Depois de abordar temas
como tubarões, terrorismo, ETs e narrativas de aventuras que sempre tiveram a
marca do retrô pop, dessa vez no filme “Jogador Número 1” (“Ready Player One”,
1978) o consagrado diretor Steven Spielberg mergulha na tecno-mitologia dos
games de computador – uma vasta paisagem virtual de um jogo imersivo de
avatares lutando em um parque temático da cultura pop: um gigantesco museu
interativo sobre o século XX no futuro, um labirinto de referências e alusões
da mitologia pop. Como sempre, Spielberg entrega ao público a velha narrativa
da Jornada do Herói repleta de elementos herméticos e gnósticos. Mas Spielberg é
a nata da indústria hollywoodiana: mais do que tudo, sabe construir narrativas míticas e elementos esotéricos fascinantes (porque
prometem transcendência) embaladas com o moralismo da boa e velha dualidade
maniqueísta hollywoodiana. “Jogador Número 1” dá a reposta a uma questão que sempre
incomodou o “Cinegnose”: por que o Gnosticismo parou nas mesas de produtores e
roteiristas de Hollywood?
Desde o surgimento desse blog, há oito
anos, quando iniciamos as análises sobre a presença de elementos gnósticos no
cinema (em particular no cinema hollywoodiano em produções como Matrix, Vanilla Sky ou A Origem) uma questão nunca saiu da
cabeça desse humilde blogueiro: como foi possível uma mitologia tão
transgressora quando a gnóstica (perseguida por séculos pelos poderes por apresentar uma Teogonia e Cosmologia
contrárias aos sistemas religiosos dominantes) foi parar nas mesas de
produtores e roteiristas da indústria de entretenimento norte-americana?
Como essas narrativas gnósticas, com
mensagens de rebelião e desconfiança em relação a qualquer status quo, puderam
alcançar o mainstream hollywoodiano?
Como foi possível o gnosticismo de entretenimento para as massas?
Certamente com o filme Jogador Número 1 (Ready Player One, 2018), de Steven Spielberg), podemos encontrar a
resposta. Seja como diretor, autor ou produtor executivo, Spielberg sempre
flertou com temas místicos e variações da chamada “Jornada do Herói” – conceito
de jornada cíclica presente em todos os mitos, de acordo com o antropólogo
Joseph Campbell.
Mitologia como entretenimento
Contatos Imediatos do Terceiro Grau, ET, Os Goonies, Indiana Jones, De
Volta Para O Futuro, Um Olhar do Paraíso, Minority Report, Inteligência Artificial... entre tantos filmes da sua
profícua carreira, sempre há uma busca do herói pelo “elixir”, um “objeto de
valor” ou, no caso do Jogador Número 1,
um “Ovo de Páscoa” místico-cibernético. Isso quando não há explícitos elementos
gnósticos como em Minority Report ou IA.
Mas Spielberg é mainstream: o esoterismo e a mitologia elevados à condição de
entretenimento blockbuster. O sucesso de Spielberg está justamente nessa
fórmula que ele pacientemente elaborou ao longo das décadas: lidar
simultaneamente com transcendência e imanência – entregar ao espectador
narrativas míticas e elementos esotéricos fascinantes (porque prometem
transcendência) embaladas com o velho moralismo da boa e velha dualidade
maniqueísta hollywoodiana. Embalagem que faz o público cair na real, depois de
duas horas da esperança de transcendência.
Jogador Número 1
talvez seja o filme em que mais didaticamente vemos essa fórmula spielbergiana:
a jornada espiritual de um herói de jogos de computador (esse parece ser o tema
implícito nos vídeo games) inserida numa trama corporativa da luta entre um
gênio da computação e um executivo ganancioso – seria um símbolo da guerra
santa entre Steve Jobs versus Bill Gates, Apple versus Microsoft que povoa o
ciber-imaginário?
A promessa de que vídeo games não se
tratam mais de simples jogos, mas de complexas batalhas místicas na busca de
objetos de valor espiritual. Porém, Spielberg, como de resto toda a indústria
de entretenimento, deixa uma questão de fora: afinal, quem é o dono do hardware
no qual rodam esses software esotéricos? Quem é o dono da banca que promove
toda essa trip mística? É uma questão
política que Spielberg converte num tema moral: o dono do hardware será ou do
“bem” ou do “mal”.
Fica fora a natureza do próprio vídeo
game imersivo que domina o universo de Jogador Número 1: um jogo produzido por
uma gigante corporativa, viciante e escapista, cujos usuários tendem a trocar
as relações no mundo real por avatares numa espécie de paraíso digital.
O Filme
O ano é 2045 e o lugar é Columbus,
Ohio. Acompanhamos Wade (Tye Sheridan) que vive num futuro distópico no qual as
cidades são formadas por torres formadas por contâineres ou reboques empilhados
uns sobre os outros e ligados por andaimes metálicos.
Para escaparem das suas vidas cinzentas,
tristes e miseráveis, Wade e seus vizinhos usam capacetes e data-gloves de
realidade virtual para entrarem no Oasis, um game de imersão que se alastra por
todo o planeta. No Oasis você pode ser ou fazer o que quiser – pode ser um
temível guerreiro uma anine megera sexy. Pode apostar num cassino do tamanho de
um planeta, escalar o Everest com o Batman ou participar de cruéis batalhas em
um mundo distante.
No Oasis, Wade é Parzival, um avatar
em estilo rebelde chic de Final Fantasy. Aliás, o filme é uma colcha de
retalhos de referências da cultura pop (principalmente dos anos 1980), numa
corajosa combinação de live action com CGI.
