Uma mulher traumatizada pela morte do seu marido convive com sérios distúrbios do sono: sonambulismo, insônia e pesadelos. Sob tratamento em uma clínica especializada, finalmente consegue um sono reparador. Porém, algo de assustador começa a acontecer: a cada despertar, é como se acordasse em uma realidade alternativa com um novo sobrenome e pessoas conhecidas que não se lembram dela. “Sleepwalker” (2017) é um curioso filme que transita entre a estética “noir” (ninguém é o que aparenta ser), uma estranha atmosfera retro atemporal e a narrativa gnóstica sobre uma protagonista que parece navegar por diversas realidades em busca de memórias perdidas e crescente paranoia. O sonambulismo é o elo que em “Sleepwalker” une o “noir” com o gnóstico: estar desperto em um sonho é um evento marcado por uma forte carga simbólica de alguém que tenta acordar e encontrar a verdade. Filme sugerido pelo nosso antenado leitor Felipe Resende.
Sleepwalker (2017) é um daqueles filmes que deve ser
assistindo com muita atenção e, se possível, assisti-lo mais uma vez. Uma
narrativa que pega como temas a insônia, sonhos, memórias, esquecimento e a
paranoia, tudo recheado com simbolismo como a chuva e a tempestade, é promessa
de viradas e a certeza de que nada é aquilo que aparenta ser.
Com simbolismos e estilo do velho filme noir e uma estranha atmosfera atemporal
e retro, Sleepwalker é um filme que
lembrará Ilha do Medo (pelas
constantes viradas narrativas e a onipresença de clínicas psiquiátricas) e A Passagem (Stay, 2005) pela constante confusão entre sonho e realidade.
Com todos esses elementos, certamente Sleepwalker aborda os clássicos temas do
filme gnóstico: o protagonista insone (o símbolo da não adequação do personagem
à realidade em que vive e a resistência em dormir como necessidade de despertar
para a verdade, como em Donie Darko, Matrix,
Animais Noturnos, Cidade das Sombras etc.); a desesperada busca do resgate
da memórias – o esquecimento como a própria condição humana; a paranoia (o medo
de alguma maquinação arquitetada por alguém que não nos ama); e o esfacelamento
de tudo que parece concreto – a confusão entre o sonho (ou o pesadelo) e a
realidade.
O encontro do Noir com o Gnóstico
Sleepwalker é um exemplo de como os plots do filme noir e o gnóstico se confundem. Ambos os
gêneros de filmes surgem no século XX sob o signo de crises: o noir, influenciado pelo expressionismo
alemão (o gênero que expressou todos os temores e pesadelos que conduziriam ao
nazismo e a guerra), representou toda a ruptura social da grande depressão
econômica nos EUA, o crime e ilegalidade, a guerra e a paranoia do macarthismo.
E o filme gnóstico com a ansiedade do
final de milênio marcada pela ruptura tecnológica (o virtual e o digital) a
globalização e paranoia do terrorismo.
Por exemplo, não é para menos que
clássicos gnósticos como Blade Runner
(1982) confunde-se com a narrativa noir
- suspense policial sob contrastes violentos de claro e escuro na qual a
desconfiança e as aparências são onipresente em um mundo que parece se diluir
na chuva.
Assim como no filme gnóstico está
centrado no tema da desconstrução das ilusões, também o noir quer revolver essa fronteira entre as projeções do nosso
psiquismo e a realidade empírica.
Mas Sleepwalker
possui o liame que definitivamente une um filme noir com o gnóstico: o sonambulismo da protagonista – estar
desperto no sonho é um evento marcado por uma forte carga simbólica de alguém
que tenta acordar e encontrar a verdade.
O Filme
O filme abre com a protagonista
caminhando por uma rua noturna e vazia com um longa camisola branca – clássica
iconografia gótica. Ela está sonambula, com um olhar fixo e perdido, até ser
parada por policiais para ser levada de volta para casa.
Ela é Sarah Foster (Anna O’Reilly), uma
mulher profundamente traumatizada por ter testemunhado o suicídio do seu
marido, um famoso escritor. Com sérios problemas com o sono e atormentada por
pesadelos e sonambulismo, Sarah decide retornar aos seus estudos de
pós-graduação na esperança de que a mudança de cenário vai curar a sua aflição
noturna.
Cada vez mais preocupada com os episódios
de sonambulismo, decide visitar uma clínica de estudos e tratamento do sono,
onde conhece o Dr. Scott White – um médico que rapidamente passa a se
interessar pelo seu caso e as curvas incomuns nos gráficos de atividade
cerebral.
