de sê-lo contra os demais e se vinga da dor que não teve a liberdade de demonstrar, que precisou reprimir” (“Educação após Auschwitz”In: Theodor W. Adorno – coleção grandes cientistas sociais, São Paulo: Ática, p.39).

O resultado é a personalidade autoritária que pesquisadores como Erich Fromm e Wilhelm Reich descreviam como de “caráter neurótico”: fixações sadomasoquistas, superego punitivo fonte de exigências impossíveis e de um sentimento extremo de culpabilidade, resultando num ego fraco que esgota toda sua energia na defesa contra pulsões reprimidas.

Imagine o leitor tudo isso se transformando em alucinações ou fantasmas reais que perseguem um protagonista que, desde à infância, foi educado e motivado para o sucesso na verdadeira máquina de moer carne que é a máquina promocional do futebol americano.



Goat torna a suspensão da descrença uma luta impressionante com o espectador. Devido à posição aparentemente intratável do futebol americano no centro da vida americana. Tão central e colocado pelos americanos numa posição tão transcendente que chamam seu campeonato como “mundial”. Embora apenas eles joguem profissionalmente um esporte que deixou de ser um simples “pão e circo, como no velho Coliseu.

Tornou-se um símbolo patriótico beligerante e uma nova ferramenta pedagógica para as massas: a educação fascista pela dor em tempos da retórica coach motivacional, religiões neopentecostais que vendem a salvação por meio do sucesso material.

O Filme

A história começa de forma bastante realista, com o personagem central, Cameron Cade (Tyriq Withers), apresentado como um quarterback universitário estrela à beira de uma carreira profissional. Mas, quando está prestes a participar de um evento de olheiros da NFL, ele é atacado por uma figura misteriosamente fantasiada e sofre uma lesão cerebral traumática.

 Cameron é aconselhado a esquecer seus sonhos em prol da saúde. Mas, tendo passado por uma infância em que a ideia de buscar o sucesso a todo custo lhe foi incutida pelo pai (ouvindo gritos do tipo “não há vitória sem dor”), ele está determinado a seguir em frente.

Mas ele está a caminho do “Combine”, evento onde times profissionais recrutam jogadores promissores. Cameron não quer apenas ser convocado. Ele quer ser o melhor de todos os tempos. No momento, esse título pertence a Isaiah White (Marlon Wayans), mas o contrato do oito vezes campeão terminou e ele está procurando alguém digno o suficiente para substituí-lo. "Eu sou Ele!", grita o jovem “Cam” em uma demonstração de autoconfiança.



Então, encorajado por seu agente voraz (Tim Heidecker), ele agarra a oportunidade de se submeter a um treinamento personalizado com Isaiah White, um quarterback lendário que Cameron idealiza desde criança. Então, Cameron se dirige para um enorme bunker de treinamento escondido no meio do deserto do Texas.

Os primeiros sinais de que algo está errado surgem quando Cameron encontra um grupo de pessoas perturbadas e de aparência grotesca, com características de um culto, na estrada para o isolado complexo desértico do astro do futebol. White recebe Cameron, toma seu celular e informa que ele ficará totalmente afastado de comunicação externa e redes sociais.

O treinamento subsequente, supervisionado por White, juntamente com um médico esportivo (Jim Jefferies) que regularmente injeta no corpo de Cameron uma substância misteriosa. E um treinador corpulento (o lutador peso-pesado de MMA Maurice Greene) que submete Cameron a uma metódica intimidação psicológica — "Você não passa de um garotinho bonitinho e emotivo", White o provoca.

Somado a isso, provações físicas brutais. Não apenas para ele, mas também para um infeliz colega atleta que é submetido a bolas de futebol americano repetidamente lançadas em alta velocidade contra seu rosto sempre que Cameron não consegue completar um passe. Cameron também é incentivado a se submeter a frequentes transfusões de sangue de natureza altamente suspeita.

A partir daí, a coisa só fica mais estranha. Muito, muito mais estranha, à medida que o roteiro entra em modo totalmente bizarro com episódios psicodélicos, alucinações sinistras de Cameron, incluindo uma reconstituição visual da pintura "A Última Ceia".

Cada vez mais aquele complexo esportivo vai se transformando num aterrorizante cenário de pesadelos.

O filme é visualmente cativante em alguns momentos, como quando os encontros extremamente violentos entre os jogadores de futebol americano são retratados por meio de efeitos de raio-X, nos quais os danos internos aos seus corpos são vividamente retratados.

