segunda-feira, julho 25, 2016

Curta da Semana: "We Together" - a memória involuntária dos zumbis


Os zumbis de George Romero se encontram com o vídeo-clip "Thriller" de Michael Jackson fazendo uma exploração no psiquismo dos zumbis. Esse é o curta “We Together” (2016) de Henry Kaplan. Uma música desperta em zumbis memórias involuntárias, fazendo-os terem flash backs da antiga vida humana que ainda podem ter de volta, desde que redescubram quem eles foram. Nada mais gnóstico: os zumbis são tão alheios de si mesmos como nós. Este talvez seja o porquê do fascínio atual pelos zumbis, um verdadeiro arquétipo contemporâneo.


Reinventar os filmes de zumbis parece ser um das preocupações que está no topo da agenda atual dos cineastas. O curta We Together (2016) de Henry Kaplan é a tentativa mais recente ao fazer um curioso mix dos zumbis seminais do diretor George Romero (A Noite dos Mortos-Vivos, 1968), , o clipe Thriller de Michael Jackson e especulações em torno do funcionamento do psiquismo de um zumbi.

Nos últimos anos a criatividade dos cineastas para (desculpe o trocadilho) injetar sangue novo no subgênero foi longe: zumbis invadem Cuba como nova tática de guerra dos EUA (Juan de Los Muertos, clique aqui); zumbi se transformam em problema de epidemiologia e vigilância sanitária (REC, clique aqui); invadem um reality show (Dead Set, clique aqui); ou humanos viram zumbis ao serem contaminados não mais por sangue ou mordidas, mas por certas palavras que estariam semioticamente contaminadas –  Pontypool, clique aqui.

O Curta


No curta We Together começamos em plena ação com zumbis abrindo as vísceras de uma vítima na área de estacionamento da Marcel’s Pizzeria. Um pedaço da vítima é jogado e bate em um aparelho de som daqueles antigos 3 em 1 portáteis sobre um monte de lixo. O aparelho começa a tocar um funk (música composta por Kerron Hurd) que faz um dos zumbis parar, prestar atenção ao som e ter flash backs de quando era humano e trabalhava naquela pizzaria.


Perplexo e confuso, o zumbi olha para a vítima despedaçada, vomita o que comeu e corre desajeitado no melhor estilo zombie walk para a entrada dos fundos da pizzaria, batendo com a cara na porta fechada. Lá dentro estão funcionários apavorados, os últimos sobreviventes. E lá fica o zumbi, parado, dia e noite esperando a porta abrir.

Até que aquele velho aparelho despenca do monte de lixo, voltando a tocar novamente aquele funk, criando novas experiências de flash back ainda mais fortes no zumbi. Então, junto com outro zumbi com o uniforme da Marcel’s Pizzeria, também afetado pela música, começam a dançar freneticamente os passos da break dance. A sequência vai fazer o leitor lembrar bastante de Thiller, o clássico vídeo-clip de Michael Jackson dos anos 1980.

Quanto mais toca a música, mais eles dançam e relembram dos momentos de amizade quando eram humanos e trabalhavam ali. Até que... bem, o leitor terá que ver com seus próprios olhos.

Proust e a memória involuntária


O diretor Kaplan tinha uma ideia inicial na cabeça: como um zumbi se sentiria no meio de uma multidão caótica de zumbis sedentos por vísceras? E se ele começasse a dançar no meio deles? Como os outros zumbis compreenderiam isso?


A música faz despertar nele aquilo que o escritor francês Marcel Proust (1871-1922) chamava de “memória involuntária”, um argumento surpreendentemente nunca explorado até aqui pela cinematografia de zumbis.

Para Proust em sua obra-prima Em Busca do Tempo Perdido, uma hora não é apenas uma hora: é também perfume, sons, climas e projetos. É o tempo “em estado puro”.

A memória involuntária é aquela capaz de resgatar aquilo que foi esquecido e que é a base daquilo que nós somos. Uma memória involuntária seria forte o suficiente para lembrar um zumbi aquilo quem ele já foi? Por isso Kaplan afirma que o tema do curta We Together fala em “redescobrir aquilo que você é”.   

Nada mais gnóstico: os zumbis são tão alheios de si mesmos como nós. Este talvez seja o porquê do fascínio atual pelos zumbis como um arquétipo contemporâneo.

O fascínio pelos zumbis viria dessa estranha condição de “estrangeiros” que eles parecem inspirar, fazendo-nos recordar da nossa própria condição humana: nem vivos e nem mortos, lembranças familiares nos fazem vagar por esse mundo, mas, ao mesmo tempo, a dor e a fome tornam esse mundo hostil, como se não fizéssemos parte dele.

A revolta deles vai além da crítica social e política. Há uma revolta metafísica e gnóstica: nem a vida e nem a morte. O zumbi nos faz lembrar que a morte não é libertação: em um sentido gnóstico apenas nos faz retornar a esse mundo por meio da reencarnação, reproduzindo um ciclo vicioso infernal.


Zumbis, música e contaminação viral


 O curta também nos oferece uma interessante analogia que liga ao tema de outro filme de zumbis: Pontypool. Nesse filme, o vírus zumbi é linguístico – certas palavras seriam perigosas ao criarem no psiquismos dos incautos ouvintes uma perda da memória de si mesmos, caindo na condição sanguinária de zumbis.

Em We Together há uma aproximação entre o poder viral da praga zumbi com o poder dos hits musicais: são tão contaminantes como uma epidemia zumbi.

Mas, diferente de Pontypool, a música detém o poder de criar a memória involuntária, resgatando o tempo puro que nos faça relembrar aquilo que verdadeiramente somos.

Em Pontypool a linguagem é o vírus do esquecimento. Mais otimista, em We Together, a linguagem é o tempo em estado puro que nos faz relembrar.


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