“Entre o
Bem e o Mal” (“Adams Æbler”,
2005), comprova a tese de que os melhores filmes religiosos no cinema foram
feitos por ateus. Escrito e dirigido pelo dinamarquês Anders Thomas Jensen, é
uma tragicomédia de humor negro sobre um neonazista condenado a prestar
serviços comunitários em uma remota igreja no campo. Lá encontra um padre cuja
fé é baseada em um patológico otimismo de negação da realidade, e dois
ex-presidiários: um muçulmano que continua roubando postos de gasolina à noite
e um ex-jogador dinamarquês de tênis profissional, alcoólatra e cleptomaníaco.
Mas o sacerdote acredita na bondade humana, mesmo em um neonazista que esmurra
sua cara. O filme baseia-se em um argumento paradoxal: pouco importa sabermos
se Deus existe, se continuaremos sofrendo do mesmo modo. Portanto, só nos
restaria a solução introspectiva pessoal: a fé em um mundo sem Deus. Filme
sugerido pelo nosso leitor... você sabe quem: Felipe Resende.
É
inegável que na história do cinema os melhores filmes religiosos foram feitos
por cineastas ateus: Diário de um Pároco
de Aldeia (1951) de Robert Bresson, o melhor filme que conseguiu expressar
a persistência da fé diante da realidade da dor e da rejeição; ou o filme Êxodo: Deuses e Reis (2014), do
assumidamente ateu Ridley Scott, sobre a amargura de Moisés diante da
descoberta do Deus vingativo do Velho Testamento.
O filme
dinamarquês Entre o Bem e o Mal (Adams Æbler, 2005),
escrito e dirigido pelo ateu Anders Thomas Jensen é mais um caso exemplar para
a história do cinema – um neonazista sentenciado a prestar serviços
comunitários é enviado para uma pequena igreja rural onde encontra um padre que
mistura devoção religiosa e fé com o psiquismo da negação das mazelas da
realidade.
Em muitos aspectos essa tragicomédia de humor
negro lembra o memorável filme de Robert Bresson sobre um padre enviado para uma
pequena aldeia no interior da França que luta para não se desesperar e perder a
fé diante da miséria humana e das grandes questões que desafiam os religiosos
de todos os tempos: a existência de Deus, o sentido do sofrimento, a
consciência do mal e o livre-arbítrio.
Somente
que em Entre o Bem e o Mal, o padre
baseia a sua fé simplesmente num patológico processo psíquico de negação mesmo
diante de uma realidade cruel: com um filho deficiente, vítima de incesto na
infância e ainda à espera da morte com um câncer terminal no cérebro, tem que
administrar uma paróquia com um impagável grupo de condenados a serviços
comunitários que é a própria quintessência do Mal.
Além do
neonazista que nutre um profundo ódio por qualquer um e troca apenas duas
palavras nos primeiros quinze minutos do filme, um muçulmano terrorista cheio
de ódio contra o Ocidente, um ex-jogador de tênis profissional cleptomaníaco e
alcoólatra e uma ex-ativista ambiental igualmente alcoólatra e culpada por
querer abortar uma gravidez sob a alta probabilidade de ter um filho
deficiente.
Deus escreve por linhas tortas?
Um padre
tão otimista que é capaz de ter o nariz quebrado pelo neonazista e voltar do
hospital para sua paroquia ouvindo Bee Gees no rádio do carro como se o ódio do
seu agressor se limitasse a apenas a uma momentânea “falta de educação”,
facilmente revertida pela citação de algum versículo bíblico.
Fala-se
muito que Deus escreve por linhas tortas – ou trilha por caminhos misteriosos.
Tão misteriosos e tortos que devemos ter fé, mesmo sem entendermos o sentido
desses caminhos. Porém, Anders Jensen chega a uma conclusão paradoxal: e se
Deus não existir? Ou pelo menos, e se a questão da existência ou não de Deus
pouco importar para nossas vidas já que continuaremos sofrendo do mesmo modo? O
que nos restaria então? Esquecer de Deus e, ao mesmo tempo, ter fé.
Entre o Bem e o Mal propõe: restaria a fé em nós mesmos, a única certeza
palpável desse mundo – continuaremos aqui até o fim dos nossos dias enfrentando
o imponderável, superando obstáculos e as incertezas.
Por trás das
diversas camadas de humor negro politicamente incorreto (imagine o resultado da
combinação explosiva entre padres, neonazistas, muçulmanos, aborto, incesto,
alcoolismo e uma criança paralítica...), Anders Jensen trabalha com duas
questões bem gnósticas: a consciência de que o Mal extrapola o próprio homem e
se origina nesse mundo em que somos prisioneiros; e a inexistência de um Deus
ou Diabo personificados, restando ao homem a busca de uma solução introspectiva
pessoal para tudo que acontece ao nosso redor.
O Filme
Logo de cara
vemos Adam (Ulrich Thomsen) descendo de um ônibus que lhe deixa no meio de uma
estrada rural. Vemos uma suástica tatuada em seu braço. Ele tira um canivete do
bolso e risca propositalmente a pintura do ônibus que acelera.
Ele leva
apenas o livro “Mein Kampf”, um quadro de Hitler, uma cara fechada e um olhar
de ódio.