Nas linhas de diálogo há referências constantes ao Coliseu do antigo Império Romano. Como se o futebol americano fosse nada mais do que a rememoração de um antigo ritual ancestral de demonstração de força, riqueza e poder.

Mas também as linhas de diálogo (e principalmente a cena inicial em que Cameron, ainda criança, diante da TV assistindo a uma partida ao lado do seu pai que grita nos seus ouvidos a necessidade pedagógica da dor e a vitória a qualquer custo) recorrentemente relacionam dor, vitória e sofrimento. O que mostra que Goat está nos querendo dizer outra coisa: não se trata mais de política de pão e circo, mas uma forma de pedagogia para as massas. Em que os astros do esporte são oferecidos em sacrifício para confirmar a tese central: “Sem dor, sem ganho”.



Essa é a gênese daquilo que Theodor Adorno definia como “concepção fascista de vida”. Segundo ele, com nove traços característicos – Leia ADORNO, Theodor. Estudos Sobre a Personalidade Autoritária, Editora Unesp, 2019.

Que o filme Goat nos descreve:

1- Convencionalismo

A inclinação para o fascismo é característica de quem gravita em torno das classes médias, com rígida adesão ao convencional ou ao “bom senso” seja estética ou intelectualmente. “Deus, Futebol e Família” são repetidos como mantra dentro desse convencionalismo do bom senso de classe média. Mostrando as perigosas ligações com fanatismo religioso;

2- Submissão Acrítica

A dor não é para ser questionada, mas suportada. Como prova de foco e autoconfiança. Atitude remissiva e acrítica nas relações de autoridade moral, idealizada no âmago do próprio grupo.

3- Agressividade Autoritária

É a consequência dos itens anteriores - facilidade de espreitar, punir, repelir, condenar ou punir quem violar as normas convencionais.

4- Destruição e cinismo

Características presentes em Isaiah White e sua equipe de cruéis treinadores que parecem partilhar uma hostilidade difusa, um desprezo por tudo que é humano. Um pessimismo universal que vê o mundo como uma selva onde os seres humanos são considerados essencialmente egoístas, maus e estúpidos. 

5- Poder e Rudeza

Importância exagerada com as relações assimétricas entre forte-fraco, líder-liderado, domínio-submissão etc. As demonstrações exteriores de força (andar armado, tatuagens agressivas, corpo meticulosamente “sarado” e musculoso e demais expressões de agressividade – cabeça raspada, linguagem agressiva etc.) parecer esconder a falta de força interior, a fraqueza do ego que se submete acriticamente ao Convencionalismo e à submissão acrítica vistos acima.

6- Estereotipia

Reduzir a complexidade dos problemas mediante reduções simplistas. Slogans absurdos, mas que têm o mérito de ser claros, são os preferidos. Como, por exemplo, “No Pain, No Gain!”. A repetição como um mantra garante a proteção do indivíduo diante da ambiguidade e complexidade do real.

7- Superstição

Isso cria um halo místico em torno de líderes e a aproximação do rígido treinamento esportivo dom Deus e a religião. Até chegar à simbologia ocultista – principalmente na sequência final.

8- Anti-intracepção

Como o protofascista possui um ego frágil e, por isso, dotado de um espírito gregário de se submeter ao grupo e a líderes, tem medo da introspecção: medo de ficar sozinho, meditativo, com seus próprios pensamentos. Por isso, após os intensos treinamentos que envolvem dor e submissão, não há descanso: mas festas e sexo.

9- Sexo

Uma atitude exageradamente preocupada no protofascista em relação à sexualidade. Sexo deixa de ser uma forma de relacionamento íntimo e privado para se tornar demonstração pública de poder e riqueza – a contiguidade entre potência sexual e sucesso esportivo.


Ado

 

Ficha Técnica 

 

Título: Goat

Diretor: Justing Tipping

Roteiro:  Skip Bronkie, Zack Akers, Justin Tipping

Elenco:  Marlon Wayans, Tyriq Withers, Julia Fox

Produção: Monkeypaw Productions

Distribuição: Universal Pictures International (UPI)

Ano: 2025

País: EUA

 

Postagens Relacionadas

 

Parques de diversões, espelhos e a morte no filme "Nós"

 

 

O ovo da serpente do PT e a concepção fascista de vida

 

 

Cuidado! Os rinocerontes já estão entre nós.

 

 


Por que "O Aprendiz" está por trás das vitórias de Trump e Doria Jr.?

 

 

 

Tecnologia do Blogger.

 
Design by Free WordPress Themes | Bloggerized by Lasantha - Premium Blogger Themes | Bluehost Review