Um jovem e promissor jogador de futebol americano enfrenta uma semana intensa de treinamentos sob a orientação de seu ídolo, um carismático quarterback que está perto de se aposentar. É possível retirar um conto de terror dessa sinopse? O filme “Goat” (Him, 2025), de Justin Tipping, consegue. Jordan Peele se interessou em produzir esse projeto pela existência de uma lacuna cinematográfica sobre a temática do terror em esportes profissionais. E Peele e Tipping compartilham de uma visão ultracrítica sobre o futebol americano. O slogan promocional de “Goat” (“A Grandeza Exige Sacrifício”) revela a ironia crítica: a conversão do esporte como entretenimento pedagógico para as massas: a celebração da educação pela dor como princípio de uma concepção fascista de vida. Apesar do filme tender para um terror gonzo e slasher que lembra “A Substância”, o filme didaticamente revela os nove traços da personalidade fascista que Theodor Adorno descreveu nos “Estudos Sobre a Personalidade Autoritária”.
Já foi há muito o tempo em que a importância do esporte estava no campo sanitário e ético. Primeiro, como poderosa ferramenta de prevenção e promoção
da saúde em vários níveis - o investimento em esporte traria um retorno
significativo, pois ajudaria a economizar gastos com saúde pública a longo
prazo.
Mas o esporte, principalmente, promoveria valores éticos e
educativos: o esforço pela vitória promoveria o respeito, a dignidade e a ética
na competição.
Pierre de Coubertain, o fundador do Movimento Olímpico, foi mais
além, juntando os dois aspectos: Equilíbrio entre mente e corpo. Para
ele, o corpo e a mente não deveriam ser separados; a atividade física era
crucial para o desenvolvimento e a saúde do indivíduo como um todo.
Mas tudo isso ficou para trás. Desde as Olimpíadas de Berlim de
1936, o esporte foi dominado pelo princípio do desempenho: eficácia, eficiência
produtividade. Dessa vez voltada para a promoção ideológica nazista da
supremacia ariana.
No pós-guerra, a Guerra Fria transformou o movimento olímpico numa
máquina propagandística de medalhas, enquanto os esportes se mercantilizavam,
transformando atletas em marcas promocionais e a competição uma corrida
científica por melhorias de performance, numa zona cinza entre a contravenção
(dopping) e a criminalidade (organizações criminosas).
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Com o fim da Guerra Fria, paradoxalmente o esporte parece ter
voltado a assumir o papel educacional. Porém, não naqueles termos imaginados
por Coubertain, mas promovendo valores do individualismo do neoliberalismo
triunfante pós-Guerra Fria, sintetizado na exortação “sem dor, sem ganho!” (“No
Pain, No Gain”) – um slogan bem polissêmico, que pode ser interpretado num
sentido disciplinar, religioso ou mesmo político.
O filme Goat (Him, 2025), ambientado nos bastidores
da fama no futebol americano, revela como a promoção de um esporte de massa como
esse consegue juntar esses valores simbólicos numa tricotomia de prioridades para
a qual o atleta de sucesso deve se guiar: “Futebol, Deus, Família”.
E transformar essa trilogia da nova ética do esporte num conto de
terror.
Dirigido por Justin Tipping, o projeto chamou a atenção de Jordan
Peele que assumiu a produção do filme. Primeiro, porque o roteiro segue os
moldes psicológicos de Nós (Us, 2019) de Peele. E, segundo, porque
não existem tanto filmes de terror sobre esportes profissionais. Este novo
filme produzido por Jordan Peele visa preencher essa lacuna com a
história de um quarterback em ascensão que encontra forças obscuras em seu
caminho para se tornar o melhor de todos os tempos.
O diretor Justin Tipping (escolhido a dedo pelo
produtor Jordan Peele com base em sua estreia em 2016, Kicks)
tem uma visão ultracrítica do futebol americano, que é apresentado aqui como
uma prática ancestral, quase oculta, transformada em mercadoria tóxica — uma
que canaliza a agressividade do público para uma forma quase teatral de combate
encenado, onde as baixas (ou concussões incapacitantes) vêm como uma lição moral
para as massas: “sem dor, não há vitória!”.
Embora comece promissor, na segunda metade se transforma
seriamente em uma fantasmagoria surreal que é mais gonzo do que assustadora.
Torna-se um terror exagerado, slasher, hiperbólico, muito semelhante à
conclusão do filme A Substância.
Porém a grande virtude de Goat, ao preencher essa lacuna de
ver o terror num esporte profissional, é tocar no ponto nevrálgico dessa nova
pedagogia de massas: a educação motivacional pela disciplina, dor e
individualismo.
