Mais do que entender “quem
é o dono do hardware” atrás dos aplicativos, gadgets e algoritmos que nos
envolvem e fazem a mediação de todas as nossas relações familiares, pessoais e
profissionais, é urgente também fazermos uma psicanálise da “classe virtual”: a
“tecno-intelligentsia” de neurocientistas, engenheiros, cientistas da computação,
criadores de jogos eletrônicos e toda gama de desenvolvedores digitais. Até que
ponto o atual paradigma digital (que confunde a mente com o próprio
funcionamento dos computadores) é a projeção de uma “ego trip” desses membros
da elite virtual: estariam traumas, fantasmas e obsessões íntimas dos próprios
desenvolvedores digitais projetados no modelo cognitivo que a ciência da
computação impõe para nós? Esse é o mais importante tema da nova série Netflix “Maniac”
(2018): uma radical técnica fármaco-computacional promete eliminar as memórias
de nossos traumas para voltarmos à realidade felizes e produtivos. Mas, e se
ficarmos aprisionados nos próprios traumas dos neurocientistas criadores do
experimento?
O pesquisador canadense em tecnologia
e cultura, Arthur Kroker, em seu livro Data Trash, assim se referiu à chamada “classe
virtual” do conjunto de tecnólogos e engenheiros computacionais do Vale do Silício:
“A masculinidade burguesa sempre teve algo de pré-adolescente: pequenos garotos
pensando sobre como controlar o mundo, mas agora o mundo é o ciberespaço. O
sonho de ser deus do ciberespaço – a ideologia pública como fantasia de meninos
pré-adolescentes: uma regressão do sexo para uma forma autista de poder” –
KROKER, Arthur. Data Trash: The Theory of
the Virtual Class, NY: Saint Martin Press, 1994.
Lidamos com interfaces tecnológicas,
aplicativos e dispositivos em nosso dia-a-dia sem atentarmos a uma questão:
quem é o dono do hardware? Navegamos no ciberespaço, aceleramos na highway das informações e partilhamos
nossas vidas nas redes sociais sem pensarmos nos interesses de quem está
bancando tudo isso para a sociedade.
Xingamos Mark Zuckemberg, acusamos o
Facebook de censura e invasão de privacidade, mas nunca atentamos para o fato
de que essa plataforma é privada, um negócio. Não é mais a esfera pública de
interesses do passado. Nada mais é do que um gigantesco coletor de big data
mercadológico, cujos dados são eventualmente roubados pelo marketing político –
veja o caso Trump nos EUA e agora Bolsonaro no Brasil.
Porém a série Netflix Maniac (2018), baseado em uma série homônima
da TV norueguesa, vai mais além. Faz um mergulho tragicômico na mente da elite
neurocientífica e computacional por trás do atual paradigma que traduz a cognição
e a mente humana a partir da lógica binária computacional.
Em outras palavras, uma psicanálise da
classe virtual: assim como a ideia do
Facebook surgiu da quebra de privacidade das informações e um jogo misógino com
fotos das garotas mais bonitas de Harvard, em que medida também toda a
tecno-intelligentsia de neurocientistas, engenheiros, cientistas da computação,
criadores de jogos eletrônicos projetam seus traumas, fantasias ou fantasmas psíquicos
pessoais em seus gadgets tecnológicos?
Maniac lembra
bastante o plot de Brilho Eterno de Uma
Mente Sem Lembranças (2004) de Michael Gondry – nesse filme, uma “startup”
chamada Lacuna Inc. se especializa em apagar digitalmente más lembranças de
corações partidos. Pois a série Maniac
faz não apenas uma narrativa em torno dos labirintos da mente, como fez Gondry.
Vai além: faz uma psicanálise dos
cientistas por trás do experimento que busca estabelecer uma completa
cartografia e topografia da mente – e se todo esse projeto nada mais fosse do
que projeções de problemas edipianos não resolvidos dos próprios criadores?
E se toda a sociedade estiver
prisioneira de uma ego trip da classe
virtual? E se nesse momento aplicativos e algoritmos (que sabem muito mais de nós
do que nós mesmos) forem nada mais do que projeções das cenas traumáticas do
psiquismo de seus criadores? Até que ponto o trauma do amor sufocante da mãe de
um cientista computacional pode ter sido a motivação de um sofisticado projeto
neuro-computacional?
A Série
Dirigida por Cary Fukunaga (nome por
trás da premiada primeira temporada de True Detective), Maniac conta com um elenco estelar: Emma Stone, Jonah Mill, Justin
Theroux e Sally Field.
Estamos em uma Nova York
retro-futurista. Uma estátua da “Extra-Liberdade” (um homem alado empunhando
uma lança) brilha no porto da cidade. Esse parece ser o símbolo de uma distopia
na qual o neoliberalismo alcança o paroxismo: a sociedade inteira se tornou
monetizável como um gigantesco Google Adsense - em troca de gratuidade, as
pessoas são bomadeadas por anúncios. Temos “Friend Proxies”, amigos substitutos
pagos para se importarem com você; ou o “Ad Buddy”: se você não tiver dinheiro
para, digamos, pagar um bilhete de trem, uma pessoa sentará ao seu lado para
promover empresas e serviços na duração da viagem para cobrir os custos.
Mas o extremo de liberalismo econômico
corresponde a uma curiosa atmosfera retro com PCs e desktops com a tecnologia
dos anos 1980, telefones fixos com botões grandes e mainframes que mais se
assemelham ao HAL 9000 de Kubrick ou os computadores de séries antigas como
Perdidos no Espaço ou Túnel do Tempo.
