Cada vez mais filósofos, físicos e matemáticos
suspeitam que o Universo seria um gigantesco game de computador ou algum tipo
de simulação tecnológica. Qual a principal evidência? A capacidade humana de
também criar simulações e ilusões narrativas como o Cinema, TV e games de
computador. Em “The Frame” (2014), Jamin Winans (“Ink”) propõe uma espécie de
quebra-cabeças metafísico inspirado no célebre “Princípio da Correspondência”
do Hermetismo: assim como roteiristas escrevem narrativas e dramas de
protagonistas enquadrados pelos planos de câmera vistos pelos espectadores no
cinema e na TV, será que da mesma forma nossas vidas seriam, nesse momento,
roteirizadas e editadas como algum tipo de série assistida por alguma divindade
malévola no além? Os produtos audiovisuais funcionariam como pequenos fractais
– tal como o fracta na geometria, um fragmento que reproduz dentro de si,
infinitamente, o padrão do todo. Esta é a curiosa “narrativa em abismo”
gnóstica proposta por Jamin Winans em “The Frame”.
Em 1973 o rádio astrônomo do MIT, John
Ball, lançou a bizarra “Hipótese do Zoológico”: a vida alienígena existe e ela
está bem diante de nós. Está tão à frente que não querem nos afetar ou
influenciar – preferem nos observar a partir de um ponto oculto no Universo.
Desde então, a ideia de Deus onipresente
e onisciente que nos observa foi substituída por aliens. Para, então, chegarmos
no cinema em filmes como Cidade das Sombras
(o homem como cobaia em secreto experimento alien) ou a radical visão gnóstica
de que, afinal, Deus, aliens, Inteligência Artificial ou corporações é tudo a
mesma coisa – expressa em clássicos gnósticos como Matrix, Show de Truman ou Vanilla
Sky. Todos são entidades malévolas que não nos amam.
Para chegarmos até na Física onde a
hipótese do Universo ser uma simulação computacional ou um game cósmico é
levada a sério por físicos, matemáticos e cientistas desde o final do século
passado – sobre isso clique aqui.
Mas há um denominador comum em toda essa
digressão: a questão do livre-arbítrio e do conflito entre liberdade e necessidade,
que assombra há séculos a história da Filosofia – será que temos a vida em
nossas mãos ou somos simplesmente fantoches de algum propósito cósmico alheio à
nossa consciência?
The
Frame (2014) não só é
mais um filme que entra nesse viés gnóstico-filosófico, mas eleva a temática a
um thriller metafísico e um quebra cabeças de mistério com um interessante mix
de obscuridade e pistas para o espectador.
O diretor Jamin Winans é bem conhecido
desse blog Cinegnose, principalmente
pelo seu filme anterior Ink (2009):
um filme que inovou a forma como o cinema representa as relações entre o mundo
espiritual e o mundo físico – clique aqui. Muitos críticos o
consideram um Christopher Nolan com baixo orçamento – é capaz de abordar temas
metafísicos dentro de um subgênero chamado “fantasia urbana”: forma de fantasia
contemporânea na qual mitologias fantásticas são adaptadas à vida urbana
cotidiana.
Princípio da Correspondência
O título “The Frame” tem a ambiguidade
necessária buscada pelo diretor: poder ser tanto um sistema, um quadro ou o
enquadramento da câmera nos quais estão inseridos os protagonistas.
Como no filme Ink, novamente Winans vai fazer uma reflexão de como a dimensão
espiritual, fantástica ou mitológica estão por trás secretamente influenciando
e controlando a nossa vida ordinária.
Mas dessa vez, Winans vai mais além ao
fazer uma metalinguagem com o próprio cinema de uma forma inusitada: assim como
roteiristas escrevem narrativas e dramas de protagonistas que são enquadrados
pelos planos de câmera vistos pelos espectadores no cinema e na TV, será que da
mesma forma nossas vidas são nesse momento roteirizadas e editadas como algum
tipo de série assistida por alguma divindade malévola no além?
