“Nem parece que estou dando aula”, ouvi
certa vez de uma professora entusiasmada com uma nova metodologia de ensino
cada vez mais comum em universidades adquiridas por grupos turbinados por
fundos internacionais de investimento. Lembra o slogan daquele banco comprado
pelo Itaú, “nem parece banco”. Hoje, a financeirização descobriu o ensino
superior e trouxe a racionalidade capitalista para um setor onde o ofício do
professor era um entrave na linha de produção moderna por ser ainda um antigo
resquício escolástico. Dos antigos donos de faculdades “boca de metro” pulamos para os “global players”, os novos demiurgos. Repete-se a lógica industrial
prevista pelo velho materialismo histórico de Marx: trabalho complexo deve ser
convertido em trabalho simples, transformando o professor num profissional
destituído do seu ofício. Mas para que isso torne-se uma fatalidade natural da
vida é necessário um discurso imaginário:
a ilusão (o fetiche do título e publicações), a ideologia (a
meritocracia) e uma retórica - a “metodologia ativa”. Talvez a metáfora daquela
professora seja mais literal do que ela imaginava...
Karl Marx insiste em não morrer. Ele e a sua
abordagem metodológica de estudar a sociedade, o materialismo histórico. Não
porque as esquerdas continuem invocando suas ideias muitas vezes para
legitimar ações políticas que talvez Marx, se vivo, certamente discordaria.
Mas porque o Capitalismo, agora na chamada fase
“tardia”, criou novas e inusitadas formas de se perpetuar através dos inventivos
mecanismos de financeirização – como, por exemplo, fundos globais de
investimentos com carteiras diversificadas que podem ir de títulos públicos da
dívida de um país até investimentos em empresas de tecnologia, marketing
esportivo, saúde ou educação.
Boca de metro e pés-de-chinelo
Um dos
motivos que levou esse ingênuo blogueiro a escolher a carreira acadêmica foi
acreditar que por descender do método escolástico medieval, a universidade
seria um dos setores mais anticapitalistas. Resistiria estoicamente ao avanço
do capital e à mercantilização generalizada da cultura.
Claro que o ensino superior particular cresceu nas
mãos de empresários locais (membros de conselhos de clubes de futebol, donos de
antigos cursos de admissão ao ginásio ou de escolas técnicas) que acabaram
criando as chamadas “fábricas de diplomas”, “faculdades de boca de metrô” ou de
“universidades pé-de-chinelo”, como certa vez acusou o filósofo Arthur
Giannotti quando membro do Conselho Nacional de Educação do governo FHC.
Porém, ainda eram, por assim dizer, representantes
da antiga burguesia da época histórica do renascimento comercial e urbano. Se
no renascimento comercial a burguesia criou oficinas formadas por mestres,
artesãos e aprendizes, também as faculdades privadas construíram instituições
cujos “mestres”, “artesãos” e “aprendizes”, dentro das condições adversas
reinantes (salas superlotadas, salários baixos pagos muitas vezes por caixa dois,
extensa jornada de trabalho etc.), ainda detinham um “saber-fazer”.
Vivíamos sim nos moldes da exploração capitalista,
mas ainda dentro do primitivo regime daquilo que Marx chamava de “mais-valia
absoluta”, produção de riqueza pelo aumento do ritmo do trabalho e vigilância
sem nenhum tipo de compensação em troca.
Mas ainda dentro desse regime de exploração, o
professor, como um artesão que ainda detinha o ofício (conhecimento e
metodologia), fechava a porta da sala de aula e tentava manter o espírito da
escolástica. Em meio a um regime de produção capitalista em larga escala, a
faculdade particular ainda tinha que lidar com um insumo de produção que
resistia às formas de quantificação de uma linha de montagem. O professor ainda
era um artesão que detinha um conhecimento contínuo, cumulativo, qualitativo e
analógico.
Dos arcontes aos novos demiurgos
Em outras palavras: o professor era explorado,
mas não despojado do seu saber. A exploração era do trabalho e a alienação era
a do corpo e da mente pela exaustão física.
Os burgueses
comerciais do ensino superior eram semelhantes aos arcontes (na mitologia
gnóstica seres espirituais que controlam cada um o seu mundo que compõe o
cosmos) ou disciplinadores que prepararam o terreno para a chegada dos novos
demiurgos – a entrada do ensino universitário no modo de produção
especificamente capitalista, o trabalho industrial.
A racionalidade
capitalista chega hoje ao ensino superior com a entrada do capital estrangeiro
dos fundos de investimentos que estão por trás turbinando grupos educacionais e
criando a oligopolização do setor. Os antigos arcontes venderam suas
faculdades, negócios originados de empresas familiares, para os novos demiurgos
– muitos deles “global players” com redes de universidades particulares pelo
mundo.
Na linguagem do
materialismo histórico, passamos do regime da mais-valia absoluta para a mais-valia
relativa. O trabalho complexo do
artesão na manufatura (conhecimento e metodologia pedagógica do professor) deve
se tornar trabalho simples –
quantificado, fragmentado.
Em outras palavras: a
quantidade de trabalho social presente no atividade do professor (muitas vezes
resultado do investimento público em bolsas de mestrado e doutorado) deve ser
diminuída por ser uma pedra no sapato para o novo ritmo de trabalho e
disciplina que o modo de produção especificamente industrial exige.