Seu melhor amigo no Oasis é um imenso
ogro chamado Aech (Lena Waithe) e apaixonado por uma punk rocker motociclista
chamada Art3mis – Olivia Cooke. Todos estão à procura de três chaves mágicas
escondidas em algum lugar nos diversos mundos do jogo, escondidas pelo falecido
criador do Oasis, o nerd socialmente desajeitado James Halliday (Mark Rylance).
As chaves literalmente abrirão as
portas do reino: quem as encontrar herdará todo o império corporativo –
controle acionário, muito dinheiro e todos os direitos do Oasis. Enquanto isso,
um vilão corporativo ganancioso chamado Nolan Sorrento (Bem Medelsohn) montou
um exército mercenário de soldados e nerds com profundo conhecimento em cultura
pop, para vasculhar o Oasis em busca das chaves. Sorrento pretende explorar o
Oasis com interesses comerciais sem escrúpulos.
Encontradas as chaves serão abertas as
portas que guardam o “Ovo de Páscoa”, o objeto mágico que garantirá a posse do
reino. Ninguém ainda chegou perto, até mesmo Parzival que é um profundo
conhecedor da história do pop. Porém, será necessário mais do que conhecimento
enciclopédico do pop: será preciso achar o “Rosebud” da vida pessoal de James
Halliday.
A questão é que Oasis não é uma
simples fantasia escapista: tem reflexos no mundo real – a cada morte do
avatar, as moedas conquistadas são perdidas. Resultando em dívidas contraídas
com a empresa controladora do jogo. Inadimplente, o usuário torna-se escravo em
verdadeiros campos de concentração virtuais. Na distopia de Jogador Número 1 não Estado ou Governo:
o Poder foi privatizado pela corporação do vilão Nolan Sorrento – sua conquista
final será o controle da própria essência do Oasis: o “Ovo de Páscoa”.
Do Princípio da Correspondência à Jornada do Herói
Temos, portanto, uma perversa referência
ao hermético Princípio da Correspondência: “o que está acima corresponde ao que
está abaixo; e o que está abaixo corresponde ao que está em cima”, dizia Hermes
Trimegisto.
A esse simbolismo esotérico, junta-se
a narrativa arquetípica da Jornada do Herói, didaticamente expressa pelo filme –
Wade é um candidato a herói que tem uma relação com o jogo puramente
consumista: ganhar moedas para comprar novos gadgets em um shopping center
virtual.
Wade resiste à missão de ser o “escolhido”
(o “jogador número 1”): achar as chaves para ir muito além da posse de riquezas
– encontrar a sabedoria que libertará o povo da tirania de Sorrento. Portanto,
temos todos os personagens da Jornada do Herói: o Mentor (Halliday), a Sombra
(Sorrento), o Arauto (Art3mis), o Pícaro (o ogro Aech, o alívio cômico que
acompanha o herói), ascensão, morte e ressurreição do herói que regressará ao
mundo real com o “elixir” – a sabedoria que libertará aquele mundo distópico.
Mas o principal elemento gnóstico no
filme é o personagem do Viajante representado por Wade/Parzival – a ânsia
espiritual pelo jogo e pelo lúdico como forma de transcendência. O jogo como
jornada espiritual de transformação, do mundo ordinário (conquistar moedas
apenas para o consumo) para o reino da sabedoria: a reconexão com a Divindade.
Esse é o núcleo narrativo de toda a
filmografia de Spielberg: todo o desejo de transcendência dos seus heróis é
resolvido dentro da dualidade moral entre o Bem e o Mal. A questão do Oasis não
é a viciosidade e a dependência que a virtualidade cria em contraponto ao mundo
real. Para Spielberg, o único problema é que a corporação tem que ser
controlada por um novo grupo de executivos “do bem”: Parzival, Art3mis e outros
avatares que eventualmente surgirão como um grupo de rebelados (Sho e Daito)
que formam uma espécie de “Goonies” cibernéticos.
A questão “quem é o dono do hardware?”
é ignorada, desde que esse dono seja “do bem”. E que, no final, obrigue os usuários
a não jogar Oasis às terças e quintas para que, eventualmente, se reconectem
com pessoas reais.
A natureza viciante e escapista do
Oasis é mantida intacta. Porém, dessa vez, o dono da empresa não será mais um
executivo ganancioso, mas a equipe dos “Goonies cibernéticos” – a “sabedoria”
de Wade o fez partilhar o botim final com seus amigos, e não deixar tudo
unicamente nas suas mãos.
Jogador Número 1
é mais um filme de Spielberg no qual a transcendência é confinada pela imanência.
Apesar de explorar narrativas, mitologias e simbolismos gnósticos, esotéricos e
até herméticos, o filme esquece o principal elemento da Cosmogonia gnóstica: o
Mal não é moral (como se estivesse apenas do lado dos “bad guys”), mas está na
própria Criação, no próprio mundo.
Ou no caso do filme, a natureza
alienante do Oasis que faz as pessoas abandonarem o real em troca de fantasias
pop de poder e riqueza.
Isso é o que separa o maniqueísmo
hollywoodiano do gnóstico: Spielberg, como de resto toda a indústria do
entretenimento, fascina o distinto público com fantasias de transcendência
moralista. Enquanto o Gnosticismo fascina pela possibilidade da transcendência
com a descoberta da própria natureza ilusória da Criação.
Ficha Técnica
|
Título: Jogador
Número 1 (Ready Player One)
|
Diretor: Steven Spielberg
|
Roteiro: Zak
Penn, Ernest Cline
|
Elenco: Tye Sheridan,
Olivia Cooke, Ben Mendelsohn, Lena Wathe, TJ Miller
|
Produção: Amblien
Entertainment, De Line Pictures
|
Distribuição: Warner Bros,
|
Ano: 2018
|
País: EUA
|
Postagens Relacionadas |