Até 2015, o Enem era noticiado pela
grande mídia como “eleiçoeiro” e “populista”, uma “fogueira” (a “fogueira do
Enem”) na qual os alunos viviam assustados e lesados com sucessivas denúncias
de fraude e desorganização. A partir do ano passado, tudo mudou como num passe
de mágica: agora é o “Enem nota 1.000” para aqueles alunos mais “focados e
determinados” no qual fraudes são problemas pontuais tecnicamente resolvidas,
sem mais o protagonismo do Judiciário. Depois de anos do jornalismo de guerra
no esgoto, a grande mídia tenta recuperar o seu produto tão vilipendiado: a
notícia. Enquanto joga ao mar antigos líderes como o jornalista William Waack
para recuperar uma suposta isenção, apoia agências de “fact-checking” para se prevenir
das “fake news” que ela própria inventou. Mas pela sua missão de salvar as
aparências, o “fact-checking” ignora as mudanças do viés atribuídos aos fatos
ao longo do tempo, de acordo com a mudança do contexto. A mudança da cobertura
midiática dada ao Enem de 2009 a 2017 é um caso exemplar: a mentira não está
apenas no ocultamento ou na invenção – está na angulação, seleção e edição.
O episódio em que William Waack, fiel
soldado dos tempo do jornalismo de guerra, foi jogado prontamente ao mar pela
Globo depois do vazamento de um vídeo no qual o jornalista fazia galhofas
racistas é apenas mais um capítulo do refluxo na grande mídia, depois de anos
de jornalismo de esgoto e promoção do ódio como matéria prima do mercado de
opiniões.
Nesse momento a mídia corporativa quer
jogar fora os anéis para permanecer os dedos – foi por muito tempo um partido
de oposição política e esqueceu que, afinal, vende uma mercadoria chamada
notícia. Um produto seriamente violentado durante a cavalgada que culminou no
impeachment de 2016.
Agora em parcerias com a grande mídia
como Folha e Globo surgem agências especializadas em fact-checking, checagem das notícias para a prevenção contra as
“fake news”. Mais uma vez a mídia corporativa tenta se isentar dos seus pecados
jogando a bucha das notícias falsas nas costas dos blogs, redes sociais e na
campanha eleitoral de Donald Trump – e ocasionalmente em hackers russos e na
própria figura de Putin.
Se essas agências estão assim tão
comprometidas com a “verificação sistemática do grau de veracidade das
informações que circulam no País”, como orgulhosamente declara a Lupa, então
deveriam acrescentar mais uma “ferramenta” a sua “plataforma”: o Jornalismo
Comparado.
Não confunda com a clássica disciplina do
currículo básico dos cursos superiores de Jornalismo – a comparação das
diferentes tendências e condições de produção, circulação e consumo de notícias
no mundo. Aqui temos uma abordagem sincrônica
do Jornalismo – diferentes sistemas comparados num momento específico.
Com outro tipo de Jornalismo Comparado, diacrônico, teríamos um estudo da
cobertura jornalística através do tempo: perceber os diferentes vieses
(angulação, seleção, edição) na cobertura de um mesmo evento em diferentes
contextos políticos e econômicos.
“Checadores” e o Jornalismo Comparado
Certamente os “checadores” (nova e
surpreendente especialidade dentro do Jornalismo cujo exercício da “checagem”
deveria ser a rotina primária da profissão) ficariam surpresos: a notícia não
se resume apenas à informação (a
transitividade entre notícia e realidade). É também Comunicação – as diferentes interpretações que a grande mídia faz
de um mesmo evento em contextos diferentes.
Um bom ponto de partida para os neófitos
“checadores” seria fazer uma comparação entre a cobertura dada ao Enem no
período do jornalismo de guerra entre 2009-2016 e a cobertura dada desde o ano
passado, contexto no qual a mídia corporativa retorna às sua funções em tempos
“de paz” após a missão cumprida do impeachment: comercial (prestação de
serviço) e ideológica (conectar educação e meritocracia).
