terça-feira, outubro 23, 2018

Memória, identidade e controle mental no filme "Upstream Colour"



Um filme inclassificável. Pode ser um romance com uma racionalização sci-fi. Uma jovem engole uma capsula medicinal contendo um estranho verme cuidadosamente cultivado em estufa, tornando-se hospedeira tanto da larva como do controle mental de alguém que a transformou numa cobaia involuntária de um experimento. Agora ela terá flashbacks, flashfowards e flahs periféricos tornando o filme “Upstream Colour” , 2014, de Shane Carruth (“Primer”) num filme estranho, surreal. Num verdadeiro quebra-cabeças que cobra do espectador esforço cognitivo para restabelecer a linearidade. Uma experiência enigmática, única, hipnótica e surreal. “Upstream Colour” nos dá a sensação de, através de um microscópio, estarmos vendo a matéria-prima das nossas memórias e identidades: as sensações mais básicas dos nossos cinco sentidos. Tão efêmeras e frágeis que podem ser roubadas quando menos esperamos.

Do quê são formadas nossas memórias? Certamente, o ponto de partida são sensações, percepções fugidias, efêmeras - táteis, cheiros, pregnâncias. Que formam multicamadas de imagens e ressonâncias. O que acaba por criar um paradoxo: como nossa identidade estável e perene (necessária para desempenharmos os diversos papéis na sociedade – apesar da diversidade, sempre continuamos os mesmos) pode ser construída sobre essa base de sensações tão lábeis?

Upstream Colour é um filme sobre isso: identidade, memória e percepção. Quem já assistiu ao filme anterior de Shane Carruth, o sci-fi Primer (2004 – clique aqui) sabe o que espera: enquanto nesse filme Carruth faz uma desconstrução quase matemática do tempo, em Uspstream Colour é como se observássemos em um microscópio a própria ideia de sensibilidade na qual se fundamentam nossas experiências mais primárias, antes que elas se transformem em emoções e identidades socialmente sancionadas.

Por isso a narrativa do filme é obscura, repleta de flashbacks, flashfowards, flashs periféricos, livres associações de fragmentos de memórias dos protagonistas. Um verdadeiro quebra-cabeças que obriga o espectador por em ordem para criar uma configuração.

Por isso, Usptream Colour é um filme que resiste a qualquer tentaiva de sinopse. O ponto de partida é estranho e bizarro: um personagem que engole um verme branco que o transforma numa espécie de hospedeiro, sujeito ao controle total da mente por alguém que, para não ser identificado pela cobaia desse experimento, diz que seu rosto é um sol flamejante impossível de ser encarado...


Uma droga cujo efeito posterior é essa desconexão entre entre percepção, memória e identidade. O resulta em um casal de protagonistas disfuncionais, que perderam seus trabalhos e o passado e tentam se agarrar um no outro para tentar juntar flash de memória.

Mas esse não é o plot central. O que resulta num filme puramente sensorial, estranho e surreal sobre vidas que foram transformadas do dia para noite. Mas principalmente, Upstream Colour é um estudo da substância que forma nossa memória e identidade. Tão frágil que pode ser capturada por um estranho experimento biológico.

O Filme


Na primeira sequência vemos um saco de lixo com algumas correntes de papéis. Um homem deposita o saco em uma lixeira. Um garoto o observa. Outro homem recolhe cuidadosamente vermes de algumas plantas em uma estufa. Coloca-os em pequenas cápsulas medicinais.

Claramente vemos o cultivo de algum tipo de droga. Ao mesmo tempo também vemos alguns jovens que parecem experimentar uma versão mais leve dessa droga: divertem-se em duplas, dançando e fazendo brincadeiras sincronizadas, como movimentos espelhados um no outro.

Mais tarde (pelo menos em termos de tempo de exibição do filme) algo acontece com Kris (Amy Seimeitz). Um homem identificado nos créditos apenas como “Ladrão” (Thiago Martins) parece colocá-la em estado hipnótico após força-la a ingerir uma daquelas cápsulas medicinais com o pequeno verme. Posteriormente, tudo o que verá, dirá ou fará será ditado pelo “Ladrão”Mas ela não pode olhar para ele, porque ele diz que a sua cabeça “é feita da mesma substância do Sol”.


Um outro homem, a quem os créditos chamam de “The Sampler” (Andrew Sensenig) coleciona, grava e executa sons (parece ser algum designer de áudio) e realiza cirurgias sincrônicas entre Kris e um porco, aparentemente transferindo um parasita de um para o outro. Estabelecendo um vínculo psíquico indefinível entre Kris e o animal.

Mais tarde (sempre em termos de tempo de tela, pois nada é linear) Kris encontra Jeff (Shane Carruth) em um trem. Ele se conectam. Seus pensamentos se misturam (esse parece ser um dos efeitos colaterais do experimento), o que quer dizer que ambos passam a se convencer que as memórias foram apropriadas pelo outro.

Parece que ambos foram cobaias do experimento do “Ladrão”, que roubou deles dinheiro e propriedades enquanto estavam sob efeito hipnótico da droga. Perderam seus empregos, para depois se agarrem em subempregos, enquanto um tenta com o outro resgatar alguma coisa que foi perdida entre eles. Kris tenta reconstruir a sua vida ao lado de um homem que pode ou não ter passado a mesma experiência.


Olhar gnóstico


São 90 minutos de absoluta perplexidade para o espectador. Muitas vezes temos a sensação que Upstream Colour navega entre o “body horror”  de David Cronemberg, o surrealismo futurista de Philip K. Dick, ou o romantismo hiper-formalista do cineasta chinês Wong Kar-wai – Obssesion (2004) ou Amor à Flor da Pele (2000).

Se o espectador ver o filme como um romance, poderá interpretá-lo como o nascimento de uma nova identidade quando um casal se une; se olhar Upstream Color como uma ficção científica, poderá se concentrar no papel dos vermes, dos porcos e no estranho criador simultaneamente de sons e de suínos. Mas se for fã de cinema, poderá encontrar na película ecos de Tarkowsky, Bresson e Godard.

 Ou ainda, sob um olhar gnóstico, como a memória, a matéria-prima da nossa identidade, pode ser facilmente manipulada pela ilusão. Memórias são formadas por sensações que antecedem as próprias emoções. Emoções são a posteriori (são construções sociais como o amor, ódio, ou empatia). As sensações são brutas, cruas, o próprio mundo ao redor nos afetando (afecção) através dos nossos corpos e sentidos.


Daí o paradoxo: como nossa identidade estabilizada que nos acompanhará por toda existência pode se fundamentar em algo tão frágil e fenomênico? Talvez Upstream Colour revele a natureza de toda manipulação: política, midiática, farmacológica, demiúrgica e assim por diante.
Na verdade toda e qualquer manipulação começa nas nossas sensações, no extrato mais básico do nosso psiquismo – naquilo que a Semiótica chama de “primeiridade”, dentro da fenomenologia de Charles Peirce.

Upstream Colour nos ajuda a reformular totalmente nossas teorias subliminares ou hipodérmicas sobre manipulação, seja política, midiática ou mercadológica. O alvo de toda manipulação não são corações e mentes. O verdadeiro e mais efetivo alvo é o campo sensorial das relações mais imediatas dos nossos corpos com o mundo.


Ficha Técnica 

Título:  Upstream Color
Diretor: Shane Carruth
Roteiro: Shane Carruth
Elenco:  Amy Seimetz, Frank Mosley, Andrew Sensenig. Shane Carruth, Thiago Martins
Produção: erbp
Distribuição: Compact Media Group
Ano: 2014
País: EUA

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