As leis
trabalhistas foram “modernizadas”, assim como o próprio trabalho com os ventos “modernizadores”
do empreendedorismo e agora luta-se para que toda essa “modernização” alcance
também a Previdência Social. Mas falta algo, alguma coisa que sinalize essa
nova visão de país e inspire o povo. Para o designer gráfico Hans Donner, isso
somente será possível com uma bandeira nacional também “modernizada” – com
degradês, efeitos 3D, e a palavra “Amor” antes do lema “Ordem e Progresso” com
a faixa apontando para cima, para dar “poder” ao povo... O designer austríaco
apresentou o projeto em um evento chamado “Fórum do Amanhã” em MG, e pretende
levá-lo ao Congresso para implementação. Ironicamente, em um evento sobre o
“amanhã”, Donner apresenta uma bandeira retro-futurista igual a marca visual da
Globo das décadas passadas, que hoje nem a própria emissora adota mais,
privilegiando um visual “orgânico” e menos artificial. A “nova” bandeira
nacional de Hans Donner certamente está menos na estética, e muito mais no campo
dos sintomas: sinais expressados por uma elite que fala em futuro, mas com os
olhos sempre mantidos no passado. Para deixar o presente igual o ontem: o
futuro do pretérito.
Depois
de projetar um futuro em que os brasileiros poderiam morar em um cenário da
Globo (em 2011 revelou o seu lado de designer de móveis ao apresentar em um
hotel luxuoso no Bento Gonçalves/RS suas mesas e cadeiras “retro-futuristas”
com esferas, cones e pirâmides em fibra de vidro ao estilo da identidade visual
que criou por décadas para a emissora – clique aqui), agora o designer gráfico
austríaco Hans Donner pretende “sinalizar uma nova visão de país”.
Em um
evento denominado “Fórum do Amanhã”, realizado em Tiradentes/MG de 9 a 12 de
novembro, Donner apresentou um projeto para modificar a bandeira brasileira. O
designer já estava trabalhando no projeto há dez anos. Mas agora, está motivado
para apresenta-lo publicamente para, posteriormente, ser enviado ao Congresso
para ser implementado.
Certamente
porque o designer sente nesse momento os ares, digamos assim, mais favoráveis a
intervenções que venham de cima para baixo – se o País está engolindo qualquer
coisa, por que não uma propor uma “modernização” para o próprio pavilhão
nacional?
Para o
austríaco o Brasil precisa de um “sentimento mais positivo expresso na
bandeira... o objetivo é começar por aí a resgatar a solidariedade que não pode
faltar num símbolo de nação”.
Bandeira para sinalizar poder
E por onde
o designer pretende começar essa revolução no astral nacional? Fiel a sua
estética “retro-futurista”, Donner idealiza uma bandeira em tons de verde e
amarelo em degradê, além de prever a inserção da palavra “amor” antes do lema
da filosofia positivista de Augusto Comte “Ordem e Progresso”.
E
cônscio das quase místicas conexões entre os elementos do design e energia
espiritual, Donner pretende alterar o sentido da faixa, que hoje forma um arco
com pontas direcionadas para baixo. Ele considera necessário inverter,
indicando para o alto.
“Quando
comecei a fazer design em Viena, uma das primeiras coisas que aprendi foi que
uma frase que sobe tem poder. E queremos sinalizar esse poder, essa mudança que
é necessária. Como está, a frase indica inferioridade, e isso acaba passando
para o povo”, disse o designer austríaco, preocupado com as perniciosas
influências da bandeira sobre o espírito nacional.
E o
evento no qual Hans Donner se sentiu à vontade para apresentar seu projeto
acalentado por tanto tempo parece ter tudo a ver com o seu, por assim dizer,
élan nacionalista. O “Fórum do Amanhã” tem como objetivo “reunir inteligências
dispostas a pensar um brasil digno de ser sonhado, dar visibilidade e ideias e
projetos pioneiros que apontam para o futuro”.
Domênico de Masi e Eduardo Giannetti
O Fórum
foi idealizado por dois distintos intelectuais: Domênico de Masi – aquele
sociólogo italiano que, além de contribuir com o conceito de “ócio criativo”,
considera a sociedade “desorientada” – incapaz de definir o que é verdadeiro e
falso, bom ou ruim, os problemas serão resolvidos pela Inteligência Artificial,
“resolvendo problemas incompreendidos pelo ser humano”.
E pelo
economista brasileiro Eduardo Giannetti da Fonseca – aquele que foi guru da
candidata à presidência Marina Silva e que dizia: “comer um bife é uma
extravagancia do ponto de vista ambiental”. Isso no momento em que brasileiros
finalmente começavam a experimentar melhoria no padrão de consumo com as
políticas econômicas neodesenvovimentistas.
Hans Donner: tudo começou com os móveis |
Intelectuais
de pedigree da típica radicalidade chique de salão com clichês do tipo “a crise
profunda dos modelos da civilização ocidental” (De Masi) ou a urgente questão
existencial colocada por Giannetti para todos os brasileiros de boa vontade:
“Existirá uma utopia mobilizadora da alma e das energias dos brasileiros?”...