Logo chega o
padre Ivan (Mads Mikkelsen) para recebê-lo com uma atitude irritantemente
alegre e otimista. Adam pouco fala: na verdade, ele está tentando entender o
novo mundo em que se encontra dentro de uma igreja dirigida por um padre
delirantemente otimista e outros dois ex-presidiários condenados também a
serviços comunitários – o muçulmano Khalid (Ali Kazim) e o dinamarquês ex-jogador
profissional de tênis Gunnar (Nicolas Bro), que passa o tempo enchendo a cara
na sacristia enquanto tenta fazer pequenos furtos na localidade.
Chegando à
Igreja, Ivan mostra uma frondosa macieira cheia de frutos e pergunta a Adam
qual o seu objetivo ali. Sarcasticamente, Adam sugere: “fazer uma torta de
maçã”. Diante do surpreso Adam, o padre leva a sério e aceita a tarefa,
ordenando-o que tome conta da macieira, até que os frutos amadureçam para poder
assar a torta.
No início,
tudo parece um jogo, no qual Ivan quer levar o neonazista de volta para o Bem.
E Adam, utilizando-se de uma espécie de psicologia reversa para mostrar ao
padre otimista de que ninguém ali está a fim de se converter: Khalid ainda sai
à noite para roubar postos de gasolina, e Gunnar ainda bebe na sacristia e
rouba qualquer coisa que esteja a seu alcance.
Para em
seguida, pesquisar sobre a vida terrivelmente trágica do sacerdote e jogá-la na
sua cara, apesar da sua crônica negação: sua esposa não se matou, ele não tem
câncer e seu filho com paralisia cerebral corre pelos cantos da paróquia.
Paralelo
a isso, estranhamente a macieira começa a ser atacada por corvos e as maçãs
apodrecem; quando o sino da igreja toca, o quadro de Hitler no pequeno quarto
de Adam sempre cai da parede; uma Bíblia colocada por Ivan no cômodo do quarto
de Adam, sempre cai no chão com a página aberta no Livro de Jó.
Para o
padre Ivan ele está apenas sendo testado por Deus (assim como Jó na Bíblia) ao permitir que Satanás infernize a sua vida.
Enquanto o neonazista Adam tenta colocá-lo na real provando que Deus e Diabo
não existem, nem que seja à base de murros no nariz do sacerdote.
Um
neonazista qualquer acabaria matando um deles apenas para voltar para a cadeia
e se livrar daquela loucura que mistura fé, otimismo cego, hipocrisia e
mentira. Mas Adam estranhamente começa a desenvolver um princípio de compaixão
e respeito pelo sofrimento do sacerdote: um respeito pela força interior de
seguir em frente, apesar de toda a miséria humana ao redor.
A maçã e o Mal
Há um
evidente simbolismo no filme: um neonazista chamado Adam (uma alusão ao Adão
bíblico) e a maçã, a fruta biblicamente associada ao pecado original, fruto de
todo o Mal que tomou conta da Criação e a expulsão do homem do Paraíso divino.
Também é
evidente que Anders Jensen joga tanto com o “demasiado humano” (os vícios e
pecados humanos) quanto o Mal presente na própria Criação – a morte, corvos,
vermes, apodrecimento, raios e tempestades.
Aparentemente
há momentos de intervenção divina na vida do padre Ivan em meio a tanto
sofrimento. Mas no meio de tantos eventos aleatórios da narrativa, as supostas
ajudas de Deus parecem apenas golpes da Sorte.
As
alusões bíblicas à fonte de todo o Mal no pecado original do Gênesis (a maçã
como o fruto proibido) são irônicas: um
neonazista que faz uma torta de maçã para um padre por puro respeito pela força
e resistência do sacerdote diante das adversidades, é uma afronta gnóstica do
diretor: na verdade o Mal não está no homem, mas já estava presente muito tempo
antes - no mundo, na natureza, na Criação (a morte, o apodrecimento e o caos).
Para os
heréticos princípios do Gnosticismo, o Mal não está no homem (no “pecado”), mas
na própria Criação. O Mal é ontológico, Criação e Queda em um único ato. O que
é simbolizado no filme com os corvos atacando a macieira e os vermes brotando
das maçãs.
Entre o Bem e o Mal propõe
uma curiosa fé sem Deus ou religião: a fé na introspecção pessoal, na força
humana em lutar e morrer simplesmente por ideais.
Isso
talvez explique o porquê dos melhores filmes religiosos tenham sido dirigidos e
escritos por ateus: mesmo sem acreditarem em Deus e, muitas vezes, nem na
própria persistência da alma ou consciência após a morte, são ainda assim
capazes de viver, lutar e entregar a própria vida apenas por ideais.
Ficha Técnica
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Título: Entre
o Bem e o Mal
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Diretor: Anders
Thomas Jensen
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Roteiro: Anders Thomas Jensen
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Elenco: Ulrich Thomsen, Mads Nikkelsen, Nicolas Bro, Ali
Kazim, Paprika Steen
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Produção: M&M Productions
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Distribuição: Film Movement
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Ano: 2005
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País: Dinamarca/Alemanha
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