“Stalker”
(1979), segundo filme de ficção científica do soviético Andrei Tarkovsky após
“Solaris” (1972), está conectado tanto com o passado quanto futuro: com a
misteriosa explosão em Tunguska, Sibéria, em 1908 e com o acidente nuclear de
Chernobyl em 1986, cujo argumento do filme foi estranhamente profético. Um
stalker (guia ilegal) conduz um cientista e um escritor para “A Zona” – região
misteriosa desértica e em ruínas (lá teria caído um asteroide ou nave
alienígena) cercada por forte aparato policial. Nessa zona proibida existiriam
estranhos poderes capazes de realizar os desejos mais recônditos de quem sobrevivesse
a suas armadilhas mortais. Para Tarkovsky, “A Zona” seria o microcosmo da
própria vida: Ciência, Arte e Religião se confrontam em uma batalha niilista
para ver quem herdará o que restou da sociedade moderna – mesmo depois do fim, a ilusão, a fé vulgarizada e oportunismo lutam entre si.
Em seu
livro “Esculpting in Time”, o cineasta soviético Andrei Tarkovsky afirmou o
seguinte sobre significado da “A Zona”, cenário principal do filme Stalker (1979), um lugar misterioso com
poderes sobrenaturais que teria sido criado pela queda de um asteroide ou de
uma nave alienígena: “Muita gente pergunta para mim o que simboliza A Zona, o
que ela é... A Zona não simboliza nada, nada mais do que aquilo que fiz em meus
filmes. A Zona é uma zona, é a vida”.
Stalker foi o segundo trabalho de ficção científica do diretor,
depois de Solaris de 1972. Vagamente
baseado no romance “The Roadside Picnic”, o filme gira em torno de três
desconhecidos que entram secretamente em uma espécie de zona proibida, cercada
por uma cordão policial, e que vão em busca do “Quarto”, um enclave enigmático
no centro da região que concederia aos seus visitantes os desejos mais
recônditos.
Muito já foi
escrito e discutido sobre o cultuado Stalker:
propósitos, simbolismos, as supostas críticas veladas ao regime soviético etc.
E Tarkovski sempre foi reticente, simplesmente dizendo que todas as análises
eram possíveis. Mas a afirmação do diretor de que o filme e a própria concepção
da “Zona” remetem-se à vida mesma, parece confirmar leituras de que a
misteriosa região da narrativa de Stalker
é na verdade um microcosmo da existência. Se isso for verdade, Tarkovski
enveredou-se na mitologia gnóstica.
O legado de Tunguska e a profecia de Chernobyl
Principalmente
porque Stalker é claramente inspirado
no legado do até hoje inexplicável evento que ocorreu em Tunguska, Sibéria, em
1908: uma grande explosão devastou uma área de milhares de quilômetros quadrados,
com uma explosão equivalente a mil bombas atômicas de Hiroshima e causando um
terremoto de 5 graus da escala Richter. A ausência de cratera e a detecção de
radiação na região próxima ao epicentro criou uma série de especulações –
meteoro? Anti-matéria, explosão de uma grande nave extraterrestre? Fragmento de
um cometa? Experiência alienígena?
No filme, “A
Zona” é uma região que sofreu também uma explosão de origem misteriosa (fala-se
em asteroide ou nave alienígena) e que depois de anos de incêndios, ficou uma
região devastada, com ruínas industrias e urbanas cercadas de florestas com
postes, máquinas e linhas férreas abandonadas. E também uma região que parece
regida por leis físicas próprias, e com um misterioso “Quarto” dentro do qual
os visitantes que ali se arriscam poderiam realizar seus desejos.
Ao mesmo tempo, Stalker foi profético: parece prenunciar
o acidente nuclear de Chernobyl em 1986, no qual uma explosão em uma usina
nuclear criou uma cidade fantasma, Pripyat, contaminada pela radiação.
Após muitos anos
esse humilde blogueiro voltou a assistir ao filme. E percebeu uma ambiguidade
fundamental que parece justificar a críptica frase de Tarkovski acima: se A
Zona é um microcosmo da existência, de uma forma seminal Stalker reproduz a condição humana como prisioneira de uma grande
simulação que entendemos como realidade. Assim como em Show de Truman e Matrix.
