É férias e os filhos passam mais tempo
em casa, festas e encontros com os amigos de escola. É o momento onde o
“Cinegnose” cai de cabeça no universo da cultura infanto-juvenil: animações,
games, redes sociais e canais do YouTube. Um universo cada vez mais dominado
por uma sensibilidade “meta” – paródica, auto-referencial e metalinguística. Um
exemplo é o episódio “A Quarta Parede” da série de animação “O Jovens Titãs em
Ação” apresentado pelo Cartoon Network. Uma versão irônica da série clássica “Teens
Titans” da DC Comics. O que acontece quando personagens ficcionais tomam
consciência de que são apenas paródias de personagens em quadrinhos? A quebra
da barreira imaginária entre personagem e espectador (a quarta parede) e a
entrada da narrativa na mitologia gnóstica: o demiurgo “Freak Control” que
aprisiona personagens para conquistar prêmios e reconhecimento – uma paródica
analogia da condição humana.
O público infantil e infanto-juvenil atual não está mais diante
dos velhos conteúdos midiáticos como desenhos animados, histórias em quadrinhos
ou filmes. Esse público está cada vez mais lidando com mídias que propiciam experiências
de entretenimento imersivas, trasmidiáticas e cross-midiáticas.
Isso significa que as velhas narrativas infantis (baseadas na
estrutura dos contos de fadas ou da jornada do herói) estão dando lugar à
narrativas cada vez mais irônicas, conscientemente paródicas e auto-reflexivas.
Na verdade, são meta-narrações: paródias, paráfrases,
metalinguagens – um desenho como Pink Dink Doo em dado momento se transforma
num quizz show com questões sobre a história que a protagonista inventou a
minutos atrás; o personagem Capitão Cueca fazendo uma paródia do Super-Homem e
ironizando uma peça do uniforme do herói original, a sua estranha sunga;
animações como Hora de Aventura ou O Incrível Mundo de Gumball que são
verdadeiros liquidificadores de referencias da cultura pop passada e atual e
fusão total de gêneros reforçada pela técnica de animação que mistura colagens
de fotografias com desenhos.
Podemos até afirmar que na verdade as crianças prestam somente
atenção aos berros, cores, explosões, gritos e badernas. Somente os pais se
divertem ao descobrir as referencias paródicas e metalinguísticas. Mas o que
estamos presenciando é mais do que isso: assistimos ao desenvolvimento de uma
nova sensibilidade “meta”, isto é, irônica e auto-referencial.
Essa é uma tese que o Cinegnose vem desenvolvendo desde a análise
do sucesso do personagem Mister Maker, do Discovery Kids: uma nova
sensibilidade que pressente que o universo não é uma realidade estável e
perene, mas uma realidade artificial, um constructo. E nessa nova sensibilidade
parece cair muito bem as narrativas gnósticas – sobre isso clique aqui.
Um bom exemplo atual é a série de animação Os Jovens Titãs em Ação (Teens Titans Go!) exibida pelo canal
Cartoon Network. A óbvia referencia é a animação clássica Jovens Titãs (Teen
Titans, 2003-2006) criada por Sam Register e Glen Murakami cuja estilo remetia
ao formato das animações japonesas onde mostra cinco super-heróis adolescentes
liderados por Robin, o menino prodígio e companheiro de Batman.
O desenho era baseado no famosa equipe de heróis-adolescentes da
DC Comics composto pelos personagens Robin, Estelar, Ravena, Mutano e Ciborgue.
Surrealismo e paródia
Enquanto a animação clássica era carregada no drama, com os
personagens em conflitos e vilões estrategistas que sempre colocavam em risco
os heróis, sete anos depois em Os Jovens Titãs em Ação a Warner e Cartoon
Network fez uma releitura em tom de comédia surreal e paródica na mesma linha
de Incrível Mundo de Gumball ou Titio Avô: os conhecidos heróis da DC Comics
foram colocados em um outro nível de universo.
Assistindo aos episódios da nova série, percebemos que não é uma
adaptação de nada que já tenha sido feito – os produtores parecem usar a velha
roupagem conhecida pelo público para se voltar para a paródia do próprio
universo da DC Comics: o que os super-heróis fazem quando não estão salvando o
mundo? O que os super-heróis adolescentes fazem quando não há adultos olhando?
Robin batendo o batmóvel e perdendo a licença, Estelar tentando matar um
pernilongo, Ravena preparando uma estratégia que faça todos saírem da Torre
para que ela possa assistir em paz a um desenho de pôneis coloridos etc.
Mas é no recente episódio chamado “A Quarta Parede” (terceira
temporada, episódio 9, 2016) que nos deparamos com um exemplo de como essa
sensibilidade “meta” atual (paródias, paráfrases, alusões e ironia) permite que
ocorra transversalidade da mitologia gnóstica: se o universo é artificial, o
que aconteceria se os próprios personagens ficcionais descobrissem sua própria
natureza artificial?
Esse episódio faz um inacreditável mix dos argumentos de filmes
gnósticos clássicos como Show de Truman
(Truman Show, 1998), A Vida Em Preto e Branco (Pleasantville, 1998) com uma pitada
freudiana presente na Trilogia da Pixar Toy
Story.
