domingo, outubro 07, 2018

Em "Jogador Número 1" a jornada moralista do herói de Spielberg


Depois de abordar temas como tubarões, terrorismo, ETs e narrativas de aventuras que sempre tiveram a marca do retrô pop, dessa vez no filme “Jogador Número 1” (“Ready Player One”, 1978) o consagrado diretor Steven Spielberg mergulha na tecno-mitologia dos games de computador – uma vasta paisagem virtual de um jogo imersivo de avatares lutando em um parque temático da cultura pop: um gigantesco museu interativo sobre o século XX no futuro, um labirinto de referências e alusões da mitologia pop. Como sempre, Spielberg entrega ao público a velha narrativa da Jornada do Herói repleta de elementos herméticos e gnósticos. Mas Spielberg é a nata da indústria hollywoodiana: mais do que tudo, sabe construir narrativas míticas e elementos esotéricos fascinantes (porque prometem transcendência) embaladas com o moralismo da boa e velha dualidade maniqueísta hollywoodiana. “Jogador Número 1” dá a reposta a uma questão que sempre incomodou o “Cinegnose”: por que o Gnosticismo parou nas mesas de produtores e roteiristas de Hollywood?

Desde o surgimento desse blog, há oito anos, quando iniciamos as análises sobre a presença de elementos gnósticos no cinema (em particular no cinema hollywoodiano em produções como Matrix, Vanilla Sky ou A Origem) uma questão nunca saiu da cabeça desse humilde blogueiro: como foi possível uma mitologia tão transgressora quando a gnóstica (perseguida por séculos pelos poderes por  apresentar uma Teogonia e Cosmologia contrárias aos sistemas religiosos dominantes) foi parar nas mesas de produtores e roteiristas da indústria de entretenimento norte-americana?

Como essas narrativas gnósticas, com mensagens de rebelião e desconfiança em relação a qualquer status quo, puderam alcançar o mainstream hollywoodiano? Como foi possível o gnosticismo de entretenimento para as massas?

Certamente com o filme Jogador Número 1 (Ready Player One, 2018), de Steven Spielberg), podemos encontrar a resposta. Seja como diretor, autor ou produtor executivo, Spielberg sempre flertou com temas místicos e variações da chamada “Jornada do Herói” – conceito de jornada cíclica presente em todos os mitos, de acordo com o antropólogo Joseph Campbell.


Mitologia como entretenimento


Contatos Imediatos do Terceiro Grau, ET, Os Goonies, Indiana Jones, De Volta Para O Futuro, Um Olhar do Paraíso, Minority Report, Inteligência Artificial... entre tantos filmes da sua profícua carreira, sempre há uma busca do herói pelo “elixir”, um “objeto de valor” ou, no caso do Jogador Número 1, um “Ovo de Páscoa” místico-cibernético. Isso quando não há explícitos elementos gnósticos como em Minority Report  ou IA.

Mas Spielberg é mainstream: o esoterismo e a mitologia elevados à condição de entretenimento blockbuster. O sucesso de Spielberg está justamente nessa fórmula que ele pacientemente elaborou ao longo das décadas: lidar simultaneamente com transcendência e imanência – entregar ao espectador narrativas míticas e elementos esotéricos fascinantes (porque prometem transcendência) embaladas com o velho moralismo da boa e velha dualidade maniqueísta hollywoodiana. Embalagem que faz o público cair na real, depois de duas horas da esperança de transcendência.

Jogador Número 1 talvez seja o filme em que mais didaticamente vemos essa fórmula spielbergiana: a jornada espiritual de um herói de jogos de computador (esse parece ser o tema implícito nos vídeo games) inserida numa trama corporativa da luta entre um gênio da computação e um executivo ganancioso – seria um símbolo da guerra santa entre Steve Jobs versus Bill Gates, Apple versus Microsoft que povoa o ciber-imaginário?

A promessa de que vídeo games não se tratam mais de simples jogos, mas de complexas batalhas místicas na busca de objetos de valor espiritual. Porém, Spielberg, como de resto toda a indústria de entretenimento, deixa uma questão de fora: afinal, quem é o dono do hardware no qual rodam esses software esotéricos? Quem é o dono da banca que promove toda essa trip mística? É uma questão política que Spielberg converte num tema moral: o dono do hardware será ou do “bem” ou do “mal”.


Fica fora a natureza do próprio vídeo game imersivo que domina o universo de Jogador Número 1: um jogo produzido por uma gigante corporativa, viciante e escapista, cujos usuários tendem a trocar as relações no mundo real por avatares numa espécie de paraíso digital.

O Filme


O ano é 2045 e o lugar é Columbus, Ohio. Acompanhamos Wade (Tye Sheridan) que vive num futuro distópico no qual as cidades são formadas por torres formadas por contâineres ou reboques empilhados uns sobre os outros e ligados por andaimes metálicos.

Para escaparem das suas vidas cinzentas, tristes e miseráveis, Wade e seus vizinhos usam capacetes e data-gloves de realidade virtual para entrarem no Oasis, um game de imersão que se alastra por todo o planeta. No Oasis você pode ser ou fazer o que quiser – pode ser um temível guerreiro uma anine megera sexy. Pode apostar num cassino do tamanho de um planeta, escalar o Everest com o Batman ou participar de cruéis batalhas em um mundo distante.

No Oasis, Wade é Parzival, um avatar em estilo rebelde chic de Final Fantasy. Aliás, o filme é uma colcha de retalhos de referências da cultura pop (principalmente dos anos 1980), numa corajosa combinação de live action com CGI.