O Filme
A narrativa acompanha um “stalker” (Aleksandr
Kaydanovski), personagem que pertence a um seleto grupo de guias ilegais que
dedicam a vida a selecionar e acompanhar aqueles que querem se aventurar na
Zona para chegar ao Quarto. Um stalker conhece todos os detalhes, perigos e
armadilhas. A Zona parecer ser um gigantesco complexo vivo que reage de forma
diferente a cada grupo que se aventura em seu interior.
Como um
sacerdócio, o stalker tem uma vida simples numa casa velha ao lado de uma linha
férrea que leva à entrada da Zona, fortemente cercada por policiais, com sua
esposa e uma pequena filha deficiente física. Segue determinado a sua crença de
que ele traz esperança para os seus perdidos clientes infelizes.
Mesmo após
passar vários anos preso como castigo por entrar na zona proibida, decide mais
uma vez acompanhar visitantes, desta vez
um personagem apenas referido como “professor” (Nikolay Grinko, um
físico e cientista) – determinado a fazer uma “descoberta”, procura na Zona
realizar esse desejo; e outro chamado de “escritor” (Anatoliy Solonitsyn, um
escritor bem sucedido – cansado do assédio de jornalistas e mulheres, vai em
busca de “inspiração”.
Nas primeiras
sequências em fotografia sépia, vemos a crueza da vida de um stalker, os
conflitos com sua esposa infeliz e temerosa de que o marido ausente seja preso
mais uma vez e a deixe só com a filha paralítica. E a entrada arriscada na Zona
sob a perseguição e tiros dos policiais, para finalmente conseguirem entrar a
bordo de um pequeno vagonete motorizado nos trilhos barulhentos e enferrujados.
Ao entrar na
Zona, as imagens assumem uma vistosa fotografia colorida e o que vemos é um
cenário pós-apocalipse: casas incendiadas, prédios industriais em ruínas,
tanques militares abandonados e detritos da sociedade moderna.
O caminho
através da Zona parece arbitrariamente determinado pelo stalker, caminhando em
círculos, sempre jogando para frente um pedaço de pano amarrado a uma porca
para testar o solo por onde passarão. Para o guia, o caminho reto e mais curto
é sempre mais perigoso: a Zona tem suas próprias leis. Como um deus, o stalker
sente o que o escritor e o cientista não conseguem. Naquela região nada pode
ser visto, apenas sentido.
Stalker
prossegue de forma episódica com avanços e paradas, periodicamente
interrompidos por discussões filosóficas sobre arte, ciência, niilismo, a
partir de argumentos controversos em que as suposições iniciais dos personagens
são sempre desafiadas.
Tarkovski
constrói a narrativa num ritmo lento e numa constante atmosfera de tensão
diante dos possíveis movimentos fatais da Zona – a região seria um verdadeiro
complexo vivo e sensível à entrada de estranhos.
Os diálogos e
ações são construídos em uma impressionante galeria de close-ups como se os
olhos fossem a verdadeira janela da alma – cada plano é formalmente composto de
maneira expressiva criando o eixo emocional do filme: olhos tristes, expressões
angustiadas e a candura estoica do stalker – ele tem fé na sua missão de
possibilitar a felicidade para os outros. Ele mesmo diz-se incapaz de entrar
no Quarto para realizar seus próprios desejos.
Ambiguidade
essencial - alerta de spoilers à frente
O leitor deverá
observar algumas ambiguidades (ou anomalias) que parecem colocar em dúvida toda
a narrativa descrita acima. O stalker alerta aos seus “clientes” que a Zona é
muito perigosa, imprevisível e fatal. Mas ao entrar com o grupo, a primeira
ação do guia é se afastar dos escritor e do cientista para passar alguns
minutos deitado na relva, isolado, deliciando-se com o silêncio, como estivesse
integrado com a Zona.
Há tensão em
cada cena. Todos à espera de armadilhas terríveis... mas nada acontece. A
sequência mais emblemática é a do túnel que leva ao Quarto. O stalker alerta
que aquela passagem é um “moedor de carne” com diversos casos fatais... mas
também nada parece ameaçador. A única preocupação é a de se desviar dos
detritos e goteiras.