Muitos pesquisadores, entre os quais esse
humilde blogueiro, acreditam que o cinema e o audiovisual são atualizações
contemporâneas da velha Alegoria da Caverna de Platão. Se isso for verdade,
estaríamos diante da célebre Princípio da Correspondência do Hermetismo de
Hermes Trimegisto – o que está acima corresponde o que está abaixo, e o que
está abaixo corresponde o que está em cima.
Se somos capazes de produzir mundos
simulados no cinema e games virtuais de computador, então alcançamos um nível
meta no qual representamos a nossa própria condição nesse cosmos: também somos
“narrados” e dirigidos por algum roteirista cósmico. Mas ele pode estar mal intencionado...
O Filme
The
Frame acompanha um criminoso relutante chamado Alex (David Carranza) que
tenta se libertar de um perigoso cartel de drogas – órfão na infância, Alex foi
adotado por dirigentes do cartel e cresceu como um dos mais corajosos membros.
Agora, tenta se libertar das dívidas com o cartel e fazer sua própria vida.
Enquanto vemos Alex fugindo da polícia
após uma ação de tráfico mal sucedida, acompanhamos a vida da paramédica Sam
(Tiffany Maulem): ela entra numa casa para salvar uma mulher seriamente ferida
numa cena de violência doméstica, defendendo-se ela própria da agressividade do
marido abusador.
Mais tarde, Alex chega na sua casa e liga
a TV, para percebermos que as coisas começam a ficar estranhas: ele vê cenas de
uma série chamada “Esperança Urbana” na qual Sam é a estrela em uma sequência
idêntica a que vimos anteriormente no suposto mundo real.
Enquanto isso, Sam chega também em sua
casa, liga a TV e acompanha as mesmas cenas de Alex fugindo da polícia – ele é
a estrela de outra série, chamada “Ladrões e Santos”.
Logo nos primeiros 15 minutos Jamin
Winans entrega a primeira virada narrativa: tarde da noite, Sam e Alex
descobrem que têm seus aparelhos de TV conectados e são transmitidos ao vivo
mutuamente, de uma sala de estar para a outra.
Depois de uma primeira reação de pânico
que levou a quebrar a TV, Alex arruma outro aparelho para ambos começarem a conversar – Sam tem um
conhecimento íntimo sobre a vida de Alex, por acompanhar a série desde o início
em quatro temporadas; e Alex igualmente conhece detalhes pessoais de Sam.
Parece que as vidas de dois estranhos estão conectadas através das telas de TV em apartamentos. Será que Alex está sendo
alvo de algum bizarro dispositivo de vigilância policial? Sam e Alex estão
perdendo a noção de realidade? Ou há algum propósito cósmico maior unindo os
dois?
A Vida é um milagre ou apenas o caos? – alerta de spoilers à frente
Na superfície The Frame é um thriller alucinante e surreal com elementos de
tensão e ação constantes. E no núcleo da narrativa é uma história de amor.
Porém, o que une Alex e Sam é que ambos foram marcados por eventos traumáticos
no passado e são incapazes de seguir em frente na suas vidas. O mais provável é
que são anjos da guarda um do outro (afinal, cada um deles vê os preview dos próximos capítulos da
temporadas das respectivas séries), mas parecem que estão separados e
capturados em alguma espécie de limbo metafísico.
Será que é vida é um milagre ou o caos?
Essa é a questão que perpassa todo o filme e que Sam e Alex perguntam um para o
outro em diversas sequências. Ou a natureza da existência é o milagre do
livre-arbítrio ou o caos do determinismo.
A certa altura Sam tenta alertar que Alex
será morto em algum tipo de emboscada. Como ela sabe? Por que assistiu a um preview dos próximos episódios. Alex não
aceita crer que é apenas um personagem em uma série e que será assassinado por
um produtor ou redator – “Essa é a porra da realidade!”, desespera-se.