Essa é a gênese da concepção fascista da vida, cuja fórmula o
pensador alemão Theodor Adorno sintetizou da seguinte maneira: “aquele que é
duro contra si mesmo adquire o direito de sê-lo contra os demais e se vinga da
dor que não teve a liberdade de demonstrar, que precisou reprimir” (“Educação
após Auschwitz”In: Theodor W. Adorno – coleção grandes cientistas
sociais, São Paulo: Ática, p.39).
O resultado é a personalidade autoritária que pesquisadores como Erich
Fromm e Wilhelm Reich descreviam como de “caráter neurótico”: fixações
sadomasoquistas, superego punitivo fonte de exigências impossíveis e de um
sentimento extremo de culpabilidade, resultando num ego fraco que esgota toda
sua energia na defesa contra pulsões reprimidas.
Imagine o leitor tudo isso se transformando em alucinações ou
fantasmas reais que perseguem um protagonista que, desde à infância, foi
educado e motivado para o sucesso na verdadeira máquina de moer carne que é a
máquina promocional do futebol americano.
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Goat torna a suspensão da descrença
uma luta impressionante com o espectador. Devido à posição aparentemente
intratável do futebol americano no centro da vida americana. Tão central e
colocado pelos americanos numa posição tão transcendente que chamam seu
campeonato como “mundial”. Embora apenas eles joguem profissionalmente um
esporte que deixou de ser um simples “pão e circo, como no velho Coliseu.
Tornou-se um símbolo patriótico beligerante e uma nova ferramenta
pedagógica para as massas: a educação fascista pela dor em tempos da retórica
coach motivacional, religiões neopentecostais que vendem a salvação por meio do
sucesso material.
O Filme
A história começa de forma bastante realista, com o personagem
central, Cameron Cade (Tyriq Withers), apresentado como um quarterback
universitário estrela à beira de uma carreira profissional. Mas, quando está
prestes a participar de um evento de olheiros da NFL, ele é atacado por uma
figura misteriosamente fantasiada e sofre uma lesão cerebral traumática.
Cameron é aconselhado a esquecer seus sonhos em prol da
saúde. Mas, tendo passado por uma infância em que a ideia de buscar o sucesso a
todo custo lhe foi incutida pelo pai (ouvindo gritos do tipo “não há vitória
sem dor”), ele está determinado a seguir em frente.
Mas ele está a caminho do “Combine”, evento onde times
profissionais recrutam jogadores promissores. Cameron não quer apenas ser
convocado. Ele quer ser o melhor de todos os tempos. No momento, esse título
pertence a Isaiah White (Marlon Wayans), mas o contrato do oito vezes campeão
terminou e ele está procurando alguém digno o suficiente para substituí-lo. "Eu
sou Ele!", grita o jovem “Cam” em uma demonstração de autoconfiança.
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Então, encorajado por seu agente voraz (Tim Heidecker), ele agarra
a oportunidade de se submeter a um treinamento personalizado com Isaiah White,
um quarterback lendário que Cameron idealiza desde criança. Então, Cameron se
dirige para um enorme bunker de treinamento escondido no meio do deserto do
Texas.
Os primeiros sinais de que algo está errado surgem quando Cameron
encontra um grupo de pessoas perturbadas e de aparência grotesca, com
características de um culto, na estrada para o isolado complexo desértico do
astro do futebol. White recebe
Cameron, toma seu celular e informa que ele ficará totalmente afastado de
comunicação externa e redes sociais.
O treinamento subsequente, supervisionado por White, juntamente
com um médico esportivo (Jim Jefferies) que regularmente injeta no corpo de
Cameron uma substância misteriosa. E um treinador corpulento (o lutador
peso-pesado de MMA Maurice Greene) que submete Cameron a uma metódica
intimidação psicológica — "Você não passa de um garotinho bonitinho e
emotivo", White o provoca.
Somado a isso, provações físicas brutais. Não apenas para ele, mas
também para um infeliz colega atleta que é submetido a bolas de futebol
americano repetidamente lançadas em alta velocidade contra seu rosto sempre que
Cameron não consegue completar um passe. Cameron também é incentivado a se
submeter a frequentes transfusões de sangue de natureza altamente suspeita.
A partir daí, a coisa só fica mais estranha. Muito, muito mais
estranha, à medida que o roteiro entra em modo totalmente bizarro com episódios
psicodélicos, alucinações sinistras de Cameron, incluindo uma reconstituição
visual da pintura "A Última Ceia".