Todos os alertas
e histórias contadas pelo stalker por todo o caminho através da Zona parecem
não bater com a realidade: as sequências seguem-se em ritmo lento, calmo,
pontuada com linhas de diálogo sobre arte, filosofia e ciência.
Nada parece ser
real, mas apenas metafórico. A começar, por aquele grupo: cada um deles
representa as três grandes instituições humanas: o professor, a Ciência; o
escrito, a Arte; e o stalker, a Religião – fora dali, o stalker é uma pessoa
comum, pobre, levando uma vida miserável (“uma prisão”, como fala logo no
início). Mas dentro da Zona, ele é um deus. Ele tem fé e vive da fé que
professa: ser o guia daqueles que buscam a felicidade. O stalker representa o
impulso religioso vulgar.
O niilismo gnóstico
Mas Tarkovski
parece conferir a esse “deus” (e de resto, toda a Religião) a natureza de um Demiurgo
– o stalker cria uma ilusão de ameaças das armadilhas mortais no caminho da
felicidade. Se a Ciência e a Arte não seguirem seus conselhos, morrerão pelo
caminho.
Todo o trajeto
pela Zona (um microcosmo da própria jornada humana como um peregrino conduzida
pela fé) resulta na subversão final da Ciência e da Arte através do niilismo,
que é para onde convergem todas as discussões travadas ao longo da viagem pela
Zona.
O professor
revela trazer uma bomba para mandar o Quarto pelos ares e o escritor o ajuda no
seu plano já que o desfecho final planejado é a confirmação íntima que a vida
não tem qualquer sentido, a não ser “as leis regidas pelo ferro fundido” como
afirma antes de iniciar a jornada:
Não há telepatias, nem fantasmas, nem discos voadores... nada disso existe, a não ser a lei do ferro fundido. Não conte com discos voadores: seria muito empolgante. Não existe Triângulo das Bermudas. Existe apenas o triângulo A’, B’ e C’...
É a essência do
niilismo de Tarkovsky que, ao final do filme, revela-se gnóstico: Ciência e
Arte têm um plano secreto de subversão contra o domínio da Religião, criadora
de mundos ilusórios ameaçadores que supostamente se colocariam no caminho das
nossas felicidades.
Porém, o solução
da Arte é ganhar dinheiro sobre a desesperança das massas, enquanto a Ciência
quer mandar tudo pelos ares por meio da guerra e da perigosa manipulação das
forças da matéria – o que se materializou no acidente nuclear de Chernobyl de
1986 cujo filme Stalker estranhamente profetiza com os cenários urbanos
abandonados da Zona.
A cena final na qual vemos a filha do stalker sentada à mesa, observando os copos e fazendo-os moverem apenas com o olhar sugerindo o poder paranormal telecinético, é
a própria aspiração gnóstica do tertium
quid, aspirar pelo terceiro elemento: nem a ilusão perpetrada pelo stalker,
o professor e o escritor (Religião, Ciência e Arte) e nem a realidade – um
mundo pós-apocalíptico dominado por um Estado policial que cerca a Zona para
impedir a realização da felicidade individual (crítica velada de Tarkovsky ao
regime soviético?).
A pequena filha
do stalker encontra as forças de transformação dentro de si própria (a metáfora
dos poderes paranormais), mesmo fisicamente entrevada pela paralisia - o
simbolismo de mundo dominado pelo totalitarismo, Ciência, Religião e a Arte
mercantilizada que paralisa as novas gerações.
Para Tarkovsky o
niilismo não significa acreditar no nada – que, afinal, é a profissão da
Religião, Ciência e Arte. Se o Gnosticismo vê o mundo como radicalmente mal, é
na negação absoluta feita pelo filme Stalker
que está a possibilidade do inteiramente outro.
E o inteiramente
outro está na estranheza da pequena menina que encontra forças dentro de si
mesma para mover o mundo.
Ficha Técnica
|
Título: Stalker
|
Diretor: Andrei
Tarkovsky
|
Roteiro: Andrei Tarkowsky livremente
baseado em romance de Arkadiy e Boris Strugatskiy
|
Elenco: Aleksander Kaydanovskiy, Anatoliy Solonitsyn,
Nikolay Grinko, Alisa Freyndlikh
|
Produção: Mosfilm
|
Distribuição: Continental Home Video (DVD)
|
Ano: 1979
|
País: URSS
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