O demiurgo "Freak Control"
Os jovens titãs vão assistir TV quando eis que surge na tela o
vilão Control Freak que, empunhado seu controle remoto, impede que os heróis
troquem de canal – o mesmo argumento de Pleasantville onde um misterioso
técnica de TV com seu controle remoto faz os protagonistas serem transferidos
por uma série de TV dos anos 1950, tornando-se prisioneiros daquele universo.
Da mesma forma, o Control Freak revela para os heróis de que eles,
na verdade, são prisioneiros na quarta parede da narrativa televisiva e que ele
os criou para que ganhasse prêmios e fosse reconhecido pela indústria do
entretenimento. Mas parece que deu tudo errado.
“Eu tornei os jovens titãs em entretenimento. Vocês são o show!”,
revela o Freak Control para os atônitos super-heróis. “As pessoas estão nos
assistindo?”, diz Robin espantado. Todos vão até a quarta parede para ver os
espectadores: “Eles estão nos assistindo sem a nossa permissão... bando de
bizarros!”, revolta-se Ravena.
Tal como Truman, os jovens titãs descobrem-se como objetos de um
show de entretenimento criado por um Demiurgo (o Freak Control, produtor e
diretor do show).
Também tal como em Toy Story
o boneco Buzz Lightyear se descobre como um brinquedo ao ver seu próprio
comercial na TV, aqui os titãs também se veem na TV. A tela substitui o espelho
psicanalítico (a famosa “Fase do Espelho” lacaniano) na dissolução do Édipo – a
perda da inocência narcísica para o ingresso no mundo da Cultura: a descoberta
de que nada temos de especial e que somos apenas mais um indivíduo numa
sociedade.
Mas qual o jogo maligno do Freak Control? O programa deveria ser
sua grande conquista: prêmios e reconhecimento – assim como na mitologia
gnóstica o Demiurgo cria o cosmos material para ser uma pálida cópia do
Pleroma, a plenitude de onde todos forma emanados.
"Reboot", morte e reencarnação
Mas tudo deu errado: “piadas de bosta, senso de humor podre e a
audiência odeia vê-los atuando”, acusa o Freak Control. E ameaça “dar um
reboot” em todos se não melhorarem a “qualidade da animação”.
Aqui o “reboot” faz uma alusão às sucessivas versões que os jovens
titãs já tiveram: o Freak Control os matou outras diversas vezes (“reboot”)
para produzir novas “reencarnações” – adaptações ou releituras. Esse é o
componente que faltava para essa sensibilidade “meta” criar um clássico
universo gnóstico: a morte e a reencarnação muito mais como um eterno retorno
que perpetua a prisão, do que aprendizado, evolução ou fuga de onde “partimos
dessa para a melhor”.
O conceito de “quarta
parede” se refere a uma barreira imaginária que separa o personagem do público.
O efeito de realidade produzido pela linguagem teatral ou cinematográfica cria a
simulação de uma ação que se passaria dentro de uma “caixa”. A quebra dessa
barreira imaginária estabeleceria um nível meta a uma narrativa ficcional:
personagens podem descobrir que são, eles próprios, ficções e tirarem vantagem
disso e interagir com o público.
É o que os jovens
titãs tentam fazer para vencer o demiurgo Freak Control: quebrar literalmente a
quarta parede para acabar com a ilusão. É o mesmo desfecho de Show de Truman
onde o personagem toma consciência da sua natureza ficcional (ele sempre foi
dirigido pelo diretor do programa), rompendo com a quarta parede e a ilusão. É
na sua essência a gnose, transposta para a linguagem cinematográfica.
Quarta parede e gnose
Muitos filmes fizeram
essa quebra, desde O Grande Roubo do Trem
(1903) onde o ator olha diretamente para a câmera e dispara um revólver; até Os Bons Companheiros (1990), Alfie (2004), O Lobo de Wall Street (2013) ou A
Grande Aposta (2015) onde personagens falam diretamente para a
câmera/espectador.
Mas filmes como Deadpool ou esse episódio dos Jovens Titãs Em Ação vão mais além,
combinando com a metalinguagem – personagens de quadrinhos sabem que são
ficcionais, ou seja, personagens em filmes sobre personagens ficcionais de
quadrinhos.
Concluindo: essa
crescente sensibilidade “meta” da geração infanto-juvenil atual (reforçada
ainda mais pelos dispositivos móveis, games e transmídia) é a subjetividade por
trás linguagem paródica e auto-referencial – a criação de universos onde
personagens tomam cada vez mais consciência da sua natureza ficcional e
arbitrária. Nada mais gnóstico.
Clique na imagem abaixo e assista ao episódio legendado.
Clique na imagem abaixo e assista ao episódio legendado.
Ficha Técnica |
Título: A
Quarta Parede (episódio 9, terceira temporada de Jovens Titãs em Ação)
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Diretor: Peter Rida Michail
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Roteiro: Michael Jelenic, Aaron Horvath
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Elenco: Scott Menville, Khary Payton,
Alexander Polinsky, Tara Strong, Hynden Walch
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Produção: Warner Bros.
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Distribuição:
Cartoon Network
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Ano: 2015
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País:
EUA
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