O filme checo “Insanidade”
(“Silení, 2005) é para poucos pela sua alta carga de niilismo e humor negro. O
diretor Jan Svankmajer volta à crítica da sociedade de consumo do filme
anterior “Little Otik” (2000), mas dessa vez por um viés político e
ontológico: a história humana é comparada a um problema de gestão de um
manicômio no qual há duas formas de fazê-lo - ou a liberdade absoluta na qual o
prazer e orgia se aproximam do crime e da morte, ou o totalitarismo da dor e
castigo que também flerta com a morte. Um jovem tem recorrentes pesadelos até
encontrar um milionário excêntrico que emula o próprio Marquês de Sade. Ele
apresenta o médico gestor de um manicômio que apresenta uma técnica supostamente
revolucionária que irá livrá-lo dos seus pesadelos. “Insanidade” é uma fábula sobre
como a História até aqui não conseguiu conciliar Eros e Thanatos, prazer e
morte. E como o capitalismo é mais uma forma de gerir essa loucura.
Uma camisa desce do cabide, rasteja
pelo chão para escalar a porta até a fechadura e girar a chave por sua própria
vontade, enquanto seu assustado dono pede que pare. A camisa consegue o
intento, abre a porta e dela aparece dois corpulentos enfermeiros segurando uma
camisa de força, para tentar arrastar o nosso herói para um asilo.
Essa fusão entre live action e animação é a marca registrada do diretor surrealista checo
Jan Svankmajer de filmes como Alice e
o já analisado filme nesse Cinegnose,
Little Otik (2000) – um olhar surreal
sobre a cultura do consumo baseado na regressão infantil à compulsão oral – clique aqui.
Em Insanidade
(Silení, 2005) Svankmajer volta à
carga contra a sociedade de consumo, mas agora com um viés mais político e
ontológico: a história humana como o drama da gestão de um manicômio no qual há
dois modos institucionais de fazê-lo: ou encoraja a liberdade absoluta, ou
então o método obsoleto de comprovada eficiência de controle combinado com
punição. Dois extremos.
Mas para o diretor há um terceiro
modelo, que seria o manicômio no qual vivemos hoje: uma sociedade que reúne os
piores excessos daqueles dois modelos extremos.
Para figurar essa tese, Svankmajer
livremente se inspirou em dois contos de Edgard Allan Poe (“O Sistema do Doutor
Tarr e do Professor Fether” e “O Enterro Prematuro”) e nos escritos de Marquês
de Sade. No prólogo do filme, vemos o diretor definindo sua obra como
“um filme de terror, com toda a decadência própria do gênero” – a combinação do
horror metafísico de Allan Poe com a decadência aristocrática de Sade.
Insanidade é
um filme para poucos pela sua carga de niilismo e humor negro – simultaneamente
instiga o pensamento, o horror e o riso. Ao ver o capitalismo como mais uma
forma de gerenciar o hospício da história humana, parece que Svankmajer
concorda com o pensador Herbert Marcuse de que toda revolução é uma revolução
traída: haveria no psiquismo humano um elemento de autoderrota ao não conseguir
resolver o conflito entre Eros (o princípio do prazer) e Thatos (o princípio da
morte) - leia MARCUSE, Herbert, Eros e Civilçização, LTC, 1982.
O libertino Sade e o horror
sistemático e metódico de Allan Poe são os polos que Insanidade trabalha, polos inconciliáveis e intercambiáveis: a cada
revolução, a cada golpe de Estado, a cada reforma, ou Eros ou Thanatos assumem
nos seus aspectos mais extremos e incontroláveis. E Svankmajer vai transformar
um hospício qualquer num distante lugarejo no microcosmo desse conflito
psíquico que não alcança a redenção.
O Filme
Insanidade
abre com o protagonista Jean Berlot (Pavel Liska) vivendo um pesadelo no qual
dois corpulentos enfermeiros tentam coloca-lo numa camisa de força para
arrastá-lo a um hospício. Jean resiste e destrói todo o quarto de uma pensão,
até ser despertado. É um jovem pobre. Como pagará os prejuízos para o
proprietário da pensão?
Acaba aceitando a generosidade de um
hóspede chamado “Marquês” (Jan Triska), um rico excêntrico que se veste como um
aristocrata do século XVIII e seu meio de transporte é uma luxuosa carroça
puxada a cavalos. Marquês paga os prejuízos e o convida para conhecer sua
propriedade. Enquanto Jean teme que esses pesadelos recorrentes de ser
prisioneiro em um manicômio o faça ter o mesmo destino da sua mãe, que morreu
louca em um hospício.
Já na imensa propriedade do Marquês,
furtivamente Jean testemunha seu anfitrião em um estranho ritual no qual
martela pregos em uma estatua de Cristo crucificado, entre outras profanações,
em meio a uma orgia que faz lembrar o filme Saló ou Os 120 Dias de Sodoma de Pasolini. Jean reconhece que uma das participantes
mais relutantes é Carlotta (Anna Geislerová), hóspede da pensão e que trabalha
em um manicômio nas proximidades.