Das máquinas às “metodologias ativas”
Se em Marx o trabalho
social é substituído pelo maquinário, no ensino universitário será por
“metodologias ativas” (“teaching-learning”) de ensino onde cada vez mais o
“conteúdo” (a pedra qualitativa no sapato da quantificação) cede lugar a
“jogos” ou “dinâmicas” previstos minuto a minuto em planilhas Excel. O ofício
do professor-artesão (o trabalho social) é diluído no saber-fazer de gestores e
coordenadores que personificam o papel da antiga gerencia responsável em ditar
o ritmo da linha de montagem taylorista.
Com um plano de ensino
“engessado”, o professor torna-se um “facilitador” que busca “engajar” ou
“motivar” alunos para uma dinâmica (ou ritmo) imposto pelos gestores.
Ou como ouvi certa vez
um professora dizer, extasiado: “nem parece que estou dando aula!”. Mal sabia
ela da literalidade da sua metáfora...
Ilusão, Ideologia e Retórica
Acompanhando a
metodologia do materialismo histórico, além da exploração e dominação, para se
estabelecer um modo de produção são necessários outros três requisitos. Dessa
vez de natureza imaginária: o véu da ilusão, a ideologia e um sistema retórico.
(a) O véu da ilusão
Assim como Marx
afirmava em O Capital que o
capitalismo era uma gigantesca fantasmagoria pois o fetichismo da mercadoria não
nos deixava ver o que havia por trás das relações sociais de produção, da mesma
maneira o modo de produção do ensino superior criou sua própria fantasmagoria:
titulações e “produção científica”.
“Publish ou perish”,
publique ou pereça, virou um mantra no meio acadêmico como um fim em si mesmo –
o fetichismo das publicações. Tal como na situação absurda beckettiana onde se
espera tanto por Godot que esquecemos o porquê da espera, as publicações
perderam qualquer lastro científico e viraram um campo de simulações: autoplágio,
textos escritos a inúmeras mãos que pegam carona no artigo, conluios com
pareceristas de periódicos “científicos”, artigos onde as notas de rodapé ou
referencias finais compete em tamanho com o próprio texto, ghost writers, textos preguiçosos, colcha de retalhos etc.
O fetichismo da
produção científica cria um verniz necessário para uma atividade-fim (o ensino)
que perdeu o sentido na sala de aula, já que o ofício do professor foi primeiro
engessado e depois diluído.
(b) Ideologia
Marx concebia a
ideologia como uma falsa consciência para dissimular a dominação. No modo de
produção universitário é a ideologia meritocrática, decorrência direta do fetichismo
das publicações. Títulação + publicações + cursos de aprimoramento é a fórmula
para acumular méritos e até a ascensão salarial na carreira. Aqui temos um
maquiavelicamente curioso fenômeno: essa fórmula tem uma função muito mais
disciplinadora e auto-referencial do que de produção de conhecimento
científico-pedagógico.
De um lado os cursos
viram verdadeiras sessões de adestramento das competências exigidas nos planos
de ensino engessados. São apenas auto-referenciais, reforço comportamental do
novo papel em sala de aula do professor destituído do seu ofício.
Além de ser uma
maquiavélica função subliminar presente em todas as seitas: quanto mais o
indivíduo se mantiver ocupado com o acúmulo de atividades, muitas vezes
simultâneas (ainda mais com a alternativa do ensino à distância), menos pensará
sobre o propósito daquilo que está fazendo – sobre isso clique
aqui.
O risco para o
professor é que de repente ele terá tantos méritos, títulos e publicações que
suas expectativas aumentarão perigosamente para uma atividade sem expectativas
– já que as aulas engessadas pelas “metodologias ativas” estão totalmente
dissociadas dos conteúdos e competências conquistadas na pós-graduação. Poderá
ser a hora de demiti-lo, junto com todos os seus méritos.
Pierre Bourdieu e Paulo Freire |
(c) Retórica
Depois de tudo isso,
aqui está a cereja do bolo, o pulo do gato. Todas essas novas metodologias
ativas, supostamente pedagógicas, devem ter uma aparência revolucionária,
progressista e intelectualmente estimulante. Tal como o fetichismo em Marx onde
as mercadorias “lançam olhares amorosos aos compradores”.
Autores da tradição
crítica ao sistema educacional como o francês Pierre Bourdieu ou o brasileiro
Paulo Freire são ironicamente utilizados para legitimar coisas como
“metodologia ativa”: se Bourdieu denunciava o poder simbólico do professor e
Paulo Freire acusava a “educação bancária” (onde o professor deposita
conhecimento em um aluno desprovido de seus próprios pensamentos), nada melhor
do que cortar o mal pela raiz: retire o ofício do professor para que deixe de
ser uma figura autoritária e manipuladora.
A partir de citações
desses autores, retirados do contexto, doura-se a pílula da quantificação do
ensino com uma retórica “crítica”.
Destituído do seu
ofício, o professor transforma-se no insumo de produção ideal da cadeia
produtiva presente em todos os outros setores da sociedade. Ele tem o mesmo
destino que os antigos artesãos tiveram com a substituição da manufatura pela
fábrica: seu ofício foi roubado pela gerência e colocado em planilhas para ser
fragmentado e inserido no controle numérico das máquinas.
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