Cada vez mais aquele complexo esportivo vai se transformando num
aterrorizante cenário de pesadelos.
O filme é visualmente cativante em alguns momentos, como quando os
encontros extremamente violentos entre os jogadores de futebol americano são
retratados por meio de efeitos de raio-X, nos quais os danos internos aos seus
corpos são vividamente retratados.
Nas linhas de diálogo há referências constantes ao Coliseu do
antigo Império Romano. Como se o futebol americano fosse nada mais do que a
rememoração de um antigo ritual ancestral de demonstração de força, riqueza e
poder.
Mas também as linhas de diálogo (e principalmente a cena inicial
em que Cameron, ainda criança, diante da TV assistindo a uma partida ao lado do
seu pai que grita nos seus ouvidos a necessidade pedagógica da dor e a vitória
a qualquer custo) recorrentemente relacionam dor, vitória e sofrimento. O que
mostra que Goat está nos querendo dizer outra coisa: não se trata mais
de política de pão e circo, mas uma forma de pedagogia para as massas. Em que
os astros do esporte são oferecidos em sacrifício para confirmar a tese central:
“Sem dor, sem ganho”.
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Essa é a gênese daquilo que Theodor Adorno definia como “concepção
fascista de vida”. Segundo ele, com nove traços característicos – Leia ADORNO,
Theodor. Estudos Sobre a Personalidade Autoritária, Editora Unesp, 2019.
Que o filme Goat nos descreve:
1- Convencionalismo
A inclinação para o fascismo é característica de quem gravita em
torno das classes médias, com rígida adesão ao convencional ou ao “bom senso”
seja estética ou intelectualmente. “Deus, Futebol e Família” são repetidos como
mantra dentro desse convencionalismo do bom senso de classe média. Mostrando as
perigosas ligações com fanatismo religioso;
2- Submissão Acrítica
A dor não é para ser questionada, mas suportada. Como prova de
foco e autoconfiança. Atitude remissiva e acrítica nas relações de autoridade
moral, idealizada no âmago do próprio grupo.
3- Agressividade Autoritária
É a consequência dos itens anteriores - facilidade de espreitar,
punir, repelir, condenar ou punir quem violar as normas convencionais.
4- Destruição e cinismo
Características presentes em Isaiah White e sua equipe de cruéis treinadores
que parecem partilhar uma hostilidade difusa, um desprezo por tudo que é
humano. Um pessimismo universal que vê o mundo como uma selva onde os seres
humanos são considerados essencialmente egoístas, maus e estúpidos.
5- Poder e Rudeza
Importância exagerada com as relações assimétricas entre
forte-fraco, líder-liderado, domínio-submissão etc. As demonstrações exteriores
de força (andar armado, tatuagens agressivas, corpo meticulosamente “sarado” e
musculoso e demais expressões de agressividade – cabeça raspada, linguagem
agressiva etc.) parecer esconder a falta de força interior, a fraqueza do ego
que se submete acriticamente ao Convencionalismo e à submissão acrítica vistos
acima.
6- Estereotipia
Reduzir a complexidade dos problemas mediante reduções simplistas.
Slogans absurdos, mas que têm o mérito de ser claros, são os preferidos. Como,
por exemplo, “No Pain, No Gain!”. A repetição como um mantra garante a proteção
do indivíduo diante da ambiguidade e complexidade do real.
7- Superstição
Isso cria um halo místico em torno de líderes e a aproximação do
rígido treinamento esportivo dom Deus e a religião. Até chegar à simbologia
ocultista – principalmente na sequência final.
8- Anti-intracepção
Como o protofascista possui um ego frágil e, por isso, dotado de
um espírito gregário de se submeter ao grupo e a líderes, tem medo da
introspecção: medo de ficar sozinho, meditativo, com seus próprios pensamentos.
Por isso, após os intensos treinamentos que envolvem dor e submissão, não há
descanso: mas festas e sexo.
9- Sexo
Uma atitude exageradamente preocupada no protofascista em relação
à sexualidade. Sexo deixa de ser uma forma de relacionamento íntimo e privado
para se tornar demonstração pública de poder e riqueza – a contiguidade entre
potência sexual e sucesso esportivo.
Ficha Técnica |
Título: Goat |
Diretor: Justing Tipping |
Roteiro: Skip
Bronkie, Zack Akers, Justin Tipping |
Elenco: Marlon
Wayans, Tyriq Withers, Julia Fox |
Produção: Monkeypaw
Productions |
Distribuição: Universal Pictures
International (UPI) |
Ano: 2025 |
País: EUA |