Desde o impeachment de 2016, aos poucos as bombas
semióticas na grande mídia foram dando lugar a estratégias narrativas: como
transformar uma má notícia em um “conto maravilhoso” (Vladimir Propp) em plenas
narrativas não ficcionais jornalísticas? Narrativas em que verossimilhança e
relações de causalidade são mandadas às favas – transmutações, pensamento
animista, magia, forças sobrenaturais, ação à distância por princípio de
semelhança etc. Em meio ao mal estar da grande mídia em ver, mais uma vez, o PT
ir ao segundo turno eleitoral (apesar das diversas mortes anunciadas do partido
e de Lula), o jornal "Estadão" nos brindou com mais uma dessas narrativas fantásticas:
tal como o clássico expressionista alemão de terror “O Gabinete do Dr.
Caligari” (1920), uma colunista alerta que Lula usa poderes hipnóticos e
paranormais – de dentro da prisão, Lula controla mídia, inventou Bolsonaro e o
anti-petismo para depois derrota-lo... e Haddad é o seu Cesare – hipnotizado,
às vezes até emula o “chefe” com a voz rouca em carros de som. Grande mídia
revela agora seu expertise narratológico – só mesmo a semiótica de Julien Greimas para
desmontar essa bomba narratológica.
Nunca ouviu-se ou leu-se tanto a
palavra “narrativa”. Virou uma palavra da moda. Outrora restrita ao campo
ficcional (filmes, telenovelas, literatura etc.), agora ganhou uma amplitude
para campos não-ficcionais como jornalismo, mídia, políticos, partidos e assim
por diante. Dessa forma, a sociedade transforma-se num campo de luta no qual
cada grupo ou indivíduo tenta impor sua narrativa.
O interessante nesse conceito é que
narrativa não é uma simples descrição dos fatos em sequência, mas uma
modelização da realidade, uma tradução em signos para criar correlações. E no
caso da semiótica greimasiana (de Julien Greimas, 1917-1992), uma mudança de
estado sofrida ou executada por sujeitos – os chamados “actantes”, as relações
funcionais entre os atores que executam ou sofrem uma ação na narrativa.
Partindo dessa diferença entre actantes
e atores, Greimas criou aquilo que se chama de “esquema narrativo canônico” que
poderia ser sintetizado da seguinte forma: alguém (Sujeito) deseja alcançar
algo (objeto de valor, o elemento central, desejo), na jornada ajudado por
alguém (ajudante) e é atrapalhado por algo/alguém (oponente). Com mais dois
outros elementos em cena: o destinador (quem ou o quê empurrou o herói para o
objetivo) e o destinatário: quem ou o quê recebe o objeto de valor quando for
conquistado.
Uma estrutura universal, presente
tanto nas narrativas ficcionais quanto não ficcionais. Mas com uma importante
diferença: enquanto as narrativas ficcionais seguem a estrutura do “conto
maravilhoso” (no sentido dado pelo estruturalista russo Vladimir Propp –
1895-1970), as não ficcionais fazem uma tradução dos fatos reais em signos,
modelando como informação.
Propp e Greimas |
Das bombas semióticas às bombas narrativas
Este Cinegnose vem observando que, desde o impeachment de 2016, no qual
a guerra híbrida brasileira cumpriu o seu principal objetivo (o residual é a
atual polarização política visando entregar ao vencedor do pleito um país
ingovernável – clique aqui), as bombas semióticas vêm sendo substituídas por
táticas narratológicas de transformação dos textos jornalísticos (seja
informativo, opinativo ou interpretativo) em verdadeiros “contos maravilhosos”.
Verdadeiras narrativas mitônomas em
que verossimilhança e relações de causalidade são mandadas às favas –
narrativas que envolvem transmutações, pensamento animista, magia, forças
sobrenaturais, ação à distância por princípio de semelhança etc. Tudo isso em
narrativas supostamente não ficcionais.
Em postagens anteriores analisamos
seis desses contos maravilhosos em telejornais, numa época em que a grande
mídia ainda tentava levar nas costas o governo Temer, transformando cada
notícia ruim em fábulas: demitidos que magicamente veem a força de trabalho se
transmutando em capital; uma moradora de rua que viveu o conto do presépio vivo
no Natal; o ex-executivo demitido e morador de rua que virou microempreendedor
cooperado; a falta de dinheiro que faz repensar os valores consumistas no
Natal; o conto vintage da cozinheira “que manda brasa” na cozinha com fogão à lenha,
sem dinheiro para ter um bujão de gás; e a crise econômica que magicamente se
transmuta em alta do poder de compra – clique aqui e aqui.
Com todo esse expertise narratológico de
transformar notícias ruins em contos maravilhosos de magia e superação, a
grande mídia se defronta com o seu pior momento após o glorioso sucesso do
impeachment de 2016: a canoa está virando – além da crise econômica e
desemprego, todas as estratégias para criar um cenário eleitoral dirigido, controlado
e engessado (prazos apertados para as campanhas, Lava Jato, Lula no cárcere,
achincalhamento midiático diário da Política e dos políticos etc.) estão
fazendo água: o cada vez mais provável segundo turno com Bolsonaro X Haddad.
