Algumas
vezes não é a casa que está assombrada, mas as pessoas dentro dela. Inspirado
num “grimório”, uma coleção medieval de feitiços, rituais e encantamentos
mágicos cabalísticos chamado “O Livro de Abramelin” (escrito entre os séculos XIV e XV), A Dark Song (2016) é um conto sobre a aceitação da perda e da morte.
Duas pessoas em uma remota casa no interior do País de Gales ficarão trancados
por meses executando um intrincado ritual que os forçará aos limites físicos e
psicológicos. Ambos lidando com o luto – a perda de um filho e a perda do
interesse na própria vida. Um ritual gnóstico e herético: não se trata de lidar com o
divino, mas abrir portais para alguém ou algo totalmente desconhecido que pode
ser reflexo de nós mesmos ou de estranhas entidades. E sabermos reconhecer que,
sejam “bons” ou “maus”, todos não são filho de Deus, mas prisioneiros de uma
mesma Criação. Filme sugerido (insistentemente...) pelo nosso leitor Felipe Resende.
Podemos acreditar num mundo em
que Deus, na sua infinita bondade, faz a verdade e o bem se imporem através de
caminhos misteriosos, mesmo que à primeira vista pareçam incertos, caóticos e
confusos.
Ou podemos acreditar num mundo
onde o Bem e o Mal lutam com resultados incertos e que, ocasionalmente, a
maldade vence o bem. Mas, mesmo assim, sabemos que há uma ordem divina superior
que, no final dos tempos, punirá os maus e recompensará os justos.
Mas também podemos ver a própria
Criação como má, e os supostamente “bons” e “maus” desse mundo são como
prisioneiros de uma armadilha cósmica criada por aqueles caminhos misteriosos
de Deus.
A ética cristã do amor ao
próximo, compaixão e perdão pode ser interpretada a partir desses três sistemas
básicos grosseiramente descritos acima: devemos ter compaixão e saber perdoar
por obediência a Deus ou para, no final, sermos premiados com o próprio perdão
divino.
Ou, diferentemente, compreendemos
que perdoar e amar ao próximo nada tem a ver com a questão moral do certo e
errado – se o próximo é tão prisioneiro nesse mundo quanto eu, nada mais nos
resta do que o respeito mútuo e cooperação como companheiros de uma mesma cela,
em busca de alguma saída.
Certamente o filme irlandês A Dark Song (2016) se inscreve nesse
terceiro sistema: um olhar gnóstico para a magia no qual anjos e demônios não
são figurados nem como “conflitos interiores”, e nem como uma luta
aterrorizante dentro dos cânones do gênero do terror.
O “Livro de Abramelin”
Inspirado num “grimório”, uma
coleção medieval de feitiços, rituais e encantamentos mágicos cabalísticos
chamado “O Livro de Abramelin” (escrito entre os séculos XIV e XV), A Dark Song é um conto sobre a aceitação
da perda e da morte. Duas pessoas em uma remota casa no interior do País de
Gales ficarão trancados por meses executando um intrincado ritual que os
forçará aos limites físicos e psicológicos. Ambos lidando com o luto – a perda
de um filho ou a perda do interesse na própria vida.
Por isso, A Dark Song é um dos filmes de terror mais interessantes dos
últimos tempos: um filme com intensidade crua, mas sem a violência gráfica
tradicional do gênero – sangue, violência ou efeitos especiais com monstros,
demônios e espíritos. Em uma narrativa lenta (“slow burn”), a jornada
espiritual é realista, ambígua, porque levará o espectador à dúvida de tudo
aquilo que acompanha: há de fato alguma manifestação mágica ou fantástica? Ou
apenas uma relação de abuso e poder entre duas pessoas?
É claro que tudo isso será
respondido nos alucinantes 20 minutos finais – o que chamamos de “bem” e “mal”
são resultantes de um único Mal: a própria Criação. Só nos restando a
capacidade do perdão e trilhar uma arriscada jornada espiritual que nos coloque
para fora desse mundo.
O Filme
Seguimos a história de Sophia
(Catherine Walker) que logo nas primeiras cenas do filme fecha o aluguel com um
corretor de imóveis: um antigo casarão em uma zona rural remota no País de
Gales. Em seguida também acompanhamos Sophia contratando os serviços de Joseph
Solomon (Steve Oram), um especialista em ocultismo. Ele é grosseiro, alcoólatra e dotado de
um senso de humor cínico. Mas, é tudo o que ela tem em mãos para tentar dar
conta de seu buraco psíquico: o luto pelo falecimento de seu pequeno filho.
Sophia quer entrar em contato
mais uma vez com seu falecido filho. Para isso, ela prepara-se para um ritual
longo e cansativo que irá durar um ano inteiro no interior daquele casarão.
Ficarão incomunicáveis com o mundo exterior, e cada cômodo daquela mansão de
converterá em câmaras secretas de mundos espirituais ocultos.
