segunda-feira, outubro 01, 2018

Para grande mídia, cárcere do Lula é o Gabinete do Dr. Caligari


Desde o impeachment de 2016, aos poucos as bombas semióticas na grande mídia foram dando lugar a estratégias narrativas: como transformar uma má notícia em um “conto maravilhoso” (Vladimir Propp) em plenas narrativas não ficcionais jornalísticas? Narrativas em que verossimilhança e relações de causalidade são mandadas às favas – transmutações, pensamento animista, magia, forças sobrenaturais, ação à distância por princípio de semelhança etc. Em meio ao mal estar da grande mídia em ver, mais uma vez, o PT ir ao segundo turno eleitoral (apesar das diversas mortes anunciadas do partido e de Lula), o jornal "Estadão" nos brindou com mais uma dessas narrativas fantásticas: tal como o clássico expressionista alemão de terror “O Gabinete do Dr. Caligari” (1920), uma colunista alerta que Lula usa poderes hipnóticos e paranormais – de dentro da prisão, Lula controla mídia, inventou Bolsonaro e o anti-petismo para depois derrota-lo... e Haddad é o seu Cesare – hipnotizado, às vezes até emula o “chefe” com a voz rouca em carros de som. Grande mídia revela agora seu expertise narratológico – só mesmo a semiótica de Julien Greimas para desmontar essa bomba narratológica.



Nunca ouviu-se ou leu-se tanto a palavra “narrativa”. Virou uma palavra da moda. Outrora restrita ao campo ficcional (filmes, telenovelas, literatura etc.), agora ganhou uma amplitude para campos não-ficcionais como jornalismo, mídia, políticos, partidos e assim por diante. Dessa forma, a sociedade transforma-se num campo de luta no qual cada grupo ou indivíduo tenta impor sua narrativa.

O interessante nesse conceito é que narrativa não é uma simples descrição dos fatos em sequência, mas uma modelização da realidade, uma tradução em signos para criar correlações. E no caso da semiótica greimasiana (de Julien Greimas, 1917-1992), uma mudança de estado sofrida ou executada por sujeitos – os chamados “actantes”, as relações funcionais entre os atores que executam ou sofrem uma ação na narrativa.

Partindo dessa diferença entre actantes e atores, Greimas criou aquilo que se chama de “esquema narrativo canônico” que poderia ser sintetizado da seguinte forma: alguém (Sujeito) deseja alcançar algo (objeto de valor, o elemento central, desejo), na jornada ajudado por alguém (ajudante) e é atrapalhado por algo/alguém (oponente). Com mais dois outros elementos em cena: o destinador (quem ou o quê empurrou o herói para o objetivo) e o destinatário: quem ou o quê recebe o objeto de valor quando for conquistado.

Uma estrutura universal, presente tanto nas narrativas ficcionais quanto não ficcionais. Mas com uma importante diferença: enquanto as narrativas ficcionais seguem a estrutura do “conto maravilhoso” (no sentido dado pelo estruturalista russo Vladimir Propp – 1895-1970), as não ficcionais fazem uma tradução dos fatos reais em signos, modelando como informação.

Propp e Greimas

Das bombas semióticas às bombas narrativas


Este Cinegnose vem observando que, desde o impeachment de 2016, no qual a guerra híbrida brasileira cumpriu o seu principal objetivo (o residual é a atual polarização política visando entregar ao vencedor do pleito um país ingovernável – clique aqui), as bombas semióticas vêm sendo substituídas por táticas narratológicas de transformação dos textos jornalísticos (seja informativo, opinativo ou interpretativo) em verdadeiros “contos maravilhosos”.

Verdadeiras narrativas mitônomas em que verossimilhança e relações de causalidade são mandadas às favas – narrativas que envolvem transmutações, pensamento animista, magia, forças sobrenaturais, ação à distância por princípio de semelhança etc. Tudo isso em narrativas supostamente não ficcionais.

Em postagens anteriores analisamos seis desses contos maravilhosos em telejornais, numa época em que a grande mídia ainda tentava levar nas costas o governo Temer, transformando cada notícia ruim em fábulas: demitidos que magicamente veem a força de trabalho se transmutando em capital; uma moradora de rua que viveu o conto do presépio vivo no Natal; o ex-executivo demitido e morador de rua que virou microempreendedor cooperado; a falta de dinheiro que faz repensar os valores consumistas no Natal; o conto vintage da cozinheira “que manda brasa” na cozinha com fogão à lenha, sem dinheiro para ter um bujão de gás; e a crise econômica que magicamente se transmuta em alta do poder de compra – clique aqui e aqui.

Com todo esse  expertise narratológico de transformar notícias ruins em contos maravilhosos de magia e superação, a grande mídia se defronta com o seu pior momento após o glorioso sucesso do impeachment de 2016: a canoa está virando – além da crise econômica e desemprego, todas as estratégias para criar um cenário eleitoral dirigido, controlado e engessado (prazos apertados para as campanhas, Lava Jato, Lula no cárcere, achincalhamento midiático diário da Política e dos políticos etc.) estão fazendo água: o cada vez mais provável segundo turno com Bolsonaro X Haddad. Para inquietação da jornalista Monica Bergamo, “como o PT conseguiu ressurgir das cinzas?”.