Para inquietação da jornalista Monica Bergamo, “como o PT conseguiu ressurgir
das cinzas?”.
Contos maravilhosos: o ex-executivo morador de rua que virou empreendedor |
Dr. Caligari, o mentalizador
Hora de, mais uma vez, entrar em ação
a estratégia semiótica narrativa do “conto maravilhoso”. Somente uma explicação
fantástica, mágica e sobrenatural para dar conta do naufrágio de todos aqueles
que embarcaram na canoa do impeachment – ele próprio um conto maravilhoso:
magicamente, tal como uma varinha de condão, prometia transmutar o País numa
economia de primeiro mundo, de empreendedores livres dos impostos, entulhos
estatais e trabalhistas.
Vera Magalhães, em sua coluna no Estadão, publicou o artigo “Um País como
Refém” que faria Propp e Greimas ficarem de boca aberta (clique aqui): o País inteiro estaria à mercê de um desfecho
eleitoral que foi planejado e manobrado por Lula. De dentro da prisão em
Curitiba. Mas não por conta de uma estratégia política racional. Mas por um
poder mágico de mentalizar personagens e acontecimentos, e fazê-los acontecer.
Influenciando por meio de poderes hipnóticos e paranormais até adversários!
Seguindo a narrativa canônica de
Greimas, Vera Magalhães busca o “objeto de valor”: evitar que o País fique mais
quatro anos no cativeiro, refém dos poderes sobrenaturais de alguém que está
igualmente preso.
Essa é a narrativa: Lula escolheu
Bolsonaro como adversário e conseguirá levá-lo ao segundo turno.
Deliberadamente Temer ajudou Lula, afundado na crise e denúncias de corrupção
para que “esquecessem de Dilma e tivessem saudades daquele que a inventou”.
“O plano ideal vislumbrava que Bolsonaro se
manteria resiliente durante a campanha, fruto justamente da outra face da
doença legada pelo PT ao País nos últimos 16 anos: o antipetismo cego”. Ou seja, com visão do
futuro, Lula teria criado o anti-petismo para ele próprio derrota-lo...
E mais: à distância, Lula
influencia a mídia a poupar Bolsonaro para “Levar o barco
placidamente ao encontro marcado no segundo turno, e deixar a rejeição a
Bolsonaro ser inflada por ele mesmo e seus aliados, sob o beneplácito
entusiasmado de uma elite estudada e endinheirada que parece em transe
hipnótico”.
O esquizo pensamento neoconservador
Lula é um “Dr. Caligari” do
clássico filme de terror de 1920 do expressionismo alemão. E seu Cesare
sonâmbulo, sob controle de seus poderes hipnóticos, é Fernando Haddad – pior,
sob transe hipnótico e com dupla personalidade: “fala manso nos ambientes em
que precisa se mostrar moderado e fala rouco e grosso quando emula o chefe em
cima do caminhão de som”.
Como no script
greimasiano, quem são os actantes que atrapalham a conquista do objeto de
valor?: os “poderes hipnóticos” do “chefe” Lula, o Nordeste e os segmentos de
baixa renda. E o quê ajudará Vera Magalhães a não ver o País mais quatro anos
no cativeiro?: “A maioria da população que não está entrincheirada em nenhum
dos extremos regressivos ameaçadores à democracia...”.
Nessa narrativa fantástica que
transforma Lula em um perigoso mentalizador capaz de perpetrar ações
telecinéticas, o que também chama a atenção é um traço esquizoide do atual
pensamento neoconservador, já discutido em postagem anterior: a incapacidade de
compreender metáforas ou simbolismos por não conseguir articular o nível meta
da linguagem – clique aqui.
Assim como paulistanos viam nas
ciclovias pintadas de vermelho uma propaganda subliminar do PT ou na bandeira
dos 100 anos da imigração japonesa no Brasil (uma bola vermelha no losango
amarelo) a ameaça da bandeira comunista dominando o País, da mesma forma o cálculo
político, o “wishiful thinking” do PT, em ter Bolsonaro no segundo turno é
vista como uma conspiratória maquinação para-psíquica do “chefe” prisioneiro.
Assim como a galhofa de Haddad
imitando Lula em cima do carro de som é a evidência de uma sinistra “dupla
personalidade” do Cesare do Dr. Caligari: Lula.
Na verdade, o artigo de Vera Magalhães
é a versão impressa na grande mídia de postagens alucinadas em redes sociais
que colocam um texto de Breno Altman (veja imagem acima), em que defende o “poder pedagógico” para
a democracia brasileira uma derrota de Bolsonaro, como prova de que Lula e o PT
criaram Bolsonaro... para derrotá-lo depois.
É claro que esse “conto maravilhoso”
envolvendo poderes paranormais e hipnóticos é a falsa consciência que quer
esconder uma dura realidade: o bode que o golpe de 2016 colocou no meio da sala,
para criar polarização política, ódio e desestabilizar um governo eleito, berra
cada vez mais alto e incomoda. Seus criadores perderam o controle da criatura
que agora baixa a cabeça e aponta os chifres para todos.
E quem é o culpado? Claro, o sinistro Dr. Caligari da Política: Lula.
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