Enem e a cobertura monofásica da grande mídia
O
Exame Nacional de Ensino Médio, realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e
Pesquisas Educacionais (Inesp), foi criado em 1998 com o objetivo de avaliar a
qualidade do ensino médio. Mas a partir de 2009 foi universalizado por meio da
unificação dos vestibulares federais – mudou a face dos vestibulares do País ao
democratizar o acesso de estudantes à melhores universidades.
Desde então, o Enem transformou-se numa
instituição que mudou o ensino superior, junto com a expansão das universidades
privadas e públicas.
Porém, o viés da grande mídia desde então
foi monofásico: a bateção na tecla de que o Enem era “eleiçoeiro” e “populista”
(transformar um conceito substantivo como “democratização” em uma sequência
metonímica de adjetivos), frustrante para os estudantes com a sucessiva cadeia
de vazamentos de provas e fraudes (uma delas envolvendo uma gráfica que tinha a
Folha como sócia... hummm!!!...) e desorganizando os vestibulares já
estabelecidos pela ausência de qualquer racionalidade administrativa.
Mesmo dando apenas uma olhada superficial
nas primeiras páginas dos jornais desse período, dá para perceber: o Enem era
reprovado por Juízes, os estudantes frustrados pela má gestão do processo e um
sistema essencialmente criminógeno com as sucessivas denúncias de fraudes e
desorganização.
Nos telejornais o foco eram nas
reclamações de “muitos estudantes” por não poderem usar relógio, lápis e
borracha. “Novas regras que deixam estudantes tensos”, dizia uma edição do JN
da Globo em 2010.
“Matérias que assustam os alunos”, “um
exame longo e cansativo para todo mundo”, “dificuldades para fazer a redação”
era o viés do JN de 27/10/2014.
“MEC elimina candidata errada por foto
postada em sala do Enem – ela ficou em estado de choque”; “Hacker tenta invadir
site com notas do Enem”, “Grupo critica a correção da redação” eram tipos de
manchetes corriqueiras em sites como G1 e Uol em 2012.
Mas é nos slides-show desses sites que o
viés se cristaliza na cobertura fotográfica: estudantes correndo diante do
portão que fecha, rostos preocupados e tensos, um estudante se arrasta por
baixo de uma porta que está baixando, e as onipresentes grades e ferros como
fundo dos closes em alunos criando uma atmosfera de tensão e prisão.
Poucos sorrisos, estudantes cabisbaixos e
sentados no meio fio ou pelos cantos de muros. Há uma atmosfera de dispersão e
desordem, com estudantes figurados isolados e com olhares perdidos para um
ponto qualquer.
Em linhas gerais, simplesmente a grande
mídia ignorou a principal notícia que deveria ser “checada” e investigada –
Enem democratiza o acesso ao ensino superior? Ficou apenas nas angulação sobre
o estudante (estressado e angustiado) e o sistema (precário, mal gerido,
vulnerável e criminógeno).
No lugar preferiu apresentar o ranking da
melhores e piores escolas (e no caso da Folha, reforçando a ideia de fosso
entre o desemprenho do Sudeste e Nordeste) ou mostrar estudantes tentando
escalar portões fechados e gritando “Eu odeio o Enem!” – aliás, muitos deles
eram universitários que se faziam passar por secundaristas para “aparecer na
mídia” e viralizar nas redes sociais, na falta de coisa melhor para fazer – clique aqui.
“Enem nota 1.000”
A partir de 2016 (com a missão cumprida
do impeachment reconduzindo o País à “normalidade”) a mídia corporativa
percebeu que o Enem já estava consolidado e que deveria ser inserido em uma
outra narrativa: a da meritocracia num contexto de crise econômica e desemprego
no qual apenas os melhores sobreviverão.
A “retranca” da cobertura muda: vira o
“Enem nota 1.000” para a Folha, concentrado em relatos de estudantes bem
sucedidos com metodologias de estudos exemplares.