Contos maravilhosos: o ex-executivo morador de rua que virou empreendedor

Dr. Caligari, o mentalizador


Hora de, mais uma vez, entrar em ação a estratégia semiótica narrativa do “conto maravilhoso”. Somente uma explicação fantástica, mágica e sobrenatural para dar conta do naufrágio de todos aqueles que embarcaram na canoa do impeachment – ele próprio um conto maravilhoso: magicamente, tal como uma varinha de condão, prometia transmutar o País numa economia de primeiro mundo, de empreendedores livres dos impostos, entulhos estatais e trabalhistas.

Vera Magalhães, em sua coluna no Estadão, publicou o artigo “Um País como Refém” que faria Propp e Greimas ficarem de boca aberta (clique aqui): o País inteiro estaria à mercê de um desfecho eleitoral que foi planejado e manobrado por Lula. De dentro da prisão em Curitiba. Mas não por conta de uma estratégia política racional. Mas por um poder mágico de mentalizar personagens e acontecimentos, e fazê-los acontecer. Influenciando por meio de poderes hipnóticos e paranormais até adversários!

Seguindo a narrativa canônica de Greimas, Vera Magalhães busca o “objeto de valor”: evitar que o País fique mais quatro anos no cativeiro, refém dos poderes sobrenaturais de alguém que está igualmente preso.

Essa é a narrativa: Lula escolheu Bolsonaro como adversário e conseguirá levá-lo ao segundo turno. Deliberadamente Temer ajudou Lula, afundado na crise e denúncias de corrupção para que “esquecessem de Dilma e tivessem saudades daquele que a inventou”.

O plano ideal vislumbrava que Bolsonaro se manteria resiliente durante a campanha, fruto justamente da outra face da doença legada pelo PT ao País nos últimos 16 anos: o antipetismo cego”. Ou seja, com visão do futuro, Lula teria criado o anti-petismo para ele próprio derrota-lo...

E mais: à distância, Lula influencia a mídia a poupar Bolsonaro para “Levar o barco placidamente ao encontro marcado no segundo turno, e deixar a rejeição a Bolsonaro ser inflada por ele mesmo e seus aliados, sob o beneplácito entusiasmado de uma elite estudada e endinheirada que parece em transe hipnótico”.


O esquizo pensamento neoconservador


Lula é um “Dr. Caligari” do clássico filme de terror de 1920 do expressionismo alemão. E seu Cesare sonâmbulo, sob controle de seus poderes hipnóticos, é Fernando Haddad – pior, sob transe hipnótico e com dupla personalidade: “fala manso nos ambientes em que precisa se mostrar moderado e fala rouco e grosso quando emula o chefe em cima do caminhão de som”.

Como no script greimasiano, quem são os actantes que atrapalham a conquista do objeto de valor?: os “poderes hipnóticos” do “chefe” Lula, o Nordeste e os segmentos de baixa renda. E o quê ajudará Vera Magalhães a não ver o País mais quatro anos no cativeiro?: “A maioria da população que não está entrincheirada em nenhum dos extremos regressivos ameaçadores à democracia...”.

Nessa narrativa fantástica que transforma Lula em um perigoso mentalizador capaz de perpetrar ações telecinéticas, o que também chama a atenção é um traço esquizoide do atual pensamento neoconservador, já discutido em postagem anterior: a incapacidade de compreender metáforas ou simbolismos por não conseguir articular o nível meta da linguagem – clique aqui.

Assim como paulistanos viam nas ciclovias pintadas de vermelho uma propaganda subliminar do PT ou na bandeira dos 100 anos da imigração japonesa no Brasil (uma bola vermelha no losango amarelo) a ameaça da bandeira comunista dominando o País, da mesma forma o cálculo político, o “wishiful thinking” do PT, em ter Bolsonaro no segundo turno é vista como uma conspiratória maquinação para-psíquica do “chefe” prisioneiro.

Assim como a galhofa de Haddad imitando Lula em cima do carro de som é a evidência de uma sinistra “dupla personalidade” do Cesare do Dr. Caligari: Lula.

Na verdade, o artigo de Vera Magalhães é a versão impressa na grande mídia de postagens alucinadas em redes sociais que colocam um texto de Breno Altman (veja imagem acima), em que defende o “poder pedagógico” para a democracia brasileira uma derrota de Bolsonaro, como prova de que Lula e o PT criaram Bolsonaro... para derrotá-lo depois.

É claro que esse “conto maravilhoso” envolvendo poderes paranormais e hipnóticos é a falsa consciência que quer esconder uma dura realidade: o bode que o golpe de 2016 colocou no meio da sala, para criar polarização política, ódio e desestabilizar um governo eleito, berra cada vez mais alto e incomoda. Seus criadores perderam o controle da criatura que agora baixa a cabeça e aponta os chifres para todos.

E quem é o culpado? Claro, o sinistro Dr. Caligari da Política: Lula.  

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