segunda-feira, outubro 15, 2018

"O Abrigo": o mais perturbador filme pós-apocalipse dos últimos tempos


Pode parecer que “O Abrigo” (“The Divide”, 2011) é mais um filme pós-apocalíptico em que, outra vez, Nova Iorque é destruída. Dessa vez por bombas nucleares em uma guerra indeterminada. Mas dessa vez não temos uma narrativa épica de um herói que luta em colocar ordem no caos para salvar o dia. As coisas irão de mau a pior num grupo de sobreviventes em um abrigo subterrâneo. A obsessão pela temática pós-apocalipse e do fim do mundo no cinema encobre a raiz de um sintoma que “O Abrigo” revela de maneira explícita: o freudiano “Mal-Estar da Civilização” assentado no temor da morte, da fragilidade do corpo e no inferno que representa o outro. Por isso, o diretor Xavier Gens vai buscar inspiração em dois clássicos da literatura do niilismo pós-guerra: a peça “Entre Quatro Paredes” de Sartre e “O Senhor das Moscas” de William Golding. “O Abrigo” é um filme para cinéfilos com mente e estômago fortes. Filme sugerido pelo nosso leitor Felipe Resende.

A Segunda Guerra Mundial, o Holocausto e as bombas atômicas jogadas em Hiroshima e Nagasaki foram divisores de águas na História humana: guerra total, blitzkriegs e campos de concentração parecem ter derrubados todos os pesos e contrapesos da civilização (ética, moralidade, diplomacia, cidadania etc.) para revelar até onde o homem é capaz de chegar – a normalização do Mal.

Desde então o cenário cultural nunca mais foi o mesmo. Um exemplo é a literatura. No final da guerra, o filósofo Sartre escreve a peça de teatro “Entre Quatro Paredes” (1944): três pessoas são enviadas ao Inferno. Mas não há demônios ou brasas. Apenas são trancadas em um quarto e obrigadas a conviverem entre si por toda a eternidade – “o inferno são os outros”, expressa a frase mais famosa da peça.

E em 1954, William Golding lança “O Senhor das Moscas”: um avião lotado de crianças e adolescentes cai em uma ilha deserta. O grupo vai progressivamente regredindo à vida dos instintos e às pulsões da violência e morte. A disputa pelo poder é o estopim do caos, e o paraíso do “bom selvagem” (invertendo o clássico “Robinson Crusoé” de Daniel Defoe) acaba em carnificina.

Pois Xavier Gens (A Fronteira, 2007) une essas duas obras num microcosmo do colapso da civilização no filme O Abrigo (The Divide, 2011). Um filme implacavelmente cruel, onde as coisas vão sempre de mau a pior. O que começa como uma estória clássica de sobrevivência pós-apocalipse, termina em horror imundo e nojento – literalmente!

Em quase todas as narrativas pós-apocalípticas o herói normalmente tropeça em um grupo, pessoas ou sobreviventes que demonstram o quão baixo a humanidade pode chegar. Mas em O Abrigo não há um conto épico de superação e heroísmo. Há apenas um grupo de sobreviventes que se deteriora física e psiquicamente em sangue, brutalidade e torturas.


Definitivamente, O Abrigo é um filme para cinéfilos fortes e aventureiros. Xavier Gens faz um verdadeiro estudo sobre o caráter sombrio em cada um de nós: como o complexo de Deus, o esmagamento da alma pelo tédio e tristeza, fetiches sadomasoquistas ou a violência podem destruir até a última fibra moral. E relegar a humanidade à luta cruel pela satisfação das funções orgânicas mais básicas – comida, sexo e excrementos.

Tanto a obra “Entre Quatro Paredes” como “O Senhor das Moscas” foram manifestações daquilo que Freud chamou de “Mal-Estar na Civilização” às vésperas da Segunda Guerra Mundial, em 1930. Freud apontava que a raiz do mal-estar estava em três sofrimentos: a vulnerabilidade e finitude do corpo, a fúria do mundo exterior e os vínculos com outros seres humanos.

Em O Abrigo o inferno da relação com os outros numa situação de confinamento soma-se à morte e a ameaça da radiação numa cenário pós-apocalipse após algum tipo de guerra nuclear. Literalmente, o filme de Xavier Gens mostra a barbárie que se esconde no subterrâneo da civilização – os sobreviventes estão confinados num abrigo no subsolo de um edifício em Manhattan, ícone da civilização ocidental e alvo de uma série de destruições (climáticas, cósmicas, extraterrestres, terroristas etc.) na história do cinema.