A angulação da cobertura deixa de ser
monofásica para se transformar num tripé: o estudante (autoconfiante, a
autoestima etc.), o sistema (os problemas de fraudes agora são pontuais, em
geral restritos a cidades interioranas) e o propósito do Enem, com um maroto
deslocamento: do objetivo da democratização do acesso ao ensino superior (populista
para a grande mídia), para a narrativa da meritocracia – o Enem como mais um
processo seletivo no qual somente os melhores (os mais focados e determinados)
passarão.
Se no passado a pauta era negativa
(“rachar de estudar”, “aluno estressado”, “fogueira do Enem” etc.), a partir do
ano passado tudo mudou: “estudante desafia a fogueira do Enem”, “Com bom humor
estudante vai ao Enem”, “véspera de Enem é dia de descanso e relaxamento”.
Dessa vez notícias de que mais ônibus
serão colocados nas ruas em dias de provas para evitar que alunos encontrem
portões fechados nos locais das provas são destacadas e as tradicionais imagens
de alunos chorando e escalando grades sumiram ou, no mínimo, ficaram restritas
a eventos pitorescos.
Telejornais e portais na Internet
deixaram de priorizar denúncias, fraudes e protagonismo de juízes e
procuradores para se concentrar no serviço aos alunos: técnicas de estudos,
revisões de conteúdos, dicas de relaxamento.
UOL: 05/11/2017 |
E a cobertura fotográfica mudou
radicalmente o enfoque: agora vemos multidões de alunos organizados entrando
nos locais de provas (contrastando com alunos caminhando dispersos e isolados
do passado) e estudantes posando sorridentes sem mais ter as onipresentes
grades e portões de ferro como fundo.
O curioso é que, mesmo quando mostra os tradicionais
alunos retardatários correndo para passar pela fresta do portão que fecha, eles
estão sorridentes.
Mas o principal viés é a substituição da
função democratizadora do Enem pelo ideário meritocrático das provas como mais
um processo seletivo como tantos outros pelos quais o jovem passará na vida.
Dessa vez a grande mídia encaixa o Enem
no contexto das atuais reformas e flexibilizações que reciclam os milhões de
desempregados em empreendedores que aguardam o momento em que a foça de
trabalho vai se converter em capital, virando o ex-assalariado em capitalista
de si mesmo.
Agora o Enem cumpre uma estrita função
ideológica: narrativa individualista do sucesso – diante do fracasso, a culpa
sempre será do indivíduo que não teve vontade, foco etc. suficientes.
Para os neófitos “checadores”, um pequeno
quadro de resumo desse nosso rápido exercício comparativo:
Viés:
|
O
Estudante
|
O
Sistema
|
Objetivo
|
Contexto
|
2009-2015
|
Estressado, desmotivado, assustado,
lesado
|
Criminogeno com protagonismo de juízes
e promotores
|
Ranking das melhores escolas ao invés
da democratização do ensino superior
|
Jornalismo de guerra (grande mídia como
principal partido de oposição
|
2016-2017
|
Relaxado, autoconfiante, autoestima
|
Fraudes pontuais e tecnicamente resolvidas sem protagonismo do
Judiciário
|
Meritocracia, empreendedorismo individualismo
|
Pós-impeachment: notícia como produto (prestação de serviço e função
ideológica)
|
É claro que isso é um exercício
comparativo ainda preliminar, carecendo de uma quantificação textual (manchetes
e espaço ocupado pelas matérias) e icônica (conotação das fotografias e Gestalt
do espaço dessas matérias na mancha gráfica de uma publicação ou site.
Bom,
isso seria o trabalho do desenvolvimento de uma nova ferramenta diacrônica
(Jornalismo Comparado), ao lado do trabalho sincrônico do fact-cheking.
Restrita à checagem (a existência de
transitividade entre informação e fato), o fact-checking perde a dimensão
histórica: as diversas “transitividades” (vieses, interpretações etc.) que um
mesmo fato teve ao longo do tempo em diversos veículos.
Postagens Relacionadas |