Acompanhamos Owen Milgrim (Jonah
Hill), um dos irmãos de uma família rica que teve um surto esquizofrênico há
dez anos do qual parece que jamais se recuperou – é perseguido por uma versão
imaginária do seu irmão mais velho que diz que ele foi escolhido para salvar o
mundo. E que também deve fazer contato com uma mulher para ajuda-lo.
Sem emprego, recusa a ajuda do pai
rico para se oferecer como cobaia remunerada no experimento de um projeto da
Neberdine Pharmaceutical Biotech. Lá conhece Annie Landsberg (Emma Stone), uma
garota que foge de um violento trauma pessoal que envolveu a separação da sua
irmã. Dependente de drogas, Annie vê no projeto da Neberdine a chance de
encontrar mais drogas que faça
anestesiar seu inferno pessoal.
Banhado em luz de neon, Owen e Annie
assistem a um hilariante vídeo com estilo dos anos 1970 em que o Dr. James K.
Mantleray (Justin Theroux) informa ao grupo os objetivos do tratamento radical
envolvendo tratamento farmacêutico com Inteligência Artificial (IA): uma solução
tecnológica segura para a dor das memórias traumáticas. Uma IA chamada GRTA irá
mapear a mente em três etapas – cada uma com uma droga indutora correspondente.
Fase A: Trauma; Fase B: Comportamento; Fase C: Confrontação.
A narrativa sugere que no passado o
projeto teve um histórico negativo: alguns pacientes se tornaram “McMurphys” –
ficaram em estados catatônicos, prisioneiros nos labirintos da mente de mundos
virtuais, vivenciando em loop as cenas traumáticas e tirando disso um prazer
perverso.
Para enfrentar esse problema, o
neurocientista Mantleray criou uma “rede de segurança” – programou empatia nos
códigos de GRTA para que a IA preocupe-se com a segurança dos pacientes.
Porém, isso resulta num inesperado
efeito colateral: GRTA começa a se sentir solitária, quer buscar sua
identidade, principalmente após a morte de um dos médicos do projeto – seu amigo
confidente. Em crise, o hardware da IA derrama uma lágrima (sim, isso mesmo!) em
um dos plugs que conectam memória, HD e processador. Resultado:
involuntariamente, as alucinações bioquímicas de Annie e Owen irão se fundir,
iniciando a criação de realidades alternativas das quais os protagonistas terão
que “despertar” para não só solucionar seus traumas – mas também retornarem ao
mundo real.
Gnosticismo, solidão e desconexão
A partir disso, na maioria dos dez episódios
acompanhamos as “viagens” do casal, com uma série de reflexões sobre sociedade,
relações familiares, amores, convivências. Tudo em alucinantes alegorias, sob o
verniz narrativo do humor negro, non sense e simbolismos e fusões de imagens
surrealistas dignas de um Buñuel ou Dali.
A lágrima de GRTA sobre fios de conexão
é a alegoria central da série: o grande problema desse mundo distópico hiper-liberal
em que tudo é potencialmente monetizável, é a solidão e desconexão. Desconexão
com o outro e consigo mesmo.
Nesse momento entra a impagável
participação da inesquecível “Noviça Voadora” (da clássica série de TV dos anos
1960) Sally Fields como a Dra. Greta, mãe do Dr. Mantleray.
Outrora respeitada acadêmica,
tornou-se uma milionária terapeuta e escritora de livros de autoajuda. E com um
sufocante amor pelo filho neurocientista. Dra. Greta propõe uma cura para corações
solitários através da psicoterapia. Mas Dr. Mantleray quer matar a mãe possessiva
dentro de si – tornar a psicoterapia superada com a cura fármaco-computacional
através dos algoritmos da IA.
Maniac propõe
uma bizarra situação: se GRTA é uma mente digital criada a partir do modelo da
própria mãe possessiva do seu criador, a IA pode tornar-se um perigoso demiurgo
possessivo – enlouquecido pelo poder e solidão, aprisiona os pacientes em seus
labirintos digitais. Quer transformar todos em “McMurphys”.
A série propõe temas clássicos da
mitologia gnóstica (que, aliás, é citado nominalmente por Owen em uma das
linhas de diálogo): um demiurgo (a IA) que mapeia a mente de seus pacientes
para aprisiona-los usando como isca as cenas traumáticas; a necessidade de “acordar”
do sonho da ilusão – a própria gnose: a necessidade de saber distinguir a
realidade dentro da própria tela mental criada pelo psiquismo.
Somos prisioneiros de ego trips científicas
Mas, também, de certa forma completa o
argumento de Brilho Eterno de Uma Mente
Sem Lembranças – e se fizéssemos a psicanálise do Dr. Mierzwiak, o
cientista dono da Lacina Inc.? Por que a obsessão em apagar memórias dos
outros? Será que Mierzwiak queria apagar algo de si mesmo?
Por que a necessidade de
virtualizarmos a mente? De criar mediações tecnológicas nos relacionamentos
familiares, pessoais e profissionais? Por que uma rede social, que surgiu de um
bulliyng universitário, hoje consegue substituir a própria esfera pública? O
que há de traumas, fantasmas e fantasias obsessivas pessoais dos próprios
criadores do “brave new world” tecnológico que nos envolve? Somos prisioneiros
da ego trip das fantasias de meninos pré-adolescentes, como sugeriu Arthur Kroker?
Ficha Técnica
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Título: Maniac
(série)
|
Diretor: Cary Joji Fukunaga
|
Roteiro: Patrick
Somerville, Cary Fukunaga
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Elenco: Emma Stone, Jonah Hill, Justin Theroux, Sonoya Mizuno, Sally Field
|
Produção: Netflix,
Paramount Television
|
Distribuição: Netflix
|
Ano: 2018
|
País: EUA
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