Seu melhor amigo no Oasis é um imenso ogro chamado Aech (Lena Waithe) e apaixonado por uma punk rocker motociclista chamada Art3mis – Olivia Cooke. Todos estão à procura de três chaves mágicas escondidas em algum lugar nos diversos mundos do jogo, escondidas pelo falecido criador do Oasis, o nerd socialmente desajeitado James Halliday (Mark Rylance).


As chaves literalmente abrirão as portas do reino: quem as encontrar herdará todo o império corporativo – controle acionário, muito dinheiro e todos os direitos do Oasis. Enquanto isso, um vilão corporativo ganancioso chamado Nolan Sorrento (Bem Medelsohn) montou um exército mercenário de soldados e nerds com profundo conhecimento em cultura pop, para vasculhar o Oasis em busca das chaves. Sorrento pretende explorar o Oasis com interesses comerciais sem escrúpulos.

Encontradas as chaves serão abertas as portas que guardam o “Ovo de Páscoa”, o objeto mágico que garantirá a posse do reino. Ninguém ainda chegou perto, até mesmo Parzival que é um profundo conhecedor da história do pop. Porém, será necessário mais do que conhecimento enciclopédico do pop: será preciso achar o “Rosebud” da vida pessoal de James Halliday.   

A questão é que Oasis não é uma simples fantasia escapista: tem reflexos no mundo real – a cada morte do avatar, as moedas conquistadas são perdidas. Resultando em dívidas contraídas com a empresa controladora do jogo. Inadimplente, o usuário torna-se escravo em verdadeiros campos de concentração virtuais. Na distopia de Jogador Número 1 não Estado ou Governo: o Poder foi privatizado pela corporação do vilão Nolan Sorrento – sua conquista final será o controle da própria essência do Oasis: o “Ovo de Páscoa”.


Do Princípio da Correspondência à Jornada do Herói


Temos, portanto, uma perversa referência ao hermético Princípio da Correspondência: “o que está acima corresponde ao que está abaixo; e o que está abaixo corresponde ao que está em cima”, dizia Hermes Trimegisto.

A esse simbolismo esotérico, junta-se a narrativa arquetípica da Jornada do Herói, didaticamente expressa pelo filme – Wade é um candidato a herói que tem uma relação com o jogo puramente consumista: ganhar moedas para comprar novos gadgets em um shopping center virtual.

Wade resiste à missão de ser o “escolhido” (o “jogador número 1”): achar as chaves para ir muito além da posse de riquezas – encontrar a sabedoria que libertará o povo da tirania de Sorrento. Portanto, temos todos os personagens da Jornada do Herói: o Mentor (Halliday), a Sombra (Sorrento), o Arauto (Art3mis), o Pícaro (o ogro Aech, o alívio cômico que acompanha o herói), ascensão, morte e ressurreição do herói que regressará ao mundo real com o “elixir” – a sabedoria que libertará aquele mundo distópico.

Mas o principal elemento gnóstico no filme é o personagem do Viajante representado por Wade/Parzival – a ânsia espiritual pelo jogo e pelo lúdico como forma de transcendência. O jogo como jornada espiritual de transformação, do mundo ordinário (conquistar moedas apenas para o consumo) para o reino da sabedoria: a reconexão com a Divindade.

Esse é o núcleo narrativo de toda a filmografia de Spielberg: todo o desejo de transcendência dos seus heróis é resolvido dentro da dualidade moral entre o Bem e o Mal. A questão do Oasis não é a viciosidade e a dependência que a virtualidade cria em contraponto ao mundo real. Para Spielberg, o único problema é que a corporação tem que ser controlada por um novo grupo de executivos “do bem”: Parzival, Art3mis e outros avatares que eventualmente surgirão como um grupo de rebelados (Sho e Daito) que formam uma espécie de “Goonies” cibernéticos.


A questão “quem é o dono do hardware?” é ignorada, desde que esse dono seja “do bem”. E que, no final, obrigue os usuários a não jogar Oasis às terças e quintas para que, eventualmente, se reconectem com pessoas reais.

A natureza viciante e escapista do Oasis é mantida intacta. Porém, dessa vez, o dono da empresa não será mais um executivo ganancioso, mas a equipe dos “Goonies cibernéticos” – a “sabedoria” de Wade o fez partilhar o botim final com seus amigos, e não deixar tudo unicamente nas suas mãos.

Jogador Número 1 é mais um filme de Spielberg no qual a transcendência é confinada pela imanência. Apesar de explorar narrativas, mitologias e simbolismos gnósticos, esotéricos e até herméticos, o filme esquece o principal elemento da Cosmogonia gnóstica: o Mal não é moral (como se estivesse apenas do lado dos “bad guys”), mas está na própria Criação, no próprio mundo.

Ou no caso do filme, a natureza alienante do Oasis que faz as pessoas abandonarem o real em troca de fantasias pop de poder e riqueza.

Isso é o que separa o maniqueísmo hollywoodiano do gnóstico: Spielberg, como de resto toda a indústria do entretenimento, fascina o distinto público com fantasias de transcendência moralista. Enquanto o Gnosticismo fascina pela possibilidade da transcendência com a descoberta da própria natureza ilusória da Criação.  


Ficha Técnica 

Título:  Jogador Número 1 (Ready Player One)
Diretor: Steven Spielberg
Roteiro: Zak Penn, Ernest Cline
Elenco:  Tye Sheridan, Olivia Cooke, Ben Mendelsohn, Lena Wathe, TJ Miller
Produção: Amblien Entertainment, De Line Pictures
Distribuição: Warner Bros,
Ano: 2018
País: EUA

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