“Zoom” é uma expressão inglesa com um duplo significado: poder ser
“zunir” (“to zoom past” como “passar zunindo” ) ou a lente fotográfica que pode
aproximar ou afastar-se de um objeto cujo movimento de ajuste produz um
“zunido”. O filme “Zoom” (2015, Brasil-Canadá) de Pedro Morelli explora esse
duplo sentido do termo ao criar três universos meta-narrativos (literatura, HQ
e cinema) onde os protagonistas ignoram as existências paralelas, sem saber que
suas decisões se afetam mutuamente: uma desenhista faz uma HQ sobre um diretor
de cinema que faz um filme cuja protagonista escreve um romance sobre a
desenhista de HQ. Zoom explora o simbolismo carmico de “ouroboros”, a cobra que
come o próprio rabo. E o misticismo do silêncio do poeta português Fernando
Pessoa.
Grosso modo há
duas maneiras de explorar a metalinguagem no cinema ou na TV: quebrando a
“quarta parede” (os personagens conversam com o espectador quebrando a parede
imaginária que separa o público da tela) ou revelando o próprio artificialismo
da narrativa audiovisual – o cinema mostrando a si mesmo, seu próprio
dispositivo e narrativa.
Essa segunda maneira
muitas vezes explora conotações místicas ou mesmo gnósticas. É caso de filmes
como Um Sonho Dentro de Um Sonho, Mais Estranho Que a Ficção e Sinédoque,
Nova York. Se o dispositivo cinematográfico guarda uma grande analogia com
a caverna platônica (a realidade como uma tela de cinema a qual assistimos
prisioneiros em uma caverna), a metalinguagem que denuncia que tudo o qual
assistimos é um “constuctu” arbitrário e artificial teria, potencialmente, um
forte simbolismo gnóstico.
Zoom (2015) de Pedro Morelli, uma co-produção
Brasil e Canadá, explora esse tema da metalinguagem de forma radical,
conectando três narrativas que ocorrem em diferentes mídias (live-action, HQ e
filme) onde seus personagens ignoram as conexões existentes entre suas
narrativas. O que resulta em três histórias interligadas onde o desenrolar de
uma determina o destino da outra, produzindo uma narrativa emaranhada e
recursiva.
Inspirado nas
estruturas impossíveis como as escadarias infinitas do ilustrador holandês M.C.
Escher, Morelli vai aos poucos no filme dando um significado místico às
conexões entre os diferente universos paralelos – o simbolismo da circularidade
cármica como a cobra que come o próprio rabo (“ouroboros”) e o misticismo do
poeta português Fernando Pessoa.
Todos os
subtemas presentes no filme (a crítica da busca da perfeição, a maneira como
nos tornamos prisioneiros de tendências visuais, a submissão da arte ao mercado
etc.) se unem a uma surpreendente cosmologia gnóstica final: diferentes mundos
podem estar conectados e o que chamamos de carma são, na verdade, resultantes dessas
mútuas influências.
A consciência
disso é o que chamamos de “iluminação” ou “gnose”, somente alcançável através
do silêncio. A arte do silêncio, numa referência direta que o filme faz ao
português Fernando Pessoa. Ele próprio, estudioso de textos místicos e
gnósticos, cuja obra (os “heterônimos”) está permeada de referencias a esses
seus estudos.
O Filme
Tudo começa com
Emma (Allison Pill) que durante o dia trabalha numa pequena fábrica de bonecas
eróticas. Todos esses corpos eróticos perfeitos pendurados ao seu redor devem
ter contaminado sua mente, ao ponto de desejar ter enormes seios perfeitos,
iguais aos da heroína das HQs que ela desenha em seu pequeno caderno.
Frustrada e
prisioneira da sua vida e de seu corpo, Emma inventa um galã latino em sua HQ:
Edward (Gael Garcia Bernal) onde vive uma glamorosa vida de diretor de cinema,
famoso por fazer filmes hollywoodianos de ação e sexo. Mas Edward também está
frustrado com o que faz, e decide, à revelia do estúdio, fazer um filme de
arte: está rodando um filme sobre Michelle (Mariana Ximenes) uma modelo bem
sucedida, mas também frustrada porque todos apenas valorizam sua beleza física.
Michelle aspira
ser uma escritora e decide se rebelar: foge para uma praia de pescadores no
Brasil onde terá paz para escrever sua romance. E qual a narrativa desse
romance? A própria história da frustrada Emma que vive às voltas com os corpos
perfeitos das bonecas eróticas.
Mas o devir
desses universos paralelos em diferentes mídias (Emma, a literatura; Edward, a HQ;
Michelle, o filme) são perturbados. Emma decide fazer uma cirurgia plástica
para ter super-seios gastando todas suas economias. Arrependida e revoltada
(todos apenas olham apenas para seus seios, o que faz Emma se sentir numa
situação idêntica às bonecas eróticas que fabrica), ela investe a caneta contra
o seu galã de HQ Edward, diminuindo o tamanho de seu pênis e sua virilidade.
Edward contava
com seu desempenho sexual para manipular a executiva do estúdio e poder fazer o
seu filme artístico sobre o drama existencial de Michelle. Sem essa “arma”
Edward não tem como seduzir a executiva e impor seu projeto artístico ao
Estúdio. Assim, Michelle fica perdida na praia brasileira e sem inspiração. E
ainda com seu marido/empresário no seu encalço para levá-la à força de volta
aos seus compromissos comerciais. O que repercute de volta na própria vida de
Emma que começa a descer ladeira abaixo.
