Doze anos depois do surgimento da proposta do “Escola Sem Partido”, o Senado lançou agora um projeto
de lei para incluir essa ideia nas diretrizes e bases da educação nacional. A
grande mídia deu espaço a essa notícia e tanto Esquerda quanto Direita morderam
a isca e se engalfinharam: mordaça para os professores? Retrocesso na educação?
Impedir que a esquerda doutrine alunos aproveitando-se da audiência cativa? Por
que só agora o projeto ganha expressão política e midiática? O debate coincide
com o momento da oligopolização do ensino por grupos educacionais estrangeiros
(turbinados por fundos de investimentos) e nacionais que não visam apenas a
mercantilização, mas a própria industrialização do ensino. A polêmica midiática
do “Escola Sem Partido” parece ser uma cortina de fumaça para esconder um
projeto industrial muito mais amplo com a importação de novas metodologias
educacionais (“ativas”, “educação por competências”) tomadas como um fim em si
mesmas onde o próprio professor desaparecerá junto com o seu ofício. Talvez no
futuro nem mais exista professor para ser amordaçado.
Como professor universitário, com algumas passagens pelo ensino médio e
cursos de capacitação de professores do ensino público, esse humilde blogueiro
tem a estranha sensação “de volta para o futuro” ao ver o debate atual em torno
do Projeto Escola Sem Partido, de autoria do senador Magno Malta (PR-ES).
Em primeiro lugar, esse debate ganha espaço na mídia em um momento de
evidentes retrocessos e a ascensão de todos os “neos” (neoconservadorismo,
neoliberalismo etc.). Um debate que surge com forte cheiro de naftalina como
fosse de alguma coisa que foi retirada de uma gaveta depois de anos. A acusação
da suposta existência de professores comunistas “barbudinhos” fazendo a cabeça
de incautos alunos fazia parte da paranoia dos tempos da ditadura militar dos
anos 1970.
Já foi bastante documentado como na ditadura militar brasileira as Associações de Pais e
Mestres (APM) eram instrumentalizadas para controlar professores, monitorar os
conteúdos programáticos de disciplinas e criar listas de professores suspeitos.
Agora, décadas depois, esse debate em tons retro retorna marcado por
personagens decadentes como o ator pornô Alexandre Frota (que fez questão em
agendar uma visita ao ministro da Educação para hipotecar apoio ao projeto) e o
próprio autor do projeto (Magno Malta que embarcou na onda conservadora depois
de diversos reveses políticos).
Esse projeto existe desde 2004 cuja ideia surgiu do advogado Miguel
Nagib como reação à “doutrinação política e ideológica em sala de aula” por
meio de livros didáticos e supostos professores partidarizados. Mas estranhamente
só agora ganha expressão política através de um projeto no Congresso.
Por que agora?
Por que doze anos depois essa paranoia em torno de supostos professores
estarem usurpando o direito de pais sobre a educação moral, política e
religiosa de seus filhos, ganha espaço na mídia e expressão política em um
projeto no Congresso?
Acredito que essa discussão com gosto de café velho requentado visa
outra coisa, muito mais do que desbaratar supostas células partidárias e
comunistas no ensino brasileiro. Aliás, isso é um álibi para um propósito muito
maior e que, por isso, exige a aplicação de uma velha tática de engenharia de
opinião pública: desviar a atenção.
Em um cenário atual onde grandes empresas educacionais, nacionais e
estrangeiras (turbinadas por fundos de investimento), estão oligopolizando o
setor e impondo a racionalização produtiva industrial na sala de aula, escolas
e universidades privadas estão mobilizadas para dar o lance mais ambicioso: a
substituição do professor pelas modernas “metodologias ativas” ou pela
“educação por competências”.
