Um filme
inclassificável. Pode ser um romance com uma racionalização sci-fi. Uma jovem
engole uma capsula medicinal contendo um estranho verme cuidadosamente
cultivado em estufa, tornando-se hospedeira tanto da larva como do controle
mental de alguém que a transformou numa cobaia involuntária de um experimento.
Agora ela terá flashbacks, flashfowards e flahs periféricos tornando o filme “Upstream
Colour” , 2014, de Shane Carruth (“Primer”) num filme estranho, surreal. Num
verdadeiro quebra-cabeças que cobra do espectador esforço cognitivo para
restabelecer a linearidade. Uma experiência enigmática, única, hipnótica e
surreal. “Upstream Colour” nos dá a sensação de, através de um microscópio,
estarmos vendo a matéria-prima das nossas memórias e identidades: as sensações
mais básicas dos nossos cinco sentidos. Tão efêmeras e frágeis que podem ser
roubadas quando menos esperamos.
Do quê são formadas nossas memórias?
Certamente, o ponto de partida são sensações, percepções fugidias, efêmeras - táteis,
cheiros, pregnâncias. Que formam multicamadas de imagens e ressonâncias. O que
acaba por criar um paradoxo: como nossa identidade estável e perene (necessária
para desempenharmos os diversos papéis na sociedade – apesar da diversidade,
sempre continuamos os mesmos) pode ser construída sobre essa base de sensações
tão lábeis?
Upstream Colour
é um filme sobre isso: identidade, memória e percepção. Quem já assistiu ao
filme anterior de Shane Carruth, o sci-fi Primer
(2004 – clique aqui) sabe o que espera: enquanto nesse filme Carruth faz uma
desconstrução quase matemática do tempo, em Uspstream
Colour é como se observássemos em um microscópio a própria ideia de
sensibilidade na qual se fundamentam nossas experiências mais primárias, antes
que elas se transformem em emoções e identidades socialmente sancionadas.
Por isso a narrativa do filme é
obscura, repleta de flashbacks, flashfowards, flashs periféricos, livres
associações de fragmentos de memórias dos protagonistas. Um verdadeiro
quebra-cabeças que obriga o espectador por em ordem para criar uma
configuração.
Por isso, Usptream Colour é um filme que resiste a qualquer tentaiva de
sinopse. O ponto de partida é estranho e bizarro: um personagem que engole um
verme branco que o transforma numa espécie de hospedeiro, sujeito ao controle
total da mente por alguém que, para não ser identificado pela cobaia desse
experimento, diz que seu rosto é um sol flamejante impossível de ser
encarado...
Uma droga cujo efeito posterior é essa
desconexão entre entre percepção, memória e identidade. O resulta em um casal de
protagonistas disfuncionais, que perderam seus trabalhos e o passado e tentam
se agarrar um no outro para tentar juntar flash de memória.
Mas esse não é o plot central. O que
resulta num filme puramente sensorial, estranho e surreal sobre vidas que foram
transformadas do dia para noite. Mas principalmente, Upstream Colour é um estudo
da substância que forma nossa memória e identidade. Tão frágil que pode ser
capturada por um estranho experimento biológico.
O Filme
Na primeira sequência vemos um saco de
lixo com algumas correntes de papéis. Um homem deposita o saco em uma lixeira.
Um garoto o observa. Outro homem recolhe cuidadosamente vermes de algumas
plantas em uma estufa. Coloca-os em pequenas cápsulas medicinais.
Claramente vemos o cultivo de algum
tipo de droga. Ao mesmo tempo também vemos alguns jovens que parecem
experimentar uma versão mais leve dessa droga: divertem-se em duplas, dançando
e fazendo brincadeiras sincronizadas, como movimentos espelhados um no outro.