Eles terão que seguir à risca “O
Abramelin”, um obscuro ritual “que é essencialmente uma viagem. Mas isso é uma
metáfora pobre para representar o que iniciaremos”, tenta explicar Joseph para
a sua “cliente”. O longo ritual mostrado no filme (certamente a mais elaborada
sessão espírita jamais capturada na tela cinematográfica) foi ensinado na
Antiguidade pelo mago Abramelin na cidade perdida de Arachi, no Egito.
Como mostrado no filme, as preparações incluem um estilo de vida austero, um regime diário de
oração e as privações de todos os prazeres para a segurança do
praticante. O objetivo é invocar o "sagrado anjo guardião” e criar uma
junção entre o espírito pessoal com a alma do mago para ganhar feitiços e
conhecimento oculto.
O ritual Abramelin
Em A Dark Song, o ritual é retratado vividamente e a
natureza repetitiva dos intrincados detalhes de cada oração e localização é
descrita com precisão absoluta. Cada quarto e espaço da mansão é usado por
Joseph de acordo com o velho grimório medieval, a fim de produzir
inospitalidade e um sentimento sinistro em cada fase do processo de convocar o
sagrado anjo guardião de Sophia. Elementos naturais e riscos e figuras
geométricas desenhados no piso são usados para reforçar a importância do rigor
do ritual e o aspecto religioso.
Como resultado, a representação dos ensinamentos cabalísticos de
Abramelin é dolorosamente metódico e coloca o movimento de cada personagem na
corda bamba. Praticamente, qualquer erro é uma perda terrível para os
praticantes.
No filme o horror surge de duas formas: primeiro, os rituais próprios
são psicologicamente – e às vezes fisicamente – desagradáveis para
Sophia. Uma envolve ajoelhando-se em uma posição desconfortável sem
mover-se (ou comer e beber) por vários dias. Outra é de natureza
sexual. Cada um é mais intenso do que o anterior.
O segundo vem do fato de que Joseph parece indigno de confiança. Ele
quer realmente ajudá-la? Ou apenas manipula um jogo abusivo e
demente? Sempre desleixado, vestido com folclóricas roupas rituais e com
frequência alcoolizado, ele não parece ser um especialista em ocultismo. Como
também parece improvável um sociopata como Joseph ser exatamente o tipo de pessoa a
tornar-se autodidata em assuntos do Oculto. Nunca temos certeza se Joseph
é legítimo ou não até as sequências finais.
“Isso é Gnosticismo...” – Alerta de spoilers à frente
Nas sequências iniciais explicativas sobre a natureza do “Abramelin”,
Joseph procura tirar da cabeça de Sophia todos os clichês de Internet sobre
Ocultismo e Cabala: “você está procurando merda na Internet... a Cabala é uma
gramática, uma estrutura. Estamos fazendo algo ainda mais escuro... Isso é
Gnosticismo”.
Claro que nessa linha de diálogo, Joseph refere-se ao Gnosticismo como
sinônimo de heresia – não se trata aqui de lidar com algo divino, mas abrir
portais para alguém ou algo totalmente desconhecido que pode ser, ao mesmo
tempo, reflexo de nós mesmos ou de estranhas entidades. A Dark Song está profundmente enraizado no espectro branco do
ocultismo. E o ritual Abramelin é exatamente um dispositivo no qual os
personagens expressam seus medos para obterem uma outra razão para viver.
O que obtemos da vida está profundamente conectado com o que está por
trás das nossas intenções. E para Sophia (nada mais gnóstico que o nome da
protagonista – o aeon que decaiu no mundo material, o aspecto feminino de Deus
e da alma humana, mas que conseguiu fazer o caminho de volta à Plenitude
deixando essa sabedoria para os homens), toda a sua sofrida jornada espiritual
foi em busca do poder de perdoar os assassinos de seu filho.
Por isso, A Dark Song é um dos
poucos filmes que conseguiu entender o conceito de magia – não se trata de
poder, arma, controle ou dominação, como Sophia compreendia através do seu
conhecimento do Ocultismo via Internet.
Mas de anular todas as formações reativas do Ego para finalmente viver
aquilo que se convencionou chamar de “ética cristã”. Não por uma questão moral
ou exigência divina – ser “bom”. Mas como consciência de que, sejam bons e
maus, somos todos iguais nesse mundo – prisioneiros de uma existência na qual
a ascese nas magias e rituais é o caminho para repetirmos o caminho de volta à
Plenitude feito por Sophia.
Ficha Técnica
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Título: A Dark Song
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Diretor: Liam Gavim
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Roteiro: Liam Gavim
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Elenco: Steve Oram, Catherine Walker, Susan Loughane
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Produção: Samson Films, Tall Man Films
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Distribuição: Kaleidoscope Film Distribution
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Ano: 2016
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País: Irlanda, Reino Unido
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