E a questão gnóstica chave do filme: “Que
tipo de pessoa cruel criaria isso? Com que objetivo? O que eu fiz”,
desespera-se Alex em uma das conversas através da tela da TV.
Se no filme anterior Ink uma facção fascistoide do Plano Astral, os “Incubus”,
instigavam nas pessoas pesadelos de ressentimento e humilhação para manipular os
vivos, da mesma forma em The Frame há
um sistema cósmico (que se confunde metalinguisticamente com o próprio cinema e
TV) de conspiração contra a liberdade humana – dessa vez uma divindade malévola
personificada por produtores e roteiristas de séries televisivas.
Duplo simbolismo
Jamin Winans propõe um duplo simbolismo
em The Frame: primeiro aquele relativo ao hermetismo do Princípio da
Correspondência – se somos capazes de produzir ilusões das imagens em movimento
através da tela e das câmeras, então a própria realidade é uma narrativa
audiovisual cósmica – é o que é pior, mal produzida, repleta de clichês
melodramáticos como as séries “Ladrões e Santos” e “Esperança Urbana”.
E segundo: Winans coloca o espectador num
interessante jogo de “narrativa em abismo” – assistimos a protagonistas
prisioneiros em séries televisivas que, ao mesmo tempo, são assistidas por
alguma divindade malévola (o “roteirista”) e por nós, os espectadores. Um jogo
metalinguístico que cada vez mais se radicaliza, principalmente nas sequências
finais.
Mas, como em todo filme que trabalha essa
cosmologia gnóstica (somos prisioneiros em um universo ficcional criado por um
roteirista malévolo sob a ilusão da realidade e do livre-arbítrio) há a
oportunidade da gnose redentora que nos faça sair do buraco da existência.
“Eu sei que você está com medo, mas somos
testados para que possamos ver através dos olhos de Deus, e ver em nós o que
Ele vê”, diz a certa altura o mentor de Alex, Noah (Cal Bartlett), em seu leito
de morte.
Para Winans, como para o próprio
Gnosticismo, a redenção somente pode ser encontrada dentro de nós mesmos. Nada
e ninguém intercederá ao nosso favor.
Como no clássico Show de Truman, o Demiurgo consegue nos manter alienados de nós
mesmos por duas estratégias: a racionalização terapêutica (Sam é tratada por um
psicoterapeuta para dar conta das suas “alucinações”) e o isolamento – Sam e
Alex são mantidos separados e isolados, cada um em sua própria “série” ou
realidades alternadas.
Música e Gnose
E para Winans, somente a música
conseguirá romper esse isolamento, fazendo-nos conectar a nós mesmos. Sam
costuma cantarolar quando está sozinha o que, sem saber, permite uma abalo nas
estruturas que separam as realidades alternadas.
Segundo a mitologia gnóstica, o Tempo é o
grande ponto fraco do Demiurgo diante do qual até ele deve se submeter – a
entropia, o caos e, por fim, a morte.
E a música nada mais é do que a maior
demonstração do livre-arbítrio humano por meio da arte: a livre fluir das notas
musicais (a melodia) por meio da organização do tempo através do ritmo,
compasso e pulsação. O Tempo agora não mais manipulado pelo Demiurgo, mas dessa
vez utilizado pelo próprio homem.
Em The
Frame, Jamin Winans chega ao limite da sua reflexão CosmoGnóstica: a
própria mídia cinema e audiovisual como uma espécie de fractal que representa o
Todo – espectadores e personagens, todos prisioneiros em narrativas ficcionais
que fingem ser reais.
Ficha Técnica
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Título: The Frame
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Diretor: Jamin Winans
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Roteiro: Jamin Winans
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Elenco: David Carranza, Tiffany Mualem, Cal Bartlett
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Produção: Double Edge Films
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Distribuição: Itunes, site Double Edge Films e Amazon (DVD e Blu-Ray)
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Ano: 2014
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País: EUA
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