Mais tarde (pelo menos em termos de
tempo de exibição do filme) algo acontece com Kris (Amy Seimeitz). Um homem
identificado nos créditos apenas como “Ladrão” (Thiago Martins) parece
colocá-la em estado hipnótico após força-la a ingerir uma daquelas cápsulas
medicinais com o pequeno verme. Posteriormente, tudo o que verá, dirá ou fará
será ditado pelo “Ladrão”Mas ela não pode olhar para ele, porque ele diz que a
sua cabeça “é feita da mesma substância do Sol”.
Um outro homem, a quem os créditos
chamam de “The Sampler” (Andrew Sensenig) coleciona, grava e executa sons (parece
ser algum designer de áudio) e realiza cirurgias sincrônicas entre Kris e um porco,
aparentemente transferindo um parasita de um para o outro. Estabelecendo um
vínculo psíquico indefinível entre Kris e o animal.
Mais tarde (sempre em termos de tempo
de tela, pois nada é linear) Kris encontra Jeff (Shane Carruth) em um trem. Ele
se conectam. Seus pensamentos se misturam (esse parece ser um dos efeitos
colaterais do experimento), o que quer dizer que ambos passam a se convencer
que as memórias foram apropriadas pelo outro.
Parece que ambos foram cobaias do
experimento do “Ladrão”, que roubou deles dinheiro e propriedades enquanto
estavam sob efeito hipnótico da droga. Perderam seus empregos, para depois se
agarrem em subempregos, enquanto um tenta com o outro resgatar alguma coisa que
foi perdida entre eles. Kris tenta reconstruir a sua vida ao lado de um homem
que pode ou não ter passado a mesma experiência.
Olhar gnóstico
São 90 minutos de absoluta
perplexidade para o espectador. Muitas vezes temos a sensação que Upstream Colour navega entre o “body
horror” de David Cronemberg, o
surrealismo futurista de Philip K. Dick, ou o romantismo hiper-formalista do
cineasta chinês Wong Kar-wai – Obssesion
(2004) ou Amor à Flor da Pele (2000).
Se o espectador ver o filme como um
romance, poderá interpretá-lo como o nascimento de uma nova identidade quando
um casal se une; se olhar Upstream Color
como uma ficção científica, poderá se concentrar no papel dos vermes, dos porcos
e no estranho criador simultaneamente de sons e de suínos. Mas se for fã de
cinema, poderá encontrar na película ecos de Tarkowsky, Bresson e Godard.
Ou ainda, sob um olhar gnóstico, como a
memória, a matéria-prima da nossa identidade, pode ser facilmente manipulada
pela ilusão. Memórias são formadas por sensações que antecedem as próprias
emoções. Emoções são a posteriori (são construções sociais como o amor, ódio,
ou empatia). As sensações são brutas, cruas, o próprio mundo ao redor nos
afetando (afecção) através dos nossos corpos e sentidos.
Daí o paradoxo: como nossa identidade
estabilizada que nos acompanhará por toda existência pode se fundamentar em
algo tão frágil e fenomênico? Talvez Upstream
Colour revele a natureza de toda manipulação: política, midiática,
farmacológica, demiúrgica e assim por diante.
Na verdade toda e qualquer manipulação
começa nas nossas sensações, no extrato mais básico do nosso psiquismo –
naquilo que a Semiótica chama de “primeiridade”, dentro da fenomenologia de
Charles Peirce.
Upstream Colour
nos ajuda a reformular totalmente nossas teorias subliminares ou hipodérmicas
sobre manipulação, seja política, midiática ou mercadológica. O alvo de toda
manipulação não são corações e mentes. O verdadeiro e mais efetivo alvo é o
campo sensorial das relações mais imediatas dos nossos corpos com o mundo.
Ficha Técnica
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Título: Upstream Color
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Diretor: Shane Carruth
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Roteiro: Shane
Carruth
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Elenco: Amy
Seimetz, Frank Mosley, Andrew Sensenig. Shane Carruth, Thiago Martins
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Produção: erbp
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Distribuição: Compact
Media Group
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Ano: 2014
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País: EUA
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