Os
zumbis de George Romero se encontram com o vídeo-clip "Thriller" de Michael
Jackson fazendo uma exploração no psiquismo dos zumbis. Esse é o curta “We
Together” (2016) de Henry Kaplan. Uma música desperta em zumbis memórias
involuntárias, fazendo-os terem flash backs da antiga vida humana que ainda
podem ter de volta, desde que redescubram quem eles foram. Nada mais gnóstico:
os zumbis são tão alheios de si mesmos como nós. Este talvez seja o porquê do
fascínio atual pelos zumbis, um verdadeiro arquétipo contemporâneo.
Reinventar os
filmes de zumbis parece ser um das preocupações que está no topo da agenda
atual dos cineastas. O curta We Together
(2016) de Henry Kaplan é a tentativa mais recente ao fazer um curioso mix dos
zumbis seminais do diretor George Romero (A
Noite dos Mortos-Vivos, 1968), , o clipe Thriller de Michael Jackson e
especulações em torno do funcionamento do psiquismo de um zumbi.
Nos últimos anos
a criatividade dos cineastas para (desculpe o trocadilho) injetar sangue novo
no subgênero foi longe: zumbis invadem Cuba como nova tática de guerra dos EUA
(Juan de Los Muertos, clique aqui); zumbi se transformam em
problema de epidemiologia e vigilância sanitária (REC, clique aqui); invadem um reality show (Dead Set, clique aqui); ou humanos viram zumbis
ao serem contaminados não mais por sangue ou mordidas, mas por certas palavras
que estariam semioticamente contaminadas – Pontypool,
clique aqui.
O Curta
No curta We Together começamos em plena ação com
zumbis abrindo as vísceras de uma vítima na área de estacionamento da Marcel’s
Pizzeria. Um pedaço da vítima é jogado e bate em um aparelho de som daqueles
antigos 3 em 1 portáteis sobre um monte de lixo. O aparelho começa a tocar um
funk (música composta por Kerron Hurd) que faz um dos zumbis parar, prestar atenção ao som e ter flash backs de quando era humano e
trabalhava naquela pizzaria.
Perplexo e
confuso, o zumbi olha para a vítima despedaçada, vomita o que comeu e corre
desajeitado no melhor estilo zombie walk
para a entrada dos fundos da pizzaria, batendo com a cara na porta fechada. Lá
dentro estão funcionários apavorados, os últimos sobreviventes. E lá fica o
zumbi, parado, dia e noite esperando a porta abrir.
Até que aquele
velho aparelho despenca do monte de lixo, voltando a tocar novamente aquele
funk, criando novas experiências de flash
back ainda mais fortes no zumbi. Então, junto com outro zumbi com o
uniforme da Marcel’s Pizzeria, também afetado pela música, começam a dançar
freneticamente os passos da break dance.
A sequência vai fazer o leitor lembrar bastante de Thiller, o clássico vídeo-clip de Michael Jackson dos anos 1980.
Quanto mais toca
a música, mais eles dançam e relembram dos momentos de amizade quando eram
humanos e trabalhavam ali. Até que... bem, o leitor terá que ver com seus
próprios olhos.
Proust e a memória involuntária
O diretor Kaplan
tinha uma ideia inicial na cabeça: como um zumbi se sentiria no meio de uma
multidão caótica de zumbis sedentos por vísceras? E se ele começasse a dançar
no meio deles? Como os outros zumbis compreenderiam isso?
A música faz
despertar nele aquilo que o escritor francês Marcel Proust (1871-1922) chamava
de “memória involuntária”, um argumento surpreendentemente nunca explorado até
aqui pela cinematografia de zumbis.
Para Proust em
sua obra-prima Em Busca do Tempo Perdido,
uma hora não é apenas uma hora: é também perfume, sons, climas e projetos. É o
tempo “em estado puro”.
A memória
involuntária é aquela capaz de resgatar aquilo que foi esquecido e que é a base
daquilo que nós somos. Uma memória involuntária seria forte o suficiente para
lembrar um zumbi aquilo quem ele já foi? Por isso Kaplan afirma que o tema do
curta We Together fala em
“redescobrir aquilo que você é”.
Nada mais
gnóstico: os zumbis são tão alheios de si mesmos como nós. Este talvez seja o
porquê do fascínio atual pelos zumbis como um arquétipo contemporâneo.
O fascínio pelos zumbis viria dessa estranha
condição de “estrangeiros” que eles parecem inspirar, fazendo-nos recordar da
nossa própria condição humana: nem vivos e nem mortos, lembranças familiares
nos fazem vagar por esse mundo, mas, ao mesmo tempo, a dor e a fome tornam esse
mundo hostil, como se não fizéssemos parte dele.
A revolta deles vai
além da crítica social e política. Há uma revolta metafísica e gnóstica: nem a
vida e nem a morte. O zumbi nos faz lembrar que a morte não é libertação: em um
sentido gnóstico apenas nos faz retornar a esse mundo por meio da reencarnação,
reproduzindo um ciclo vicioso infernal.
Zumbis, música e contaminação viral
O curta também nos oferece uma interessante
analogia que liga ao tema de outro filme de zumbis: Pontypool. Nesse filme, o vírus zumbi é linguístico – certas
palavras seriam perigosas ao criarem no psiquismos dos incautos ouvintes uma
perda da memória de si mesmos, caindo na condição sanguinária de zumbis.
Em We Together há uma aproximação entre o
poder viral da praga zumbi com o poder dos hits musicais: são tão contaminantes
como uma epidemia zumbi.
Mas, diferente de
Pontypool, a música detém o poder de criar a memória involuntária, resgatando o
tempo puro que nos faça relembrar aquilo que verdadeiramente somos.
Em Pontypool a linguagem é o vírus do
esquecimento. Mais otimista, em We
Together, a linguagem é o tempo em estado puro que nos faz relembrar.