O filme consegue
articular as diferentes linguagens para cada uma dessas mídias/mundos
paralelos: no universo de Emma a linguagem em live-action; no mundo de
Edward a animação em rotoscopia; e no universo fílmico de Michelle, a
estereotipagem proposital como fosse uma típica produção hollywoodiana – os
clichês dos filmes de ação e os estereótipos brasileiros da selva, erotismo,
praia etc.
A gnose de Fernando Pessoa
Uma citação
retirada do Livro do Desassossego de Fernando Pessoa, presente em duas
linha de diálogo, parece conduzir a narrativa: “Esculpir em silêncio nulo todos
os nossos sonhos de falar”.
É sabido que a
filosofia hermética é uma das facetas mais importantes de Pessoa. Paralelo à
sua obra poética, o poeta português fez uma constante reflexão
mística-filosófica. Por exemplo, em Carta a Ofélia, Pessoa dizia que “o
meu destino pertence a outra lei”. Para ele, a vitória sobre o mundo, a carne e
o diabo dá-se no “Ego íntimo” para fugir da “simbologia confusa da vida”. E
como regra para alcançar a Iluminação, Pessoa aconselha: “o silêncio”.
Nada mais
Basilidiano (Basilides, filósofo gnóstico do início da Era Cristã): para ele, a
forma de alcançar a gnose seria através do singular estado da consciência de
“suspensão”: o esvaziamento da mente por meio do silêncio, anulando toda forma
de linguagem, conceitos e simbolismos que criam a ilusão da realidade.
O salto de fé
Em nossas
pesquisas sobre os arquétipos do Gnosticismo no Cinema, vimos que narrativas
que exploram esse tema basilidiano apresentam o personagem do Viajante. Em
linhas gerais, são personagens bem sucedidos social e materialmente. Mas sentem
que há algo incompleto e errado nas suas vidas.
Emma, Edward e
Michelle são profissionais bem sucedidos, principalmente os dois últimos
financeiramente e celebridades. A busca daquilo que lhes falta será através de
uma “viagem” – Michelle e sua fuga para o Brasil para escrever seu romance e
redescobrir sua sexualidade; Edward que filma a história de Michelle além de
embarcar no freak out da perda da sua virilidade; e Emma na sua viagem
para Buffalo para comercializar droga para pagar a retirada dos seios
siliconados.
Os três
protagonistas alcançarão a Iluminação (a descoberta de que suas vidas são de
alguma maneira interligadas) em momentos de “suspensão” – impasse, entrega e
salto de fé.
O “impasse
mexicano” (onde três personagens apontam armas uns aos outros ao mesmo tempo)
criando o estado de suspensão que leva ao insight de Emma que solucionará toda
a confusão cármica entre os mundos paralelos. E, na sequência final, o salto de
fé de Michelle do helicóptero para resgatar o manuscrito de seu romance e
reescrever o destino de Emma.
Assim como nos
filmes Vidas em Jogo ou Vanilla Sky onde o salto final (do alto
de prédios) é o simbolismo do estado de suspensão e esvaziamento da mente, da
mesma forma em Zoom a solução final (a gnose) vem do salto no vazio como prova
de fé.
Carma é a cobra que come o próprio rabo
Zoom faz uma evidente aproximação da estrutura
narrativa recursiva ao estilo das estruturas impossíveis de Escher com o
simbolismo de ouroboros (a cobra que engole o próprio rabo) e o carma. O
insight de Emma na situação do impasse mexicano fecha a conexão entre
metalinguagem e carma: “Quando e faz uma coisa errada há consequências. Isso se
chama carma. O Universo não gosta de ser sacaneado, ele sacaneia também.
Na gnose de
Emma, os mundos da literatura, HQ e filme se encontram mostrando que tudo está
conectado e influenciando-se mutuamente. A metalinguagem da indústria do
entretenimento (o livro que se transforma em filme e que depois converte-se em
HQ e animação) é a analogia cosmológica da própria existência – como no
Zoroastrismo, ouroboros é o simbolismo da imortalidade da alma ou o círculo da
natureza do carma, sugerindo que círculo retém o seu significado, mesmo quando
os detalhes são obscurecidos pela vida.
A virtude de
Zoom é não se perder nos delírios cult da metalinguagens e narrativas em abismo
que transformou tantos filmes independentes em meros exercícios de estilo.
Pedro Morelli procurou atribuir um significado mais místico à metalinguagem,
embora menos explícito como em Mais Estranho Que a Ficção – onde o tema
do confronto necessidade versus livre-arbítrio e homem versus Deus/Demiurgo é
central.
Morelli preferiu
explorar essa simbologia mística mais no plano icônico e narrativo como, por
exemplo, no salto final do helicóptero ou na forma como os personagens ouvem a
voz do seu criador vindo do outro universo narrativo: olhando para o alto como
à procura de Deus.
Ficha Técnica |
Título: Zoom
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Diretor: Pedro Morelli
|
Roteiro: Matt Hansen
|
Elenco: Gael Garcia Bernal, Alison Pill,
Mariana Ximenes, Jason Priestley, Tyler Labine
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Produção: Rhombus Media, O2 Filmes
|
Distribuição:
Screen Media Films
|
Ano: 2015
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País: Brasil/Canadá
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