As
ricas mansões das colinas de Hollywood escondem estranhas seitas e comunidades
formada por celebridades, diretores e produtores da indústria do
entretenimento. Em uma dessas ricas casas um grupo de amigos que não se via há
dois anos é convidado para um jantar. Lá encontrarão os anfitriões: uma
ex-esposa e seu novo marido, entusiastas de uma nova seita que promete “um novo
recomeço”. Esse é o thriller psicológico “The Invitation” (2015) de Karyn
Kusama onde as seitas de autoajuda se revelam na verdade grandes mecanismos de
negação psíquica onde a linha que separa a sanidade da loucura começa a
desaparecer. Os convidados daquele jantar conhecerão da pior forma possível a
máxima freudiana: “o reprimido sempre retorna”.
Desde o livro
clássico Como Fazer Amigos e Influenciar
Pessoas de 1936 até livros e filmes recentes como O Segredo, um vasto aparato de técnicas, receitas e manuais de
autoajuda vem cada vez mais se expandindo. Ganhar mais dinheiro, descobrir a si
mesmo, superar medos e traumas, sucesso profissional, sucesso no amor etc.,
usar o poder da mente para se motivar, técnicas subliminares de auto-aplicação
etc., são vendidas nesse grande denominador comum da autoajuda.
Desde 1936, das
primitivas técnicas inspiradas nas táticas de sobrevivência das ruas, a
autoajuda se sofisticou através de duas grandes ramificações: de um lado
vulgarização de conceitos neurocientíficos (do poder do “pensamento positivo”
até a programação neurolinguística”); e do outro o que se convencionou chamar
de “New Age” – movimento espiritual buscando a fusão Oriente/Ocidente ao
mesclar autoajuda, parapsicologia, esoterismo e física quântica.
“A vida não vem
com um manual”, dizem os críticos dessa “literatura”. Mas ela pode criar muitos
intérpretes desses “manuais”. Portanto, temos o mais perigoso subproduto da
autoajuda: o surgimento de seitas ou grupos liderados por “mestres”
carismáticos que vão desde os simples charlatões estelionatários até aqueles
mais perigosos que vivem no limite entre sanidade e loucura.
O crítico
literário Harold Bloom considerava essa a “verdadeira religião americana” – um
mix de autodivinização gnóstica, mormismo, pentencostalismo e sulismo batista.
Filmes como O Mestre (2012) fizeram
esse mergulho na “América Profunda” ao se inspirar na história do criador da
Cientologia, L. Ron Hubbard – sobre o filme clique aqui.
O filme The Invitation é mais um exemplar desse
mergulho no obscuro psiquismo da cultura norte-americana, dessa vez ambientado
no coração a espiritualidade daquele país: as colinas de Hollywood com suas
ricas residências onde residem artistas, celebridades, produtores e diretores
da indústria do entretenimento.
E na moderna
Hollywood, fazer parte de cultos, seitas ou grupos de autoajuda torna-se condição
para que uma pessoa crie uma consistente rede de relações que ajude a alavancar
a carreira: Cientologia, The Organite Society, Founded Full Circle, OTO (Ordo
Templi Orientis) ou The Kabbalah Centre são alguns desses exemplos onde a
natureza de grupo de estudo, seita, autoajuda e culto se confundem.
Enquanto o filme O Mestre fez uma abordagem mais
histórica sobre o tema, The Invitation
(2015) concentra-se em uma jantar onde um grupo de amigos se encontra após dois
anos. Amigos que tentam reconstruir relacionamentos que se perderam devido a
traumas do passado. Mas que revela o grande motor espiritual que impulsiona
essas seitas e grupos: o mecanismo psíquico de negação.
O Filme
The Inivitation é um thriller psicológico que a
diretora Karyn Kusama mantém a narrativa numa lenta tensão crescente com
diálogos e personagens bem realistas.
O prenúncio do
que estar por vir começa logo na primeira sequência quando o carro de Will
(Logan Marshall-Green), junto com a sua namorada Kira (Emayatzy Corinealdi)
atropela um coiote a caminho do jantar com os antigos amigos em Hollywood. Will
é obrigado a sacrificar o animal ferido com golpes de chave de roda.
Os anfitriões do reencontro
são a sua ex-esposa Éden (Tammy Blanchard) e o seu novo marido David (Michiel
Huisman) que recebem os convidados com uma caríssima garrafa de vinho de três
dígitos. E um detalhe principal para aumentar a tensão da trama: a residência é
a mesma onde Will e Éden moraram quando casados e também onde viveram o grande
trauma que causou a separação: a morte do filho.
David, um
produtor de Hollywood que no passado viveu sérios problemas com drogas, recebe
a todos brindando um “novo recomeço”.