Após simular sua própria morte, o
Marquês convence o jovem Jean a participar de uma terapia supostamente revolucionária
no manicômio local, supervisionada pelo Dr. Coulmiere (Martin Huba) – os
próprios pacientes aplicam seus tratamentos como, por exemplo, a terapia
artística de jogar tinta sobre modelos obesas nuas.
O que torna ainda a narrativa mais
estranha e surreal é que as sequências são pontuadas por animações grotescas em
stop-motion de línguas, olhos,
cérebros e fatias de carne bovinas que se arrastam e dançam como se brevemente
fossem ativadas por centelhas de vida. Como se relembrassem que todas as ações
humanas caricatas narradas pelo filme fossem nada mais do que danças de postas
de carne, destinadas à morte e apodrecimento.
Mas tudo não é o que parece. Em
conluio com o Marquês, Coulmiere encenou um golpe de Estado naquele manicômio,
trancando o verdadeiro diretor (Dr. Murloppe – Jaroslav Dusek) e sua equipe no
porão. Para comemorar o aniversário da sua perfídia, o Marquês sugere um
entretenimento teatral para os internos: uma recriação da famosa tela de
Delacroix (“A Liberdade Guiando o Povo”). Claro, com requintes das orgias
sadomasoquistas.
Apaixonado por Charlotte (acredita que
ela é apenas uma doce jovem, vítima da loucura do Marquês), Jean ajuda ela a
libertar Murloppe para retomar o poder da instituição. Porém, da pior maneira
descobrirá que o outro doutor tem uma abordagem sobre a doença mental bem
diferente: o controle através da dor e do castigo.
Eros versus Thanatos
Rei morto, rei posto. Insanidade
contrapõe duas ordens, que sucedem, uma golpeando a outra: de um lado a ordem
dos libertinos; e do outro a ordem totalitária. Duas ordens absolutamente niilistas
– a primeira a libertinagem pela libertinagem, a orgia como um fim em si mesma.
Nega Cristo e desafia Deus por ter dado um corpo ao homem (sensual e prazeroso)
mas interdito pela noção de culpa e pecado. Mas faz o prazer se aproximar do
crime e da morte.
E a segunda ordem, o controle
totalitário do corpo, interditando qualquer forma de prazer sob o pretexto de curar
e libertar a mente dos caprichos da carne.
Mas Svankmajer lança um olhar
simpático ao personagem do Marquês. Dá destaque aos seus monólogos subversivos,
nos quais o homem desafia Deus. Novamente lembra Marcuse no qual Eros (o “instinto
da vida”) desafia o princípio de realidade das sociedades repressivas – a compulsão
Thanática da dominação política e da repressão dos instintos. Mesmo numa
sociedade aparentemente liberal como a de consumo, que atrela a sua satisfação
à realização da forma-mercadoria.
Tal como na obra de Marquês de Sade
(1740-1814), a orgia transforma-se em ritual sistemático, em novo princípio de
realidade, entediante e repetitivo. O que lembra a irônica pergunta imaginada
por Jean Baudrillard em uma orgia pós-moderna: “o que você vai fazer depois da
orgia?”, pergunta um libertino para o outro no meio da orgia...
Em “Eros e Civilização” Marcuse via em
toda revolução, um “vanish point”, aquele instante no qual a revolução torna-se
traída por não conseguir ir além dos seus próprios pressupostos. A história
humana em um movimento pendular entre Eros e Thanatos, vida e morte
experimentada em seus extremos: a afirmação do corpo e do prazer a tal ponto
que se aproxima da morte – porque mesmo no orgasmo (o perder-se no outro) há um
princípio de morte, de esquecer-se de si mesmo no prazer. Afinal, a satisfação
e apaziguamento pleno dos instintos somente será alcançada na morte – a paz
absoluta, a própria “sensação oceânica” da qual Freud falava.
Enquanto a ordem do Dr. Murloppe vê os
perigos dos apetites corporais. A mente deve ser libertada pelo controle total
do corpo, por meio do castigo, da tortura e da dor. Mais uma vez, dessa vez com
sinais trocados, uma ordem chega próxima da morte.
Com esse duelo sobre qual gestão é a
melhor no hospício daquele lugarejo perdido no interior da República Checa,
Svankmajer faz um alerta no prólogo do filme Insanidade: no hospício do mundo atual, a Nova Ordem conseguiu
mesclar a insanidade libertina com a insanidade totalitária. Muitos críticos de
cinema interpretam como uma herança da juventude do diretor sobre o
totalitarismo comunista. Mas Svankmajer nos alerta sobre o presente: a nova
ordem global, na qual cada revolução é o aprofundamento do controle da Nova
Ordem.
Ficha Técnica
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Título: Insanidade
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Diretor: Jan Svankmajer
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Roteiro: Jan
Svankmajer
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Elenco: Jan
Triska, Pavel Liska, Anna Geislerová, Martin Huba, Jaroslav Dusek
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Produção: Athanor,
Ceská Televize
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Distribuição: Zeitgeist
Films
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Ano: 2005
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País: República
Checa
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