Enquanto procura um sono reparador na
clínica, cercada de elétrodos e equipamentos de monitoramento, Sarah começa a perceber que toda a vez que ela
acorda a realidade parece ter mudado: sua colega de apartamento é uma pessoa
diferente, seu sobrenome muda (de “Foster” para “Wells”), as roupas no seu armário
já nãos ervem mais para ela, uma médica psiquiátrica com a qual se consultou
não se lembra dela e na clínica não há registros do seu caso.
Em seus pesadelos Sarah está à procura de
uma mulher específica que, repetidamente, diz para ela ir embora. Depois, há um
homem misterioso que a persegue, ameaçando-a.
A única pessoa em quem pode confiar é no
Dr. White – com quem, claro, se apaixonará. Porém, esse recurso narrativo
clichê é uma mera pista falsa. Ninguém no filme é quem aparenta ser, incluindo
a própria protagonista, e o suicídio que testemunhou logo nas primeiras
sequência pode ser uma coisa completamente diferente...
A narrativa é deliberadamente confusa,
com uma estranha atmosfera entre o gótico e o retrô – as roupas de Sarah são
explicitamente ultrapassadas, os móveis em um estilo de época indefinida entre
os anos 60 e 70 e chuva e tempestade que cai em vários momentos do filme.
Estranha condição climática numa Los Angeles e colinas de Hollywood que chove
pouquíssimas vezes no ano.
Anomalias góticas e retro
Tudo para criar uma atmosfera onírica:
afinal, estamos na realidade? Ou tudo se passa no interior dos pesadelos de
Sarah? Ou, pior, Sarah está em algum limbo entre a vida e a morte, como no
filme A Passagem?
Com essas anomalias góticas, retro e
meteorológicas, associadas a um inegável estilo do cinema noir com suspeitas, traições e assassinatos, certamente o
espectador não estará pisando no sólido piso da realidade.
A grande virtude de Sleepwalker é como a narrativa transita fácil entre a mística
gnóstica e o campo demasiado humano do suspense noir.
E o fenômeno do sonambulismo da
protagonista é o elo que consegue unir tudo. No filme gnóstico, o esforço do
protagonista manter-se acordado durante a noite é o próprio esforço da busca da
verdade e do conhecimento. Mas não um conhecimento racional e lógico, porque na
teologia mística é na noite em que está tudo aquilo que dissolve o
conhecimento, a racionalidade e a lógica – de resto, tudo aquilo que nos mantém
na ilusão diurna.
Mesmo que tentemos nos manter acordado, o
sono é inevitável como função fisiológica. Entre o sonho produzida pela nossa
tela mental que apenas perpetua as ilusões diurnas por meio de toda uma carga
de simbolismos e a sonho lúcido (estágio mais avançado de desconstrução da tela
mental), está o sonambulismo e as chamadas “doenças” do sono. Na verdade,
tentativas de se manter desperto para alguma verdade interior.
Como navegar entre as diversas realidades
Sonâmbula, Sarah terá que transitar entre
as diversas realidades alternativas que se oferecem a ela a cada vez que acorda.
Isto é, transitar e evitar ser ludibriada pelas ilusões de cada realidade.
Associado ao simbolismo da chuva e
tempestade (fertilização mental e espiritual e, no filme noir, o mundo de certezas e aparências que se dilui), as diversas
realidades alternativas de Sarah remontam à milenar cosmologia gnóstica: após a
morte, o desafio é navegar entre os diversos mundos sem ser enganado ou
seduzido pelas ilusões – cuja queda nos faria sermos mais uma vez aprisionados
pela armadilha da reencarnação, reencenando o drama da prisão nesse mundo.
O drama de Sarah em Sleepwalker é transitar, entender e resolver a verdadeira teia de
simbolismos, pistas falsas e a crescente paranoia entre as diversas realidades
alternativas. Um movimento em espiral que, como em toda narrativa gnóstica, é a
busca do autoconhecimento do protagonista cujas consequências repercutirão em
todos ao seu redor.
Ficha Técnica
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Título: Sleepwalker
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Diretor: Elliott Lester
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Roteiro: Jack Olsen
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Elenco: Richard Armitage, Jake Broder, Ahna O’Reilly, Matthew Del Negro,
Rachel Melvin
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Produção: Night and Day Pictures
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Distribuição: MarVista Entertainment
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Ano: 2017
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País: EUA
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