O Futuro do pretérito
Para o
designer gráfico Hans Donner a reposta é sim, e começa pela “modernização” da
bandeira nacional. Mas o problema é que o futuro concebido por Hans Donner tem
a cara do ontem – o futuro do pretérito.
Nos anos 70
e 80 o então “futurismo” do design de Hans Donner teve um papel histórico: a
inserção dos produtos da TV Globo no mercado internacional e a criação uma
estética moderna para a cultura brasileira. Se o conteúdo dos produtos
oferecidos pela emissora, como imagem brasileira para o mercado externo,
continuavam o mesmo (mulheres e natureza), a estética do designer austríaco
superou os velhos clichês do passado como Carmen Miranda, bananas, baianas e carnaval.
Agora tudo
isso era colocado em movimento por computadores sobre esferas, pirâmides e
cones, criando atmosferas futuristas e New Age com sólidos geométricos em
fundos com degradê... Muito degradê, para criar sensações de profundidade para
os sólidos geométricos em movimento se destacarem.
Tudo isso encarnava a utopia do “Brasil
Grande” do milagre econômico brasileiro dos governos militares e o surgimento
de uma nova classe média identificada com a “modernidade” trazida pelos
“enlatados” (pacotes com minisséries, filmes e desenhos animados principalmente
norte-americanos) exibidos pela TV Globo.
Para Donner,
essa estética nas décadas passadas era tudo muito “futurístico”, mas a
“aceitação mostra que o Brasil mudou”.
Depois de
décadas sob essa identidade visual “space opera” criada por Donner para a Globo,
hoje até a própria emissora tenta se dissociar desse retro-futurismo
repaginando seus programas, aberturas e telejornais com uma marca visual mais
“orgânica” e menos metálica, geométrica e artificial.
Uma bandeira com a cara do ontem
A cara de
ontem do projeto de Hans Donner começa pelo onipresente degradê ou gradiente,
efeito de transição entre cores que ficou famoso nas décadas de 80 e 90,
principalmente com a popularização de softwares de imagens vetorias como o CorelDraw.
No passado,
os degradês não eram nada sutis, e foram tão popularizados que até o programa
de humor Casseta e Planeta
ridicularizava esse efeito com o logo de uma empresa popular fictícia chamada
“Organizações Tabajara” – efeito cromático tão artificial quanto os produtos
vendidos pelo “conglomerado monopolista”, como definiam os cassetas. Na
verdade, o logo da organização emulava e parodiava a estética Hans Donner.
Hoje o
degradê até retorna ao design, porém bem diferente do retro-futurismo de Donner:
agora temos transições suaves, cores que harmonizam, tons pastéis e até mesmo
incorporando elementos de flat design, produzindo um resultado mais agradável e
menos contrastante, como vemos na identidade visual da Apple e do Spotify.
Se Hans
Donner fosse coerente com a “modernização” estética, então a bandeira nacional
teria que converter suas cores para tons pastéis e em flat design.
A bandeira de Hans Donner é um sintoma
Porém, como
sempre, a verdade está em outra cena: está no campo do sintoma. O projeto da
bandeira nacional retro-futurista revela menos preocupações estéticas, e muito
mais um ato-falho que expressa o que as elites brasileiras entendem por
“futuro” ou “utopia” para o País.
A “nova”
bandeira tem a cara da velha marca visual do monopólio da Globo dos anos 70 a
90, marca que atualmente a própria emissora vem abandonando. Paradoxalmente o
projeto de Donner revela a retro-utopia de que o Brasil permaneça igual ao
passado, a fase áurea profissional do designer austríaco no qual seus sólidos geométricos
metálicos voadores e sua musas graficamente adornadas sambavam para o eterno
país do futuro que nunca deixava de olhar para o passado.
Um projeto
futurista como esse somente poderia vir a público num evento como esse “Fórum
do Amanhã” com o velho modelo de um elite que pensa projetos para, depois,
enfiar goela abaixo do populacho.
Karl Marx acusava
o pensamento econômico burguês de se orientar por “robinsonadas” – tomar como
ponto de partida o indivíduo isolado, livre, sem determinações sociais. O “Fórum
do Amanhã” parece reeditar, em pleno século XXI, esse velho paradigma da teoria
econômica do século XIX: projeto individuais (oficinas para empreendedorismo)
e, até, coletivos como o Coletivo Qilombo MG, o Nós etc. Sempre na perspectiva
de grupos sem vínculo partidário ou classista. Afinal, a política é suja e
utopias são Ok!
Mas sempre
com o tradicional viés tão tecnocrático e positivista como o lema estampado na
bandeira nacional: uma elite de intelectuais que sempre escolherá o “melhor”
protótipo de projeto – aquele que fale em futuro, mas mantenha sempre os olhos
voltados para o ontem.
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