Mas entre os
convidados há dois personagens estranhos que destoam do perfil do grupo: Sadie
(uma jovem com um minivestido e sempre exibindo uma falsa alegria) e Pruitt, um
homem corpulento e careca com um olhar desconfiado. David e Éden explicam para
o grupo que os conheceram no México ao visitar uma seita com a qual aprenderam
a lidar com seus traumas do passado. O que faz acreditar que aquele jantar é o
simbolismo de um novo recomeço para a vida de todos.
O atropelamento
do coiote e o reencontro com as memórias de cenas do passado naquela casa,
torna Will cada vez mais introvertido. Mas a gota d’água é quando os anfitriões
abrem um laptop e apresentam para todos um vídeo com uma sequência perturbadora:
gravado no México, apresenta o mestre da seita reunido com todos os discípulos
diante de uma mulher em seu leito de morte por câncer. Ao redor, o grupo faz um
ritual de preparação espiritual daquela mulher até o momento do seu último
suspiro.
O vídeo é uma evidente
estratégia promocional para conquistar novos adeptos àquela seita, o que torna
Will de introvertido a desconfiado e paranoico. Os anfitriões, acompanhados
daquelas duas figuras estranhas ao grupo, podem ter alguma intenção sinistra.
Will passa a
desconfiar das portas trancadas sem chave, das grades que foram colocadas nas
janelas mas... Éden, sua ex-esposa, parece que encontrou algum tipo de paz.
Está aparentemente feliz com sua nova vida. Porém, pequenas coisas nãos se
conectam: telefones celulares sem sinal, telefone fixo desligado.
Mas algo parece fora
do lugar em Éden: a técnica de autoajuda daquela seita de ricaços
hollywoodianos parece não ter ajudado a ela superar ou resolver o trauma da
perda do filho e da separação. Para Will, tudo parece ser apenas uma grande
negação psíquica. Uma forma não de simbolizar e compreender (psicanálise), mas uma
técnica de deletar (para a psicanálise seria nada mais do que negação e
recalque) o passado, até esquecer que um dia teve um filho.
Mas como apontou
Freud, o reprimido sempre retorna. E o que teme Will, é que isso retorne de
alguma forma sinistra naquela noite. Mas a diretora Karyn Kusama conduzirá a
dúvida de Will e do próprio espectador em fogo brando até ferver nos 15 minutos
finais: quem está psiquicamente doente? Will ou Éden? Há algo de real ou tudo é
resultado da paranoia de Will?
Autoajuda e o retorno do reprimido
Para o filósofo alemão
e expoente da Escola de Frankfurt, Theodor Adorno, toda ideologia não é apenas
uma mentira. Teve o seu momento de verdade. O mesmo pode-se dizer sobre a
ideologia da autoajuda e seus subprodutos em seitas e comunidades.
A autoajuda baseia-se
no gnóstico princípio da autodivinização: o homem já traria dentro de si tudo o
que ele precisa. Séculos de racionalismo o fizeram esquecer disso, passando a
acreditar que é ignorante e que precisa de alguma liturgia, culto, método ou
ciência para encontrar Deus ou a Verdade fora dele.
A própria noção de
“cultura” presente na filosofia grega, derivada do sistema de formação ética e
educacional da Grécia Antiga (a Paideia), já trazia esse princípio de
autodivinização – o cuidado do corpo e da alma, o cultivo do caráter, da índole
e do temperamento. Isto é, o aperfeiçoamento de características já presentes em
cada um.
Ao negar a religião
tradicional e voltar a busca de Deus dentro de cada um (por isso Harold Bloom
considerava como “a religião americana”), a Autoajuda e toda a Psicologia e
Psicanálise, cada um a sua maneira, buscaram retomar essa sabedoria milenar.
Porém, se a Psicologia
e a Psicanálise tentaram simbolizar ou compreender tudo aquilo que nos impede
cultivar a própria alma (traumas, medos, recalques etc.), para a Autoajuda tudo
é uma questão de “deletar” (a técnica da “dianética” da Cientologia, por
exemplo) as “situações negativas” do passado para se tornar “espiritualmente
livre”.
Mas a grande lição
dada por Freud é que “o reprimido sempre retorna” (ou, modernamente, aquilo que
tentamos “deletar” da nossa história). A virtude do filme The Invitation é demonstrar isso dentro de um thriller psicológico,
onde os protagonistas compreenderão a velha sabedoria freudiana da pior forma
possível.
Ficha Técnica |
Título: The
Invitation
|
Diretor: Karyn Kusama
|
Roteiro: Phil Hay, Matt Manfredi
|
Elenco: Logan Marshall-Green, Emayatzy
Corinealdi, Michiel Huisman
|
Produção: Gamechanger Films
|
Distribuição:
Drafthouse Films
|
Ano: 2015
|
País:
EUA
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