O Filme


O Abrigo acompanha nove vizinhos de um edifício residencial que fogem para um abrigo subterrâneo após Nova Iorque ser atacada por uma série de explosões nucleares. O filme começa através dos olhos Eve (Lauren German) que olha através de uma janela a chuva de bombas, fogo e explosões, enquanto todos os moradores descem em desespero as escadas do prédio. Até que Mickey (o síndico do condomínio e bombeiro sobrevivente dos ataques de 11/09 de 2001) consegue levar o grupo para um abrigo subterrâneo construído por ele.


Paranoico após os ataques de 2001, Mickey (Michael Biehn) transformou aquele abrigo numa célula de sobrevivência com geradores de energia e estoque de alimentos, arma e bebidas.

Aterrorizados pelas advertências de Mickey sobre o envenenamento por radiação e mutações, o grupo tenta vedar a porta e permanece preso no subsolo. Sob a ameaça não só do machado de Mickey como também por uma ameaça desconhecida do outro lado da porta – grupos armados vestidos com roupas antirradiação.

Minutos se tornam dias, dias se tornam semanas e depois meses. O tempo começa a diluir-se criando no espectador uma confusão temporal idêntica ao dos sobreviventes. É quase impossível dizer quanto tempo estão lá, já que no abrigo não há luz ou relógios.

Progressivamente os personagens vão perdendo a sanidade com divisões, lutas pelo poder, líderes que passam a se sentir como um deus sobre a vida e a morte dos outros. Tudo em torno da posse de água, comida e bebida – a desconfiança mútua cresce, enquanto gengivas começam a sangrar e chumaços de cabelo a cair.

A narrativa começa a lembrar “O Senhor das Moscas”, só que com mais agressão sexual, violência, sujeira e loucura.

Aos poucos vamos descobrindo a vida pregressa de cada um dos personagens, que em muitos aspectos lembrarão os personagens sartrianos de “Entre Quatro Paredes”: uma mulher fútil com a sua filha (“a melhor parte de mim”, diz Marilyn – Rosanna Arquette), Eve (a melhor impetuosa e ex-drogada que vivia nas ruas). Entre outros personagens como um advogado que passa o tempo catatônico imerso em um livro (Sam – Ivan González) ou a dupla que assume o poder de um quarto secreto escondido por Mickey e que transforma Marilyn em escrava sexual (Bobby e Josh – Michael Eklund e Milo Ventimiglia).


A máscara é retirada


A performance dos atores é impressionante, na forma como conseguem representar a degradação física e mental – o tempo inteiro cobertos de pó, sujeira, sangue e suor em condições de atuação certamente desagradáveis. Atingindo o objetivo do diretor Xavier Gens: mostrar como a humanidade pode trilhar o caminho de volta aos nossos hábitos mais primais.

A elevada carga de niilismo e desesperança tornam O Abrigo um filme pós-apocalíptico diferenciado: se é notável a recorrência de filmes escatológicos sobre o fim do mundo desde o pós-guerra (tomando como alvo principalmente Nova Iorque e Los Angeles), há na maioria deles a narrativa épica e heroica que mascara o freudiano “mal-estar da civilização” – que, afinal, é o principal motivador dessa onda pós-apocalipse.

Mas em O Abrigo essa máscara é retirada. Naquele subterrâneo cada fibra moral será destruída, revelando que a morte, o outro e a fragilidade humana diante da fatalidade são aquilo que a civilização acima daquele abrigo tentou recalcar. Sem resultado, já que todo o gênio e racionalidade humana foram apenas capazes de criar as armas da sua própria autodestruição.

 No mundo de O Abrigo os seres humanos não têm necessariamente um lado escuro e outro iluminado. Apenas há a escuridão (reforçada por uma corajosa fotografia escura e uma paleta com pouquíssimos contrastes de cores), revelando que o papel da sociedade é unicamente criar barreiras para manter essa escuridão fora de vista.


A única personagem que porventura poderia representar a bondade, pureza e esperança é retirado brutalmente daquele abrigo: a pequena menina Wendy (Abbey Thinckson), filha de Marilyn, que sempre segura um coelho de pelúcia.

Uma boa solução do roteiro: seria insuportável demais para o espectador ver a fragilidade infantil exposta àquele verdadeiro inferno entre quatro paredes. Cuja saída final passa (imagine!) através de uma fossa séptica.

Realmente, O Abrigo é um filme para mentes e estômagos fortes...  


Ficha Técnica 

Título:  O Abrigo
Diretor: Xavier Gens
Roteiro: Karl Mueller, Eron Shean
Elenco:  Lauren German, Michael Biehn, Milo Ventimiglia, Rossana Arquette, Iván González, Michael Eklund, Ashton Holmes, Courtney Vance
Produção: Instinctive Film, Preferred Content
Distribuição: Anchor Bay Films
Ano: 2011
País: EUA, Alemanha, Canadá

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