Nem a
Patafísica (a “ciência das soluções imaginárias”) de Alfred Jarry ou o teatro
do Absurdo de Backett conseguiriam imaginar um texto tão tautológico, circular,
auto-referencial e metalinguístico como a nota oficial da Globo diante do
escândalo das denúncias na Justiça dos EUA do pagamento de suborno pela
emissora para a FIFA para ter a exclusividade nas transmissões do futebol:
“após dois anos de investigações internas, a Globo apurou que jamais realizou
pagamentos não previstos em contratos...”, leu a nota um constrangido jogral de
apresentadores do JN. Desde que o ex-apresentador do Globo Esporte, Tiago
Leifert, transformou a inauguração de um ônibus-estúdio em notícia mais
relevante do que o próprio treino da seleção brasileira que deveria cobrir, a emissora
vive um processo de negação “tautista” (tautologia + autismo) no qual
transforma “eventos” em produtos próprios, criando uma atmosfera de amoralidade
e blindagem. Assim como as telenovelas. Mas isso pode lhe custar caro: não
perceber que a investida do FBI contra a FIFA (atingindo diretamente a Globo) é
mais uma estratégia de lawfare na geopolítica dos EUA. Dessa vez, para
reconfigurar o cenário da grande mídia mundial.
Dessa
vez não teve o tradicional bordão “policiais federais nas ruas...” com que orgulhosamente
anuncia mais uma operação da Lava Jato nos telejornais globais.
E também
não teve o tradicional giro das “repercussões internacionais” nos jornais do
planeta sobre as notícias dos escândalos nacionais, como foi recentemente com a
prisão de Carlos Arthur Nuzman, presidente do Comitê Olímpico Brasileiro.
E muito
menos infográficos dando destaque para trechos das transcrições das delações
premiadas sob a vozes estudadamente indignadas dos apresentadores dos
telejornais da Globo.
Não.
Dessa vez apenas olhares constrangidos e uma locução também estudada, tentando
dar um tom protocolar e burocrático, sobre o julgamento da corrupção na FIFA
envolvendo pagamento de subornos de seis empresas de mídia para a exclusividade
de direitos de transmissão do futebol – Fox Sports, Televisa, Media Pro, Full
Play, Traffic e Globo.
Sendo
que a Globo entra no imbróglio de forma direta, através da Traffic do
jornalista J. Hawilla, ex-Globo. E dono da TV TEM, rede com emissoras de quatro
cidades no interior paulista, todas afiliadas à Globo.
Depois do alerta vermelho da Interpol, o
advogado ítalo-argentino Alejandro Burzaco (ex-presidente de uma empresa
argentina de marketing esportivo que teria sido a intermediária no pagamentos
das propinas) se apresentou em uma delegacia de polícia na Itália e se tornou
uma das testemunhas-chave sobre os pagamentos de propinas à FIFA.
Redes sociais obrigam Globo a dizer alguma coisa
Essas
denúncias sobre as relações promíscuas da Globo com CBF e FIFA para garantir o
direito de exclusividade na transmissão dos jogos são antigas. Por exemplo, em
2012 a Record denunciava que no Brasil o método da licitação da FIFA para os
direitos de transmissão da Copa do Mundo era diferente em relação aos outros
países: “fora do horário comercial, sem ser à luz do dia e de forma
transparente”, protestou a emissora paulista na época em nota oficial.
A Record
havia sido preterida, mesmo com uma proposta que cobria a da Globo.
Fosse em
outros tempos, a delação de Burzaco (graças à Justiça norte-americana enquanto
aqui no Brasil para o PGR e Ministério Público nada vem ao caso) mereceria o solene
silêncio na programação da Globo. Mas hoje, essa estratégia de negação deixou
de ser viável por causa das redes sociais.
Assim
como no caso William Waack, a delação nos EUA impactou as redes sociais e
obrigou a emissora a se manifestar. Além do puro pânico demonstrado pelo jogral
constrangido dos apresentadores, a nota oficial da Globo revela o sintoma de
uma estratégia de sobrevivência que a Globo vem assumindo nesse século diante
do avanço das novas tecnologias e a mudança rápida do cenário
político-econômico: o tautismo (tautologia + autismo).
O que é “tautismo”?
Antes de
qualquer coisa, vamos esclarecer esse conceito de “tautismo”. Nada tem a ver
com o transtorno do espectro autista no campo da saúde mental. Esse neologismo
foi criado pelo pesquisador francês Lucien Sfez para se referir à “comunicação
confusional”: estágio no qual um determinado sistema de comunicação, pelo seu
gigantismo e poder, começa a traduzir qualquer informação externa a partir de
uma descrição que o sistema faz de si mesmo.
É o que
os teóricos dos sistemas (Varela e Luhumann) chamam de “fechamento operacional”
– de forma tautológica e auto-referencial os sistemas negam a realidade, filtrando-a
sob seus próprios termos - mais sobre esse conceito clique aqui.
Nos
tempos em que o pai Roberto Marinho era vivo, pelo menos ainda havia uma
percepção político-estratégica da realidade: Marinho sabia o momento certo de
jogar ao mar seus campeões quando sentia os ventos das mudanças, como foi no
caso do impeachment do presidente Collor em 1992.
Mas os
seus filhos parecem sofrer dessa crônica negação tautista, como revela a nota
oficial lida de forma constrangida através dos teleprompters pelos
apresentadores do JN: “após dois anos de investigações internas, a Globo apurou
que jamais realizou pagamentos não previstos em contratos...”, dizia a nota.
