Se a vida de um ser humano é uma
coleção de memórias, podemos enganar a nós mesmos fingindo algo que nunca
aconteceu? Podemos aliviar do peso do passado através do nosso sentimento de
nostalgia? Estas são as principais questões levantadas no curta “The Nostalgist”
(2014) de Giacomo Cimini baseado no bestseller “Robopocalypse” do engenheiro de
robótica e escritor Daniel H. Wilson. Combinando imersões em realidade virtual
e realidade aumentada, o curta mostra pai e filho vivendo uma realidade idílica
que, aos poucos, demonstra ser apenas uma fina interface sobre um mundo
distópico. Assim como os protagonistas do filme, por meio da tecnologia
estaríamos também criando falsas memórias de nós mesmos? Estamos também
viciados em nossas próprias ilusões?
O curta aproxima-se bastante do universo de Philip
K. Dick, principalmente do conto de 1968 Do
Androids Dream of Eletric Sheep? que foi a inspiração do filme Blade Runner de Ridley Scott em 1982 –
androides replicantes de uma geração superior, os Nexus, tão parecidos com
humanos que colecionavam fotos como fossem lembranças das suas infâncias. Na
verdade memórias artificiais inseridas pelos seus fabricantes para simular o
psiquismo.
Em The
Nostalgist acompanhamos um pai e um filho que vivem em uma espécie de
passado idílico: prédios e ambiência com um mix de era vitoriana com art noveau francesa do final do século
XIX. Mas de repente percebemos que essa realidade não é assim tão consistente:
o pai nota que há algo errado com seus óculos ao ver a si mesmo em um espelho –
ocorrem lapsos de imagem onde vê a si mesmo como uma outra pessoa, em outra
realidade escura e bem diferente dos tons pastéis em que parece viver.
Na verdade, o protagonista é obcecado pelo passado
que o constrói a partir de um óculos em realidade aumentada – um “immersion
system”. Um óculos que trabalha diretamente com o real onde o irrealismo 3D (a
construção de uma era vitoriana em tons pastéis) se sobrepõe ao mundo distópico
em que vive.
O interessante no curta é que enquanto ele tem
consciência disso, o seu “filho” (na verdade um androide) interage como
estivesse em uma realidade virtual (RV) – ele acredita ser uma criança humana
enquanto observa as fotos da sua infância e de uma família que nunca existiu.
A narrativa do curta combina, portanto, RV e realidade
aumentada (RA) de uma forma surpreendente, criando a todo momento o conflito
entre realidade e virtualidade onde aos poucos o pequeno androide de origem
militar vai despertando do seu sonho eletrônico.
Como o leitor observará, a tecnologia do óculo de
realidade aumentada tem origem em “lixo militar” que é reciclado e depois
vendido em espécie de mercado negro para pessoas viciadas em viver na
virtualidade e por meio de uma fantasia pessoal fugir daquele mundo
distópico. Mas há “milícias”, espécie de
policiais que confiscam esses equipamentos ilegalmente comercializados.
Realidade e Memória
The Nostalgist propõe uma interessante discussão
sobre a natureza ontológica da realidade: ela pode ser construída
tecnologicamente através da RV e RA, mas é necessário um importante complemento
psíquico para que a imersão esteja completa: a memória.
Por exemplo, em Blade
Runner, os replicantes Nexus colecionavam fotos como fossem suas próprias
memórias. Tão apegados a elas, não se conformavam com seu curto tempo de de
vida (quatro anos) até o “desligamento”. Apegaram-se à realidade como fosse a
deles mesmos. Aqui em The Nostalgist, o pequeno androide filho crê nas fotos da
sua suposta infância, até se ver refletido em uma poça d’água.
Outro detalhe curioso no curta: sempre a virtualidade
é desmascarada por meio de reflexos: ver a si mesmo no espelho ou na água. No
caso do pequeno androide, criam-se conotações psicanalíticas: assim como na
fase do espelho o bebê, ao ver a si mesma refletida nos olhos da mãe, dilui a
relação edipiana e sai da Natureza para ingressar no mundo simbólico da
Cultura, o pequeno androide rompe com a virtualidade idílica e narcísica para
descobrir a si mesmo como uma destrutiva arma militar.
Mas quando trazemos
essa questão para a nossa realidade, a coisa fica mais complexa: nós também
colecionamos fotos e memórias das nossas vidas. Tal como o protagonista do
curta, também nos viciamos em diversos tipos de RAs – games, Google Glasses,
aplicativos etc. Podemos criar realidades idílicas e nostálgicas (nos viciarmos,
por exemplo, no universo Harry Potter e imergirmos como cosplayers).
Como o fenômeno das
redes sociais como Facebook ou Twitter demonstram, nossas memórias podem ser
tão artificiais como as do pequeno androide do curta. Se no passado posávamos
para fotos ou criávamos momentos artificiais para serem fotografados e serem
lembrados como real, agora nas nossas timelines
criamos uma narrativa ilusória de nós mesmos: selfies engraçadas, transmissões ao vivo de eventos pessoais etc.
Para um ano depois o
Facebook nos lembrar desses momentos e tomarmos como memórias genuínas de
coisas que, afinal, foram apenas encenadas. O problema é que se no curta o
irrealismo é desmascarado pelo reflexo, em nossas vidas os reflexos estão
perdendo essa propriedade emancipadora: ao olharmos a nós mesmos, nos tomamos
pelo nossos simulacros produzidos em fotos, selfies
e timelines.
Lixo militar
Com o advento da RA e
o retorno atual da tecnologia RV, essa imersão em nossas próprias ilusões tende
a aumentar exponencialmente.
Em The Nostalgist há também uma linha de
diálogo que deve nos fazer pensar: “o que é construído a partir de lixo militar
será sempre militar. Uma arma, no fundo”. RA e RV são tecnologias de, no
mínimo, duas décadas atrás cuja primeira aplicação foi para treinamento
militar.
Isso lembra as teses
do pesquisador francês Paul Virilio sobre a militarização da vida civil:
lidamos cada vez mais em nossas vidas com subprodutos tecnológicos de
dispositivos militares. Depois de aplicados e sucateados, são comercializados
para civis. Mas ainda são armas.
Armas que
subliminarmente se voltam contra nós, ao nos viciarmos nas próprias ilusões que
criamos.
Postagens Relacionadas |