O projeto Escola Sem Partido faz Direita e Esquerda se engalfinharem
numa discussão ultrapassada como se debatessem em torno de monstros de moinhos
de vento. Mas o pior ocorre em outra cena: não se trata mais de controlar
conteúdos curriculares, mas de tornar a própria função escolástica do professor
(transmissão e criação de conhecimentos) em algo velho e substituído por
dispositivos metodológicos importados.
Não por causa de suspeitas ideológicas, mas simplesmente porque na
moderna racionalização industrial na educação (o serial, o pontual, o quantitativo)
não há mais lugar para insumos e resultados
que não possam ser medidos e representados em planilhas Excel que geram bonitos
gráficos para serem projetados em data-show nas reuniões de gestores.
Primeira fase: Mercantilização do ensino
Em postagem anterior sobre as transformação ocorridas no educação em
geral, e no ensino superior em particular, conseguimos demarcar duas fases bem distintas
no processo de transformação educacional: a mercantilização e a industrialização - sobre isso clique aqui.
A primeira fase de mercantilização corresponderia ao duplo processo de
sucateamento do ensino público e o crescimento do ensino privado.
Nessa fase o conhecimento foi progressivamente transformado em
informação para se adequar a um regime de exploração por “mais-valia absoluta”:
aumento do ritmo do trabalho, salas de aula lotadas, salários baixos e extensa
jornada de trabalho.
O “conhecimento” (tanto nos aspectos de transmissão e pesquisa) foi
reduzido a “informação” por meio do apostilamento do material didático: quadros
sinópticos, infográficos, resumões etc. – o conhecimento deveria ser simplificado
(quantificado) para se converter em mercadoria.
Víamos a ascensão daquilo que o educador Paulo Freire chamava de
“concepção bancária de educação”: o professor deposita no aluno “conhecimento”
(na verdade informações simplificadas) que será depois cobrado de volta nas
provas.
A educação abandonava o campo do conhecimento para ingressar nas
técnicas de transmissão e fixação de informação. Mas o professor ainda
conseguia deter o seu ofício – fechava a porta da sala de aula e tentava manter
o espírito escolástico. Daí, as desconfianças sobre o ofício do professor: ele
transmite informação ou “ideologias”?
Segunda fase: industrialização do ensino
Com a chegada do grande capital de grupos e fundos de investimento, a
educação supera a fase comercial (mercantilização) para ingressar na fase da
industrialização. Depois da quantificação do conhecimento em informação,
passamos para a operação mais delicada
porque envolve tanto aspectos pedagógicos quanto trabalhistas: não só a
quantificação como a destituição final do próprio ofício do professor.
Assim como as máquinas com controle numérico substituíram e
fragmentaram o ofício de metalúrgicos, também metodologias como as chamadas
“ativas” ou por “competências” pretendem substituir o ofício do professor que
doravante será definido por eufemismos como “instrutor”, “facilitador” ou
“motivador”.
Se na primeira fase da mercantilização do ensino o conhecimento havia
se convertido em informação, agora na fase da industrialização ele sofre uma
nova mutação: vira “competências”.
As novas metodologias de ensino
Nas novas metodologias o conhecimento deixa de ser o objetivo central
do processo educativo e passa a um papel secundário, dando-se prioridade às
técnicas, as quais passam de meios para se converter em fins em si mesmos.
Se no passado a educação procurava a compreensão da realidade, o
conhecimento (agora qualificado como um saber morto e sem valor nem de mercado
e nem moral) é transmutado em “competências” avaliadas por meio de jogos e
estratégias: responsabilidade, eficiência, iniciativa, execução, trabalho em
grupo, adaptação às circunstâncias etc.
Para a escola o conhecimento (“conteúdo”) é um mero álibi para aplicar
“metodologias ativas” onde os alunos desenvolvam competências subjetivas que mais
tarde serão aferidas pelos RH em processos seletivos de empresas, garantido a
“empregabilidade”.
Por exemplo, embora no Plano de Ensino esteja programado o tema
“Semiótica”, grande espaço da aula é ocupado por “jogos educacionais”
(dramatização, quebra-cabeças, aprendizagem baseada em problemas etc.) para
“aumentar o interesse” na “retenção de conhecimento” e “solução de problemas”.