A Globo
noticiava que o Grupo Globo fora acusado de pagar propina e a própria Globo
investigou, chegando ao veredicto de que Grupo Globo era inocente das acusações
feitas numa corte em Nova York. E mais! Disse que o Grupo “não tolera qualquer
pagamento de propina” e que os “princípios editoriais não permitem que seja
diferente”.
Nota
oficial cuja lógica é delirante, circular, auto-referencial e tautológica. Nem
a Patafísica (a “Ciência da soluções imaginárias e das leis que regulam as
exceções”) de Alfred Jarry ou o Teatro do Absurdo de Samuel Beckett poderiam
imaginar tal peça dramatúrgica bizarra.
A metástase
Em
última análise, essa nota revela a metástase (o tautismo) de algo que o antigo
documentário Brasil: Muito Além do
Cidadão Kane, feito pelo Channel Four da Inglaterra em 1993, acusava: como
pode uma empresa privada, funcionando sob concessão pública, ter o monopólio
das comunicações sem nenhum tipo de regulação ou controle públicos? Para o
diretor do documentário, Simon Hartog, a Globo seria praticamente um governo
dentro do próprio Estado brasileiro.
Pela
delirante nota divulgada pela emissora, somente a Globo poderia investigar a si
mesma e isso bastaria! Dois anos de investigação sem nuca ter prestado contas
ao distinto público – a não ser quando se vê pivô em um escândalo de proporções
internacionais.
Se no
passado, mesmo com a consciência do poder político que representava o monopólio
da emissora, Roberto Marinho respeitava a mudança de direção da biruta (aquela
do aeroporto) que sinalizava mudanças de cenários, agora seus filhos se atiraram
de cabeça na aventura de tornar a Globo em um partido de oposição política,
cujo ápice foi impeachment de 2016 – levando a uma redução do ativo em caixa de
3 bilhões para R$ 990 milhões segundo o balanço da Globo de 2016.
E que
ainda convive com a perda do grau de investimento dos títulos da dívida do
Grupo Globo nos EUA – os chamados “bonds”, títulos convertidos da dívida pelos
bancos Itaú, Santander e Bank of America – clique aqui.
É
notável como nos últimos anos a cobertura esportiva, e principalmente o
futebol, feita pela emissora assumiu cada vez mais um caráter metalinguístico e
auto-referencial – tautológico.
Do ônibus-estúdio ao velório narrado por Galvão Bueno
Desde
que em 2012 o então editor e apresentador do Globo Esporte Tiago Leifert transformou
a inauguração de um ônibus estúdio em um evento mais importante do que o treino
da seleção brasileira, passando pelo cúmulo de Galvão Bueno narrar o “turbilhão
de emoções” do velório da Chapecoense, chegando ao ápice no qual jornalistas
globais entrevistarem jornalistas veteranos da casa durantes as Olimpíadas no
Rio para contar a história do evento, as
transmissões esportivas são cronicamente tautistas.
Tão
auto-referencial e metalinguístico (afinal, sintoma de que a Globo não cobre
mais “eventos” mas produtos da própria emissora, assim como uma telenovela do
Projac) que ficou sujeita a “derrapadas”, como o ato falho da apresentadora
Monalisa Perrone, no telejornal “Hora 1”, no qual “previu” o mando de campo da
partida final da Copa do Brasil, mais de 24 horas antes do sorteio na sede da
CBF, no Rio de Janeiro – clique aqui.
Essa
negação tautista da realidade dentro de um sistema de comunicação obeso, pesado
e fechado em si mesmo, é que propicia “atos falhos” como a galhofa racista de
William Wack diante de uma equipe de produtores e operadores de câmeras ou a
“previsão” do resultado de um sorteio ao vivo em um telejornal.
Tautismo e a atmosfera de amoralidade e blindagem
Certamente
o tautismo é capaz de criar uma atmosfera de amoralidade e de falsa sensação de
blindagem diante da realidade fora dos estúdios de TV.
A reação
padrão da Globo como sempre é tentar tapar o sol com a peneira para o distinto
público – além dos shows de auto-referencia e metalinguagem, tenta desviar as
atenções através da narrativa Lava Jato/denúncias/escândalos da crônica do
desmonte nacional.
Por
exemplo, diante do potencial escândalo da Operação Rimet, do Ministério Público
espanhol, em maio desse ano que identificaram pagamentos de propinas na venda
de direitos de transmissão da Copa do Brasil (clique aqui), a Globo contra-atacou com a
fritura do presidente Temer batendo bumbo das delações dos irmãos Batista, da
JBS, dando total apoio ao PGR de Rodrigo Janot.
É de se
esperar que diante das citações diretas à Globo nas cortes dos EUA, a emissora
também contra-ataque com novas delações que farão policiais federais irem para
as ruas. E, como sempre, ao vivo.
Mas toda
essa narrativa tautista torna a Globo cega ao xadrez geopolítico que a
estratégia de lawfare norte-americana põe em ação nesse momento: sob o pretexto
do combate às fake news e à corrupção em nome da transparência das relações
comerciais internacionais, grandes corporações como Google e Facebook derrubam
páginas e censuram conteúdos na Internet, enquanto FBI e o pesado dispositivo
de lawfare dos EUA são a vanguarda de uma reconfiguração da grande mídia
internacional.
E a
Globo está fora desse brave new world.
Ou será que os filhos de Roberto Marinho sabem disso e se preparam para vender
a emissora?
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