Se no passado a “metodologia” era tomada como ferramenta para
conhecimento do mundo (objetivo, delimitação do tema, teoria, hipóteses,
lógica, experimentação, interpretação de resultados etc.), agora a metodologia
é centrada no próprio aluno de modo que ele assume a responsabilidade
individual.
O “conteúdo” é “modulado” em uma série de slides de PowerPoint,
conceitos reduzidos a definições curtas (slogans) e o restante é ocupado por
processos grupais e dinâmicas interpessoais. O método é o fim em si mesmo. Não
mais avalia-se conhecimento ou a sua produção, mas “disposições” – capacidade
de auto-avaliar-se, atitude, feedback e assim por diante.
Método sem conhecimento
Falsamente os textos teóricos sobre essas metodologias se referem ao
construtivismo pedagógico de Piaget e Vygotsky. Nada a ver. Na verdade essas
metodologias nascem de um construtivismo filosófico: o radical relativismo
epistemológico.
Se para Piaget e Vygotsky existe um mundo real através do qual o
educando vai construindo o conhecimento a partir de experiências concretas,
nessas metodologias industriais o que está em construção não é o conhecimento,
mas a própria realidade – a construção de atitudes e aptidões subjetivas do
educando é o fim primordial da educação.
Essas atitudes e aptidões serão aquelas buscadas pela psicologia
organizacional nos processos seletivos de empresas: entrevistas, dinâmicas de
grupos, dramatizações, jogos, testes para filtrar “habilidades”, “posturas” e
“atitudes”.
Não é à toa que as disciplinas que envolvem o conhecimento racional da
realidade são aniquiladas ou diluídas em EAD (Ensino à Distância): Filosofia,
História, Sociologia, Antropologia etc.
Essas metodologias ativas e a educação por competências nada têm a ver
com a construção do conhecimento, ciência ou pedagogia – na verdade o objetivo
é satisfazer o princípio da “empregabilidade” – garantir que o aluno tenha as
“disposições” exigidas pelo mercado.
A gestão do negócio
Quanto à escola ou universidade transformada, ela própria, em
corporação, essas metodologias industriais vão trazer diversos benefícios para
a gestão do negócio:
(a) com a substituição do ofício do professor pelas metodologias, as
relações trabalhistas podem ser “simplificadas”: terceirização da finalidade
fim é um exemplo.
(b) se as metodologias industriais são um fim em si mesmas, podem ser
aplicadas em cursos de qualquer área (exatas, humanas, biológicas etc.). O que
resulta que os professores podem ser intercambiáveis e, em muitos momentos,
podem ser meros aplicadores de uma determinada “dinâmica”. Verificam-se
situações bizarras onde um professor com pós em História transforma-se em
“instrutor” em um curso de Contabilidade.
(c) com a diluição do ofício do professor, a organização educacional
tornar-se fortemente hierarquizada: gestores e coordenadores podem intervir a
qualquer momento no processo “educacional” – dessa maneira as demandas
gerenciais, administrativas e pedagógicas se confundem a todo momento.
(d) e o grand finale: com a transformação do professor em
“instrutor” ou “facilitador” seu salario é rebaixado – mestres e doutores são
nivelados em a um mesmo ponto de partida salarial sob pretexto de “plano de
carreira”.
Enquanto espertamente a grande mídia, certamente estimulada pelos
grande grupos que oligopolizam a educação brasileira, da espaço para esse falso
debate da Escola Sem Partido, corre solto o processo de desaparecimento do
ofício do professor. Não por controle ideológico, mas pela industrialização do
ensino.
A mordaça ideológica ainda era uma característica da fase anterior, a
da mercantilização do ensino.
Hoje, com a industrialização do ensino, corremos o risco de em breve nem termos mais professor para
ser amordaçado.
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